Uma farsa trágica
Heinrich Hoffmann, como muitos outros, não entrou para o palco da História desempenhando um papel principal. Foi definitivamente um actor secundário, porém importante, no desenrolar dos acontecimentos que marcaram o século vinte.
Nascido em 1885, este alemão tornar-se-ia fotógrafo por influência familiar, trabalhando inicialmente no estúdio do seu pai, e mais tarde, a partir de 1908, estabelecendo-se por conta própria na capital da Baviera, Munique.
Se a sua condição de fotógrafo, por si só, não foi suficiente para lhe garantir uma entrada nos manuais de História (não foi um dos mestres dessa vertente artística, era apenas um comercial e competente profissional), a sua opção pela cidade bávara acabaria por ser decisiva.
Será aí que, em 1920, no meio da efervescência política da Alemanha do pós primeira guerra mundial, no período normalmente designado por República de Weimar, que se cruzará com um dirigente de um pequeno e quase desconhecido partido radical, o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), partido a que prontamente adere. A liderança do partido revelara até então alguma desconfiança relativamente à forma como era representada, e Hoffmann será decisivo em inverter essa postura, convencendo o dirigente e ideólogo do Partido, Adolf Hitler, a o nomear fotógrafo oficial.
A desconfiança inicial de Hitler em relação à imagem não advinha de a ela ser avesso, ou de não lhe encontrar valor. Pelo contrário, o futuro líder alemão fora na juventude um aspirante a pintor, tendo falhado uma muito desejada admissão na Escola de Belas-Artes de Viena, na Áustria, o seu país natal. E enquanto político, seria paradoxalmente um agente muito moderno, próximo da actualidade, pela forma como manipulou a imagem na criação da sua persona pública, embora com toda uma linguagem corporal e um imaginário que hoje nos são muito arcaicos.
Adolf Hitler, então o início da sua trajectória política, esforçava-se por, primeiro, criar estabelecer um domínio sólido sobre o NSDAP, e depois, partir para o controle do país. Para isso, cedo intuiu que precisava de associar os seus dotes de oratória, e o seu discurso de uma natureza excessiva e populista, a uma postura e a uma gestão de imagem que lhe dessem estrutura e credibilidade.
E aí, Heinrich Hoffmann foi determinante, sendo seu primeiro grande aliado nessa batalha das imagens (mais tarde segui-lo-iam outros, nomeadamente a cineasta Leni Riefenstahl). Toda as representações fotográficas do líder seria controladas por Hoffmann e pelo próprio Hitler, visando uma uniformidade e eficácia comunicativa que é inegável. Este controle rígido e exclusivo foi aliás um fantástico negócio para ambos, na medida em que qualquer uso da imagem do líder nazi implicava o pagamento de direitos, e em que, uma vez conquistado o poder, a imagem de Adolf Hitler se tornou omnipresente, estando em tudo, desde da imprensa até aos selos de correio.
Este empreendimento comunicacional nada tinha de documental. A imagética nazi era um tremendo exercício teatral, a naturalidade não era um objectivo. As situações, as posturas, os tons, tudo era, em grande parte, uma falsidade friamente ensaiada.
A prova maior desta evidência, consiste num conjunto de imagens, feitas pelo fotógrafo a pedido de Adolf Hitler, em 1925. Nelas, o futuro ditador aparece num ensaio de poses para usar em aparições públicas, e que visavam obter um reflexo mais distanciado do que aquele que obteria num espelho, uma visão mais próxima daquilo que seria visível pelos assistentes aos seus comícios.
As imagens serviram para apurar a sua técnica de postura, e uma vez analisadas por Hitler, este solicitou a Hoffmann que as destruísse. O seu objecto estava atingido, e não era suposto serem publicadas, uma vez que não transmitiam um versão de si que Hitler considerasse digna.
Ordem que Hoffmann, um dos mais próximos e fiáveis colaboradores do dirigente nacional-socialista, não cumpriu, fosse por cálculo, fosse por esquecimento.
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha
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Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925.Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
Heinrich Hoffmann, ensaio gestual de Hitler, Alemanha, 1925. Arquivos da Bayerischen Staatsbibliothek, Munique, Alemanha |
A teatralidade exagerada que acompanhava os discursos inflamados de Adolf Hitler, e que agora nos parece tão evidente e estranha, não escapou decerto aos seus contemporâneos. O actor e realizador Charles Chaplin mordazmente caricaturizou os seus trejeitos em "The Great Dictator" ("O Grande Ditador", em Portugal e no Brasil), em 1940.
Charles Chaplin no filme "The Great Dictator", E.U.A., 1940Wikimedia commons |
No entanto, a forma como essa teatralidade era lida era bastante diferente. Nas primeiras décadas do século vinte, o "underacting" não era uma estratégia muito apreciada, quer no teatro, quer no cinema. O cinema era inicialmente mudo, e a ausência de som implicava a transformação do acto de representar em algo mais próximo da actividade de um mimo do que de uma interpretação natural. Quem assistia a um discurso de Hitler, ou a um filme de um discurso seu, estava familiarizado com aquela forma exagerada de representação, e estava de alguma forma mais predisposto a ser cativado por ela.
Esta familiaridade acabou por ser algo trágica, e ajuda a explicar a relativa facilidade com que Hitler chegou ao poder e assumiu um domínio absoluto. Para grande parte da elite alemã, Hitler era um personagem algo ridículo, mas não verdadeiramente preocupante. De algum modo, a consciência da teatralidade dos seus comícios levava-os a crer que o ódio e o carácter primário das ideias que defendia eram, no fundo, um papel que representava para chegar a chanceler, mas que não seria verdadeiramente para levar a sério. Mesmo entre os membros da comunidade judaica alemã, muitos partilhavam desse ponto de vista, menorizando o perigo.
Mas a História veio provar o quanto estavam enganados. Hitler (e Hoffmann, nas suas secundárias funções) eram actores que acreditavam verdadeiramente no enredo que interpretavam.
Em obvious