sábado, 28 de junho de 2014

A batalha do Stonewall Inn e os dias heroicos que criaram o Dia Internacional do Orgulho LGBT

Milton Ribeiro, em Sul21

Nos anos 1950 e 60, os gays, lésbicas, travestis e transexuais (LGBT) norte-americanos enfrentavam um sistema legal mais anti-homossexual do que os de alguns países do leste europeu. Porém, nos últimos anos da década de 60, tais políticas repressoras começaram a ser contestadas. Era uma época de mudanças e muitos movimentos sociais tornaram-se subitamente visíveis, como, por exemplo, o Movimento dos Direitos Civis Afro-americanos, a contracultura hippie e as manifestações contra a Guerra do Vietnam. Estes movimentos, juntamente com o ambiente liberal do bairro de Greenwich Village, serviram como catalisadores para os conflitos que ocorreram em Stonewall.
Os conflitos de Stonewall foram uma série de violentas manifestações protagonizadas por membros da comunidade LGBT contra uma batida policial que teve lugar nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn, na Christopher Street, no Village de Nova York. O fato é considerado um marco do movimento e, até hoje, marca o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Mas voltemos ao Stonewall.
O bar
O bar
Numa época em que poucos estabelecimentos aceitavam receber pessoas abertamente homossexuais, o Stonewall Inn era conhecido por ser popular entre as pessoas mais pobres e marginalizadas das comunidades gay e lésbica. Também era o local das drag queens, travestis, transsexuais, dos prostitutos, prostitutas e sem-teto. As batidas policiais neste gênero de estabelecimentos eram rotina nos Estados Unidos da década de 60. Durante as sessões, os frequentadores normalmente recebiam castigos físicos de forma indiscriminada, mas, naquela manhã no Stonewall, os oficiais perderam o controle da situação.
A única foto conhecida que foi tirada dentro do Stonewaal antes dos distúrbios
A única foto conhecida que foi tirada dentro do Stonewall antes dos distúrbios
Os fatos
Toda vez que a polícia chegava próxima do bar, o porteiro dava o sinal e o barman ligava todas as luzes do teto como um sinal para que todos se preparassem. Naquele verão de 1969, as batidas policiais tornaram-se cada vez mais frequentes, porém, na noite de 28 de junho, quatro policiais à paisana tiveram acesso ao bar sem que o porteiro pudesse acionar o alerta.
Era 1h20 da madrugada quando os policiais se anunciaram. Alguns dos 200 presentes no Stonewall entraram em pânico e tentaram fugir, mas outro policiais já tinham fechado portas e janelas.
Nada saiu conforme o planejado. O procedimento padrão era o de alinhar os frequentadores a fim de verificar suas identidades. As policiais mulheres tiravam os vestidos dos clientes a fim de checarem seu sexo. Todas as drag queens, travestis e pessoas consideradas “homens caracterizados como mulheres”  e vice-versa eram presas. Só que, naquela manhã, as pessoas recusaram-se a obedecer os oficiais. Ninguém quis identificar-se.
Então, a polícia decidiu levar todos para a delegacia. A drag queen Maria Ritter, que era conhecida como homem em sua família, lembrou: “Meu maior medo era de que eu ia ser presa. Meu segundo maior medo era que minha imagem sairia em um jornal ou em uma reportagem na televisão e eu estava com um vestido de minha mãe”.
A situação ficou tensa, estimulada pelo comportamento da polícia, que começou a ofender algumas lésbicas enquanto as revistavam.
Na porta do bar, uma multidão assistia à batida policial. Lá de dentro vinham sons de gritos e de prováveis espancamentos. Na verdade, o nível de confrontação no Stonewall chegara ao ponto de alguns clientes do bar começarem uma “performance” especial para os policiais. Ouviram-se aplausos vindos do bar. Quando o primeiro camburão chegou, a multidão começou a vaiar. Alguém gritou “Gay Power!”.
Cercado: um cliente do Stonewall Inn em apuros
Cercado: um cliente do Stonewall Inn em apuros
A batalha
O grito foi complementado por  sua antítese. Um oficial saiu do bar empurrando violentamente uma travesti, que lhe respondeu com uma violenta “bolsada” em pleno rosto. Logo depois, uma mulher foi arrastada para fora do bar, reclamando que suas algemas estavam muito apertadas. O policial que a arrastava respondeu golpeando-a na cabeça com um cassetete. Ela não apenas conseguiu permanecer em pé como olhou para a multidão e gritou: “Por que vocês não fazem alguma coisa?”. Para a surpresa geral, mas principalmente da polícia, uma multidão veio em solidariedade aos habitués do Stonewall Inn. Voavam pedras, moedas e garrafas de cerveja. O escritor Edmund White, frequentador do bar, lembra que todos estavam muito agitados. “Não tínhamos slogans nem atitudes, só cerveja e uma imensa raiva”.
Pedras e tijolos eram atirados contra os policiais
Pedras e tijolos eram atirados contra os policiais
