POR FRAN ALAVINA, em OUtras Palavras
A erudição e o diálogo entre as disciplinas humanas parecem hoje derrotados pelos “especialistas” e a cegueira neoliberal. Porém, resistimos: nada está consumado
Por Fran Alavina
Neste fevereiro completa-se um ano da morte do pensador italiano Umberto Eco (1932-2016). Conhecido pelo público não acadêmico a partir do sucesso do romance O nome da Rosa, depois convertido em filme, hoje é possível afirmar que o profundo significado da morte de Eco no plano da cultura ficou velado pela repercussão midiatizada de sua partida. Não morria, em 19 de fevereiro de 2016, um simples intelectual acadêmico que, vez ou outra, falara ao grande público. Tratava-se de alguém que sabia se movimentar com desenvoltura entre os meios universitários e os espaços midiáticos, sem se deixar contaminar pela artificialização de uns, ou pelo isolacionismo de outros.
Quase todos os jornais italianos apegaram-se aos elementos midiáticos da profícua carreira intelectual e literária de Eco. Celebraram seu fim como fazem com a morte de algum astro pop: com um rápido jogo de imagens rememorativas que não passam da superficialidade da retina, acompanhadas por uma falação ininterrupta que retira qualquer reverência ante o silêncio da morte. Nas mãos da velha mídia, quem morre se transforma em um ente cinicamente celebrado, pois não se morre, vira-se notícia. Repetiram, com exaustão, que Eco era um homem de cultura extensa, um erudito reconhecido internacionalmente, por isso um italiano memorável. Ressaltou-se, por fim, que seu velório seria um sóbrio ato laico. Na Itália cabisbaixa pela crise, Eco era um dos poucos motivos de orgulho. Sua obra relacionava saber e vida civil: algo que outrora era uma construção tipicamente italiana, hoje um liame corroído pela ideologia da especialização e pela negação das ciências humanas.
Parece quase uma trama tecida pela fortuna com os fios da ousadia, que a última obra de Eco fosse justamente um romance sobre o jornalismo faccioso e sensacionalista, o romance Número Zero. Uma visão sobre a manipulação jornalística e suas mazelas. A mentira, que uma vez tornada notícia, acaba por se apresentar como se verdade fosse. Era como se antes de sua morte, Umberto Eco, por meio de sua erudição aguda e crítica, já tomasse parte na querela sobre a pós-verdade, que no ano mesmo de sua partida, se tornou o mote explicativo de todos os nossos problemas. Ironia que o autor de Apocalípticos e Integrados, uma das mais lúcidas análises sobre os mass media, perde a posição de “meio-termo” que defendera para tornar-se integrado. Uma integração proporcionada por sua morte e que lançou sombras sobre o liame que unia a diversidade de sua produção. Talvez a mais perversa expressão dessa integração tenha sido a definição simplória de Umberto Eco como sendo o erudito pop.
É nesse quadro – mesmo repercutindo e ressaltando o significado de um velório laico no país de um catolicismo que oscila entre o apelo turístico-museológico e o fortuito carisma de seus papas – que os jornais e a TV fechavam os olhos para a relação essencial entre toda a vasta produção de Eco e a tradição da cultura das letras e humanidades. Ora, esta longa tradição perpassa a própria formação da identidade nacional italiana na medida em que lá se iniciou e se fundamentou aquilo que posteriormente se convencionaria denominar de saberes humanísticos, (os studia humanitatis). Tradição das humanidades que tem perdurado na longa tradição da história italiana, mesmo sofrendo ininterruptos ataques. Dificilmente nos esquecemos, após um primeiro contato, que Dante, Maquiavel ou Michelangelo eram italianos; porém, raramente, por exemplo, relacionamos os dramas de Shakespeare com a sua Londres elisabetana.
A morte de Umberto Eco não foi, para os italianos, apenas a despedida de um compatriota reconhecido internacionalmente, mas também a perda simbólica de um dos liames de identidade nacional. Já para todos nós, sua partida significou a morte do último dos renascentistas, talvez o fim de uma cultura educacional na qual certo ideal de erudição e diálogo entre as disciplinas humanas reconhece sua derrota ante a apologia da especialização e o simulacro do homem multimídia. Aqui, certamente o leitor mais atento indaga-se: como um notório medievalista pode ser denominado de renascentista?
