sábado, 26 de maio de 2012

Historicismo circense, ineditismo farsesco

Por Álvaro Nunes Larangeira: Observatório da Imprensa

Em vez de rede, a rede. Ao invés da dúvida, a credulidade. Da prova, o ilusório. O jornalismo de orelha e o historicismo circense têm extrapolado em pretensão e petulância. Assoberbam-se às custas da comodidade das telas e da maciez das cadeiras e poltronas. Aproveitando-se da corriqueira relutância ao desgastante exercício da certificação, satisfazem os incautos com releases cevados a louvamentos e adulações ao compadrio e mecenato, divertem os ingênuos com o ilusionismo dos guias do tipo politicamente incorretos e majoritariamente falaciosos e agora pretendem engambelar o leitorado por meio do ineditismo farsesco e da himenoplastia documental. Ah!, tenham dó. Pelo menos dos nossos neurônios.
A última pérola da dupla diz respeito ao livro Getúlio 1882-1930 – Dos anos de formação à conquista do poder, o primeiro volume da trilogia do jornalista Lira Neto sobre o ex-presidente Getúlio Vargas, lançado pela Companhia das Letras agora em maio. A apresentação do remake biográfico do paradigmático personagem da história política brasileira parece tomada pela euforia bipolar. “A biografia mais completa já escrita sobre um político brasileiro”, anuncia o vídeo da editora. A gana pela revelação teofânica, obsessão do ethos do jornalismo auricular, é externada pelo colunista Lauro Jardim, da revista Veja: “Um Getúlio Vargas surpreendente emerge das páginas de Getúlio”.
O ineditismo esvaíra-se muito antes
E o paranoico afã pela originalidade legitimadora da investigação é exposto sob forma intimidativa. “Desafio qualquer pessoa a mostrar onde estão as citações ao inquérito original. Os documentos estavam intactos nos arquivos, fui o primeiro a manuseá-los”, provoca o autor (ver aqui), referindo-se ao pretendido caráter de inusitado pela publicação do discurso proferido por Getúlio Vargas como orador da turma na formatura na Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre e pelo manuseio dos processos de Ouro Preto (MG) e Palmeira das Missões (RS), nos quais haveria, de acordo com Carlos Lacerda, envolvimento do político gaúcho em dois assassinatos, um em cada cidade.
Ora, então vejamos. O início do texto lido pelo bacharelando Getúlio em 25 de dezembro de 1907 diz o seguinte, na ortografia original: “Eis nos chegados ao termo da jornada. Atomos perdidos no mundo dos phenomenos, uniu-nos a transitoriedade d'um instante para a realisação d'um grande ideal” (ver aqui). Na página 141 do capítulo “Orador dos estudantes e jornalista de O Debate”, do segundo volume de Getúlio Vargas e o seu tempo – um retrato com luz e sombra, publicado em 1994, o biógrafo Fernando Jorge transcreve a primeira parte da fala na solenidade da colação de grau: “Eis-nos chegados ao termo da jornada. Átomos perdidos no mundo dos fenômenos, reuniu-nos a transitoriedade de um instante para a realização de um grande ideal.”
Teria Fernando Jorge obtido fragmentos textuais idênticos aos da formatura em algum centro espírita? Nada disso, foi naquele mesmo arquivo intacto ao qual Lira Neto se referira. Até porque o ineditismo do texto esvaíra-se muito tempo antes. “Um de seus biógrafos fora ao Rio Grande do Sul em busca de dados. Entrevistara vários colegas e contemporâneos, descobrira vários documentos ainda inéditos, entre eles o discurso de formatura”, revelaria Alzira Vargas do Amaral Peixoto em 1960, na página 11 do livro Getúlio Vargas, meu pai. Quase duas décadas depois Alzira entregaria a documentação ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas.
“Nenhuma grande novidade”
Circunstância semelhante ocorre no caso Ouro Preto. O barbante da almejada originalidade rompe-se à força da verificação. O jurista Augusto de Lima Júnior redige todo o capítulo “Austeridade intrépida”, em Serões e Vigílias: páginas avulsas, baseado no processo que o pai, o magistrado Augusto Lima, ajuizou. À página 42, na obra lançada em 1952, Lima Júnior comenta:
“Êsse processo famoso, desde que o Sr. Getulio Vargas assumiu o poder no Brasil tem sido consultado com freqüência por interessados em encontrar nêle material adequado a retaliações políticas”.
Permaneceriam virginais à espera do toque do midas Lira Neto os autos do processo do assassinato do estudante paulista Carlos de Almeida Prado em junho de 1897, envolvendo os irmãos Vargas – Viriato, Protásio e até Getúlio, então com 15 anos? Talvez, em algum conto de fadas.
Boris Fausto, autor de Getúlio – o poder e o sorriso, da coleção Perfis brasileiros, organizada pela própria Companhia das Letras, e responsável pelo texto da contracapa do Getúlio 1882-1930 – Dos anos de formação à conquista do poder,foi mais sensato. Em comentário à Folha de S.Paulo, o historiador elogiou a narrativa detalhista de Lira Neto e a fartura de informações do volume e fez a ressalva derradeira: o livro não traz “nenhuma grande novidade” (Ambivalência de Getúlio atraiu biógrafo, ilustrada, E4, 17 maio 2012). Portanto, alcandorar-se pelo pioneirismo do material documental, e deste modo ser propagado pelo jornalismo de orelha, só é razoável se houver o suporte da prova. Senão, nem o Barão de Munchausen levará fé.
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[Álvaro Nunes Larangeira é jornalista, professor da Universidade Tuiuti do Paraná e organizador, com o historiador Décio Freitas, de Getúlio Vargas – A Serpente e o Dragão: dissertações acadêmicas (Sulina, 2003)

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