A multidão tentou virar o camburão. Os policiais investiram contra as pessoas, o que só serviu para incitá-las ainda mais. Rapidamente, a polícia via-se em uma luta contra aproximadamente 500 pessoas, que começaram a arremessar tijolos de uma construção próxima. Os policiais jamais imaginaram que teriam de correr para o Stonewall a fim de se protegerem dos moradores do bairro.
Das janelas dos edifícios próximos, as pessoas jogavam quaisquer objetos em chamas. Parquímetros foram arrancados da calçada para servir de aríete contra as portas dos carros policiais. Depois de 45 minutos de violenta luta, chegaram mais policiais. A ordem era de prender qualquer um, mas era quase impossível capturar alguém.
Os policiais recém-chegados foram dispostos em uma linha que impedia a saída de pessoas da confusão sem passar por eles. Então, os clientes do bar começaram a zombar deles, formando uma linha paralela que os encarava. A polícia, enfurecida, avançou, batendo no que encontrasse pela frente. Um erro. A multidão não recuou, antes respondeu virando carros e fazendo barricadas contra a polícia. Em menor número e surpreendida pelo ódio da multidão, a polícia começou a fugir. A luta continuou até às 4h da madrugada. Ninguém dormiu.
As duas linhas paralelas começam a se romper: nenhuma disposição para recuar
As duas linhas paralelas começam a se romper: nenhuma disposição para recuar
Durante toda a manhã seguinte, as pessoas visitaram o muito danificado Stonewall Inn, tentando entender o que tinha acontecido.
Parte da matéria do dia seguinte no New York Times de 29 de junho
Parte da matéria do dia seguinte no New York Times de 29 de junho
A noite seguinte
A notícia se espalhou e, na noite seguinte, a multidão voltou à Christopher Street em muito maior número. Alguns eram “veteranos” da noite anterior; outros eram meros turistas; e a maioria veio para brigar. O que houve foi que, pela primeira vez na história de Nova Iorque, gays trocavam carinhos a céu aberto. De mãos dadas, abraçavam-se e beijavam-se. Nada de esconderijos ou bares, nada de armários.
O início da segunda noite
O início da segunda noite
Quando a noite caiu em 29 de junho, a multidão ainda crescia. Então, a polícia de choque voltou. A multidão tratou de queimar cada lata de lixo, novos carros foram capotados e para-brisas quebrados. Quando alguém era levado ela polícia, a multidão recuperava rapidamente o refém. Mesmo em ruínas, o Stonewall Inn permaneceu todo o tempo aberto. A violência foi novamente até a madrugada. Mas a sensação era nova: era a de que algo tinha mudado para a comunidade LGBT.
Cinco noites depois: o início da convivência na esquina da Waverly Place com Christopher Street | Foto: Larry Morris (NY Times)
Cinco noites depois: o início da convivência na esquina da Waverly Place com Christopher Street | Foto: Larry Morris (NY Times)
A influência
A chuva impediu os tumultos nos dias seguintes e a vida parecia voltar ao normal, mas o movimento dos direitos dos homossexuais tinha nascido. Em 28 de junho de 1970, no aniversário do início dos motins de Stonewall, “O Dia da Libertação de Christopher Street”, foi comemorado com um desfile do Stonewall até a 6ª Avenida em direção ao Central Park. Foi a primeira Parada do Orgulho Gay na história dos EUA. Desfiles também foram realizados em Los Angeles e Chicago. Boston, Dallas, Milwaukee, Londres, Paris, Berlim Ocidental e Estocolmo seguiram o exemplo em 1971. E em 1972, Atlanta, Buffalo, Detroit, Washington, Miami, Filadélfia e San Francisco uniram-se ao movimento.
A primeira Marcha do Orgulho Gay em 1970, na cidade de Nova Iorque
A primeira Marcha do Orgulho Gay em 1970, na cidade de Nova Iorque
Dois anos depois do conflito, já havia organizações dos direitos dos homossexuais estabelecidas em quase todas as grandes cidades dos Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da seu manual das doenças mentais. Até hoje, a Christopher Street é considerada a “rua LGBT” de Nova York, e o Stonewall Inn recebe bandeiras de arco-íris em sua fachada para afirmar seu status de “local do nascimento do movimento moderno de libertação gay e lésbico”.
Em 1994, para marcar o 25º aniversário do episódio, o desfile de 28 de junho foi do Village em direção à sede da ONU e depois do Central Park. Estima-se que mais de um milhão de pessoas compareceram. Em 1999, o Stonewall Inn foi colocado no National Register of  Historic Places. E em junho de 2011, pouco antes do 42º aniversário do conflito, o Estado de Nova Iorque legalizou o casamento gay. Milhares de pessoas acorreram a uma festa espontânea no único lugar que serviria para comemorar qualquer coisa relacionada ao Orgulho Gay: o pequeno bar em um quarteirão tranquilo de Christopher Street.
A festa de 2011: casamento gay
A festa de 2011: casamento gay

Para finalizar, uma última informação: em 76 países do mundo a homossexualidade ainda é considerada crime. Em 7 deles a pena prevista é a de morte.