Denominá-lo de renascentista, ainda que ele fosse um grande medievalista, não é anacronismo ou ironia. Podemos caracterizar Umberto Eco como o último dos renascentistas justamente em função do ideal de erudição crítica que animou toda sua produção intelectual: das obras de estética filosófica e semiótica aos seus romances e crônicas. O ideal de sujeito erudito, capaz de criar e se expressar nas mais diferentes disciplinas e saberes humanísticos era o próprio fundamento da cultura renascentista.
O literato deveria ser tão capaz de filosofar, quanto o filósofo deveria ser capaz de criar poemas e construir narrativas ficcionais; o historiador deveria ser tão desenvolto em criar a beleza pictórica, quanto o pintor deveria ser em compreender o passado e narrar o presente. Ademais, cumpria nunca perder de vista a relação entre o saber e suas determinações históricas. Jamais contentar-se com a mediocridade: esta era a norma para se criar o novo. O exemplo mais popular e lendário desse modelo é Leonardo Da Vinci – o homem universal. Porém ele não era a exceção genial, mas a regra comum de um modelo de orientação dos saberes. Galileu foi capaz de apresentar suas descobertas astronômicas através de um diálogo ficcional. Maquiavel, sempre mais difamado que compreendido, escreveu uma história de Florença e três peças teatrais; Lorenzo, il magnifico, ao mesmo tempo que exercia o poder dos médicis sobre os florentinos, foi poeta admirado.
Não se tratava de mero ecletismo, mas de reconhecer o vínculo comum que une todos os saberes dos círculos humanísticos. Vínculo este, que hoje, após a orientação das universidades para as especializações minimalistas, é enfraquecido cada vez mais. Bem antes que a interdisciplinaridade fosse apresentada como grande novidade, a regra era nunca contentar-se com uma só forma de saber. Já nos alertavam os renascentistas que todo saber em si mesmo, por mais que aspire à universalidade, é sempre uma visão fragmentada do mundo – portanto incapaz de falar sobre o todo, mas apenas sobre a parte em que se debruça. E aquele que conhece bem, mas apenas a parte, ao tentar compreender o funcionamento do todo, não fará mais que falseá-lo, e, assim, ainda que conhecendo estará preso ao erro. O bom saber é aquele capaz de ir sempre além de si, jamais fazendo uma apologia cínica de suas próprias parcialidades. Qualquer distância quilométrica entre este ideal formatado na Renascença e a nossa atualidade, que é presa fácil de um uso tecnicista do saber, não é mera coincidência. Por isso, a importância de Eco; Sua produção ousou ao não submeter-se às especializações minimalistas que nos acostumam à parcialidade e mediocridade; ao ficcionar, mas sem deixar de compreender o presente histórico; ao demonstrar que erudir-se não é o exercício fútil de colecionar informações díspares e exóticas; ao testemunhar que as humanidades não são saberes menores e inúteis, mas que sem o seu fortalecimento estamos fadados a nunca compreendemos as contradições de nosso tempo.
Umberto Eco reconhecia o vínculo das humanidades, e se inseria na tradição humanista renascentista que perdurou na vida cultural italiana: passando por Leopardi e chegando a Pasolini. Vinculando-se, portanto, àqueles que foram capazes de estender sua vontade de saber para além de uma só forma de conhecimento e de criação. Eco não foi apenas o excelente ficcionista de O pêndulo de Foucault e a Ilha do Dia Anterior. Também era um teórico da literatura e da linguagem; não apenas refletiu filosoficamente sobre a estética medieval, como também teorizou sobre o “fascismo eterno” e as anomalias e vulgarizações criadas pelo poder midiático. Seu talento como escritor ficcional não era menor que sua capacidade de pensar criticamente a realidade — ou melhor, conforme uma de suas expressões, de viajar na irrealidade cotidiana. O quanto teríamos perdido se Eco houvesse se contentado em ser apenas um especialista em estética e filosofia medieval, lugar de sua primeira formação acadêmica?
Há um ano se foi o último dos renascentistas, e não sabemos se, em breve, veremos surgir um outro como ele. Não em virtude da uma genialidade, que embora singular, supõe-se inalcançável, mas porque o âmbito dos saberes humanísticos é cada vez mais ferido de morte: a grande mídia faz crer que informar-se é o mesmo que conhecer e a cegueira neoliberal nos guia para um mundo no qual as ciências humanas seriam apenas diletantismos de alguns. Assim, talvez o próximo continuador da trilha feita por tantos outros antes de Eco, e continuada por ele, tenha sido tirado arbitrariamente do caminho por ações como a reforma-desmache do ensino médio que vemos hoje no Brasil: um genocídio educacional que fere as disciplinas humanas e mata os talentos antes que eles possam nascer