A verdade não rima
“Quantas vezes se leu só nesta semana/ Essa história contada assim por cima/ A verdade não rima.” (Elis Regina, “Onze Fitas” (1980), escrita por Fátima Guedes para a peça O Dia da Caça, de José Louzeiro.
Se jornalistas têm dificuldade para entender que a violência urbana é “uma representação, uma construção simbólica que recorta determinados aspectos das relações sociais e é, nesse sentido, uma descrição seletiva da realidade, que orienta condutas”, como disse a professora Maria Stela Grossi Porto numa palestra em Brasília, em agosto, citando trabalho de 1993 do professor Luis Antonio Machado da Silva, imagine-se a dificuldade das vítimas dos jornalistas – leitores, ouvintes e telespectadores – para captar o fenômeno.
A “descrição seletiva da realidade” que pratica a mídia jornalística é determinada, na absoluta maioria dos casos, por um empenho profissional sensacionalista, escravo voluntário da busca de audiência à outrance, para usar expressão comum nos tempos do saudoso Tristão de Athayde, o Doutor Alceu.
Esse jornalismo fez escola: na
Folha de S. Paulo (domingo, 12/1, “
O Maranhão de verdade“), a governadora Roseana Sarney atribui à “expansão do crime organizado pelo território nacional, apoiado na exploração do tráfico de drogas” as desgraças que ocorrem nos presídios de seu estado. É o terror generalizado, da Cracolândia paulistana a Pedrinhas (curioso nome, no caso).
O espectro do PCC
O ponto de partida de Roseana é um noticiário que atribui ao espraiamento de quadrilhas – PCC, Comando Vermelho e congêneres – parcela ponderável da responsabilidade pelo aumento da criminalidade em estados que, como o Maranhão, não ostentam índices altos de homicídios.
De muitos anos para cá, a disseminação da retórica jornalística é tão grande no Brasil que várias outras instâncias da vida pública passaram a usá-la. Notadamente, publicitários e autoridades. E a simbiose entre os discursos dessas duas categorias é cada vez mais carnal.
A tese da governadora não se sustenta, embora ela tenha razão quando diz, com outras palavras, que o crescimento capitalista brasileiro fomenta o crime. Em São Paulo e no Rio, por exemplo, estados de origem das duas grandes quadrilhas acima mencionadas, os homicídios em prisões estão em queda histórica. Quer dizer: os registrados oficialmente.
“Gatorade”
Abre parêntese: existe uma modalidade de assassinato (o “Gatorade”) que não entra nas estatísticas oficiais: o preso é dominado dormindo e forçado a engolir uma mistura de creolina, cocaína, água e Viagra (ver “
Facção é suspeita de mandar matar assassinos de menino boliviano“,
Folha, 13/9/2013). Logo estará morto sem sinal externo de violência. Seus companheiros de cela dirão que ele “passou mal”, até chamaram os carcereiros, ninguém atendeu. Só os mortos de São Paulo são autopsiados. Nesse caso, se apontará como causa da morte “intoxicação aguda”. Nos demais, ataque cardíaco, mal súbito etc. A cadeia parece em paz, ninguém é indiciado e as estatísticas não se mexem. Fecha parêntese.
A Folha publicou na quinta-feira (9/1) uma tabela (ver abaixo) na qual se pode constatar que houve 128,6 homicídios por 10.000 nas cadeias maranhenses em 2013, comparados com 1,04 por 10.000 em São Paulo e 2,06 por 10.000 no Rio de Janeiro.
Se as quadrilhas não estão praticando ostensivamente muitos assassinatos nas cadeias onde mandam e desmandam, por que levariam estratégia oposta para outros estados? Para chamar a atenção e atrapalhar os negócios?
Capital e interior
Não, o fenômeno maranhense decorre de uma decisão das autoridades carcerárias do estado que teve resultados altamente negativos. Está explicado em texto de Bruno Paes Manso publicado no
O Estado de S. Paulo (quarta-feira, 8/1, “
Em meio ao caos, presos montam duas facções no estado“).
O governo resolveu levar presos do interior para a capital. Hostilizados pelos locais, os interioranos criaram um Primeiro Comando do Maranhão e começaram a se impor, o que levou ao surgimento do Bonde dos 40, formado por sentenciados metropolitanos. Acabou-se o equilíbrio instável que existia em Pedrinhas e o conflito se aguçou, num quadro de tremenda precariedade.
Leve-se em conta que o número total de presos do Maranhão equivale a 2,2% da população carcerária paulista. Não é fácil administrar 4.600 presos num estado tão pobre. O Cadeião de Pinheiros, em São Paulo, tem entretanto mais homens encarcerados (5,8 mil) do que todo o Maranhão.
Esse Cadeião de Pinheiros comportaria 2 mil presos. Suas condições são dantescas, mas não há no momento uma matança em série. Aí, entretanto, não se impõem “penas” como entregar a própria mulher ou irmã para servir ao apetite sexual de alguém do grupos inimigo. Coloque-se no lugar do preso maranhense submetido a essa “punição”, leitor: o que você não cortaria, se pudesse, do algoz de sua mulher ou irmã? Ficaria inerte, num ambiente em que a “macheza” é passaporte para sobreviver?
Balizas para a reflexão
Em recente debate de jornalistas, advogados e intelectuais, alguns pontos da questão carcerária brasileira foram postos em relevo. Eis uma síntese.
1. A política de encarceramento em massa, calcada na falta de clareza da legislação sobre tráfico e porte de drogas (rico é usuário, pobre é traficante, a critério dos policiais que os enquadram e dos juízes que aceitam testemunhos e evidências produzidos por esses policiais), criou um quadro explosivo nas prisões do país todo. O que já era ruim ficou pior.
