Os nomes nos quadros deixaram os policiais e a perícia atônitos: Matisse, Picasso, Chagall, Renoir, Dürer, Beckmann, entre muitos outros.
Flávio Aguiar/Carta Maior
Há muitas histórias – a maioria lendárias – sobre tesouros nazistas ocultos. Elas vão desde barras de ouro em fundos de lagos a fantásticas somas de dinheiro transportadas para a América do Sul via Lisboa.
Mas agora, na semana em que se “comemora” o 75º. aniversário da Krystallnacht – noite dos cristais, pogrom contra sinagogas e lojas judaicas – veio à luz o que parece ser, de fato, a descoberta de um autêntico tesouro amealhado a partir da coleta de peças de arte feitas pelos nazistas, inclusive pelo próprio Führer.
A revista Focus foi a primeira a revelar que algum tempo atrás as autoridades policiais haviam descoberto cerca de 1500 pinturas guardadas secretamente na casa de um certo Cornelius Gurlitt, um cidadão que vivia completamene isolado, como um ermitão, sem família nem amigos.
Cornelius Gurlitt chamara a atenção de autoridades alfandegárias ao viajar num trem de Zurique para Munique, em 2010, com 9 mil euros nos bolsos. Transportar 9 mil euros através da fronteira sem declará-los não é crime nem contravenção. Mas o que chamou a atenção foi o fato de Gurlitt não ter conta em banco, nem seguro saúde, nem jamais ter declarado renda para o fisco. Apesar disto era proprietário de um apartamento razoável e levava uma vida aparentemente confortável.
Ao inspecionar seu apartamento já em 2012 as autoridades decobriram nada mais nada menos que 1285 quadros sem moldura, 121 com moldura, entre pinturas a óleo, aquarelas, desenhos e litografias, cuidadosamente armazenados e em bom estado, por trás de montes de pacotes tetra de suco e de comida enlatada dos anos 80. Os nomes nos quadros deixaram os policiais e a perícia chamada depois atônitos: Matisse, Picasso, Chagall, Renoir, Dürer, Toulouse-Lautrec, Canaletto, Beckmann, Munch, entre muitos outros. Segundo se acredita Cornelius chegou a vender alguns dos quadros para se manter.
Tudo o que se segue é ainda objeto de investigação, mas os indícios são muito contundentes sobre a veracidade do que vai se contar.
Tudo começou em 1934, na cidade de Zwickau, onde um diretor de museu perdeu seu emprego por ter ascendência judaica: Hildebrand Gurlitt, o pai de Cornelius. Apesar desta primeira queda em desgraça, Hildebrand conseguiu se recuperar graças a seus conhecimentos no mundo e no mercado de artes. Já nesta época Hitler desejava criar um “Führersmuseum” em Linz, na Áustria, perto de sua cidade natal, Braunau am Inn. Uma das principais seções do museu seria dedicada àquilo que os nazistas consideravam como “arte degenerada”, em geral de modernistas, mas também de judeus, comunistas, e outros seres “indesejáveis”. E Gurlitt tornou-se um dos encarregados de coletar obras para este fim.
As “coletas” eram feitas através de confisco ou de compras – em geral a preço reduzido, no caso de obras vendidas, por exemplo, por proprietários judeus que desejavam fugir dos fascistas, muitas vezes literalmente “comprando” a sua liberdade através destas vendas rebaixadas. As obras assim coletadas foram reunidas provisoriamente num “Sonderauftrag”, na cidade de Dresden, enquanto se esperava a construção do museu em Linz.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a construção do museu foi postergada e depois postergada para sempre, com a derrota dos nazistas. Hildebrand declarou que as obras que ele coletara foram todas transportadas para Dresden, e acabaram destruídas no bombardeio de 15 de fevereiro de 1945, que arrasou o centro da cidade com bombas explosivas e incendiárias. E a coisa ficou por isso mesmo, inclusive porque em 1956 Hildebrand morreu num acidente de carro, deixando o filho, Cornelius, como o único herdeiro.
Agora a descoberta do acervo levanta uma série de questões. A primeira é, obviamente, o que fazer com ele. A questão é complexa. É necessário identificar e catalogar cada obra, para tentar saber sua procedência. Além das compras e dos confiscos forçados – hoje declarados ilegais – também houve “arte degenerada” retirada de museus. No caso de haver herdeiros vivos, a lei alemã e as leis internacionais prevêm a devolução das obras. Até o momento, há uma única pesquisadora fazendo este trabalho o que, aliás, é motivo de crítica na mídia alemã e europeia, pois ele deveria envolver uma equipe numerosa para agilizá-lo.
Outra questão é a de levantar se de fato Cornelius vendeu parte, ainda que pequena, das obras que “herdou” do pai, e se este também vendera algo. Se for este o caso, quem comprou? Em que circunstâncias? Dificilmente foram vendas regulares, a operação deve ter sido feita no “paralelo”. Como recuperar estas obras? Haverá como e porque acusar os compradores de crime de receptação? As penas continuam sendo muito severas para tais atividades, sobretudo se envolvem os tempos do nazismo. Hoje não é mais o caso, mas na Holanda, por exemplo, logo depois da guerra, ter vendido “tesouros nacionais” aos nazistas era crime passível de pena de morte (v. o excelente livro de Frank Wynne, “Eu fui Vermeer: a lenda do falsário que enganou os nazistas”. No Brasil, Cia. das Letras, 2008).
Finalmente, há a questão do que fazer com Cornelius que, no momento, saiu de sua casa para destino ignorado. Ele está com 80 anos e, além de guardar irregularmente estas obras, apresenta sintomas de alguma perturbação emocional. Consta que enquanto os policiais vasculhavam a sua casa, em 2012, ele ficou fechado num quarto escuro. Seu único comentário teria sido: “vocês poderiam ter esperado que eu morresse. Iriam ficar com as obras de qualquer jeito”.
Créditos da foto: BARBARA GINDL/EFE