"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." Seguramente a mais citada frase do esplêndido Machado de Assis. Está em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881).
Machadinho, como assinava em suas cartas à amada companheira e esposa, Carolina. E Machadinho, que é como o chamam seus leitores mais íntimos, e eu sou um deles, na vida dita real não deixou filhos: seu legado foi-se com ele, também conhecido como O bruxo do Cosme Velho por outra escola de admiradores e estudiosos.
A não ser mediante um comercial para a Caixa Econômica Federal (CEF), que, essa sim, deixou miséria como legado, ao que tudo indica.
O comercial foi bolado e caprichosamente filmado pela agência publicitária Borghier/Lowe que, a se julgar pelo nome, tem seu legado originado em outro país que não o Brasil. Serão os famosos superheróis Mad Men?
No comercial, Machado (façamos uma conta de chegar) entra num banco, é efusivamente cumprimentado por um caixa e, a seguir, vemos parte de uma carta-testamento de nosso (é de bom estilo não se repetir, diria o escritor) maior e mais internacional beletrista. Está no UOL para quem quiser conferir.
Deu-se, desde a lâmpada que se acendeu numa festa de luz sobre as nobres cabeças dos publicitários às voltas com a melhor maneira de comemorar os 150 anos (sesquicentenário, devem ter pensado lá eles) da Caixa Econômica.
Roteiro, diálogos, cuidados mil, pesquisa por um banco com jeito antigão, roupas da época, tudo enfim. Só faltou uma coisa – e isso vem sendo amplamente divulgado em nossa imprensa – a cor de pele de Machado. Botaram um ator branco de peruca torta e mal feita, beirando o ridículo, para fazer o papel de nosso maior escritor.
A coisa foi para o ar. No que passou totalmente despercebida pela população com e sem legados para receber e deixar.
Menos para a Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) que prontamente disparou uma bala na testa da Caixa e da agência que bola seus anúncios.
A Caixa, que tem um legado a zelar, respondeu de bate-pronto desculpando-se em nota oficial, na qual dizia pedir desculpas "a toda população e, em especial, aos movimentos ligados às causas raciais, por não ter caracterizado o escritor, que era afro-brasileiro, com sua origem racial."
A Seppir fincou o pé e, na segunda-feira passada, classificou o comercial como uma "solução publicitária de todo inadequada por contribuir para a invibilização dos afro-brasileiros, distorcendo evidências pessoais e coletivas para a compreensão da personalidade literária de Machado de Assis, sua obra e seu contexto histórico." Invibilização é bom.
Ou seja, a Seppir foi de uma inabilidade (Machadinho chamaria de burrice) ímpar e par também.
A Caixa Econômica não quis ficar atrás: divulgou nota cheia de dedos e rebarbativa (boa palavra machadiana) se desculpando e só faltou doar uma boa quantia para aqueles que, também para ela, passaram a ser "afro-brasileiros" destituídos de fama, talento ou dinheiro.
De besteira, Machado só fez mesmo fundar a Academia Brasileira de Letras, mas ele não poderia saber – afinal, não era tão bruxo assim – no que aquilo diria dar.
Em nenhum registro da momentosa questão (até os que torcem por Euclides da Cunha notaram) usou-se a palavra adequada para Machadinho: era mulato.
Se o chamassem de "afro-brasileiro" garanto que, mesmo franzino, como se pode constatar de suas fotos, descia o braço no cidadão que se atrevesse.
Repetindo: Machado de Assis era mulato. O que na época, e hoje também, não tem absolutamente nada demais e nunca foi nem será xingamento ou menosprezo.
Arrisco um palpite: legado miserável mesmo é o da nossa ignorância. Duvido que qualquer um das dezenas de publicitários (manjo o time) que se envolveram na tolíssima produção soubesse que Machado fosse mu-la-to.
Aí sim, está o preconceito.