2. Mutirões de defensoria pública diminuem o número de presos. Quando era presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o então presidente do STF, Gilmar Mendes, liderou um processo de mutirões que tirou das prisões 30 mil pessoas. Por que não se cobra do atual presidente do STF e do CNJ, Joaquim Barbosa, uma nova iniciativa desse tipo?
3. O reforço das defensorias públicas estaduais, de caráter permanente, é medida estratégica para aliviar a pressão no sistema carcerário. (Aliás, as permissões de saída em datas especiais têm, ao lado da face negativa, devolver bandidos à atividade criminosa, uma face positiva, abrir vagas.)
4. As novidades negativas do sistema carcerário são refutadas pelas autoridades, com a conivência de boa parte da mídia jornalística, até que isso se torna impossível. Foi o caso do PCC, desde sua criação, em 1993, como resposta ao Massacre do Carandiru (1992). Ainda recentemente, quando houve uma declaração de guerra entre PCC e Rota (tropa de choque da PM paulista) que resultou na morte de mais de 100 policiais, ao longo do ano de 2012, o então secretário de Segurança paulista, Antônio Ferreira Pinto, declarou que o PCC tinha não mais do que 30 ou 40 integrantes. Os veículos da Globo, e alguns mais, do tipo Maria-vai-com-as-outras, até hoje não pronunciam ou escrevem o nome PCC, apenas “facção criminosa”, como se se tratasse de alguma dissidência de partido político ou grupo revolucionário. O argumento, furadíssimo, é que não querem fazer “propaganda” do bando. Com isso, tentam esconder da população parte da realidade.
5. É preciso ter um olhar compassivo para a população carcerária. São seres humanos e não há nada que autorize ou justifique a violação de seus direitos. Muita gente apoia a barbárie prisional brasileira a partir da convicção de que “bandido bom é bandido morto”, “eles merecem”, “eles que se matem”, sem se dar conta de que esse sistema tornou-se uma escola e uma fábrica de criminosos que retroalimentam o sentimento de insegurança.
6. Há quem argumente que as prisões são um concentrado da desigualdade social brasileira e exatamente por isso são mantidas em condições degradantes. É uma tese otimista, porque exime da opressão estatal quem está fora da prisão, quando, de fato, a prisão é o ponto extremo da cadeia de opressão dos socialmente mais frágeis.
7. Quando se diz que cada preso “custa” R$ 2,5 mil por mês ao Estado (sem contar despesas indiretas, como as da saúde pública etc.), a equação está sendo invertida. O que acontece na verdade é que os 500 mil encarcerados brasileiros rendem R$ 2,5 mil mensais por cabeça aos fornecedores do sistema. Um negócio, portanto, de R$ 15 bilhões por ano.
8. Há quem veja ausência do Estado dentro das cadeias e há quem conteste essa percepção, sob o argumento de que existe um fio unificador que vai do crime às autoridades, das cracolândias ao sistema financeiro, passando por uma miríade de mediações mais ou menos perceptíveis – mas veladas pela hipocrisia, porque os “de cima” raramente vão para o presídio, e, quando isso acontece, têm recursos para garantir um mínimo de segurança e conforto, como se vê hoje na Papuda, em Brasília –, ou imperceptíveis. Os governos não melhoram as cadeias, dizem os adeptos dessa ideia, porque, por ação ou omissão, são sócios dos esquemas nelas radicados.
9. A prisão dos condenados do mensalão colocou em destaque na mídia a questão carcerária brasileira.
10. Em São Paulo, existe uma coerência administrativa perversa que pode ser retraçada no tempo até o governo de Franco Montoro (PMDB, 1983-87), quando Michel Temer foi secretário de Segurança (1984-6, 1992 e 1993). Seguiram-se Orestes Quércia (1987-91), Luiz Antônio Fleury Filho (responsável último pelo Massacre do Carandiru; Fleury foi secretário de Segurança de Quércia e defendia a pena de morte), ambos também do PMDB, e os governadores da dissidência tucana, o PSDB, Mário Covas (1995-2001), Geraldo Alckmin (2001-06 e desde 2011), José Serra (2007-10) e Alberto Goldman (2010), com um dramático intermezzo arenista-pefelista de Cláudio Lembo (2006), quando o PCC parou a cidade de São Paulo. Não foram, porém, os governadores da vertente peemedebista-peessedebista que criaram o problema. Ele é muitíssimo mais antigo. Para dar um só exemplo, em junho de 1952 os presos da Ilha Anchieta, no litoral norte paulista, rebelaram-se e tomaram o presídio. O governador era Lucas Garcez. O secretário de Segurança, Elpídio Reali (pai do saudoso jornalista Reali Júnior, 1941-2011). João Pereira Lima, vulgo Pernambuco, líder da revolta, explicou:
“Há muito tempo, os presos viviam descontentes com o regime do presídio. (...) Os policiais obrigavam os doentes a tomar purgantes e, depois, os sujeitavam a carregar lenha do mato. (...) E nem é bom falar da alimentação que nos davam, que era uma porcaria. É lógico, o indivíduo doente e tomando purgante não ia aguentar o rojão. Mas aí, os tais policiais chegavam e começavam a espancar todo mundo. E foi esse o real motivo da rebelião” (Nosso Século, v. 4, São Paulo, Abril Cultural, 1980, pág. 112).
Morreram cem pessoas nessa rebelião. Outro motivo de descontentamento dos 453 presos:
“Muitos deles estavam com as penas vencidas, mas continuavam presos por falta de assistência jurídica; por outro lado, as visitas de familiares eram raras, devido às difíceis condições de acesso à ilha. Tudo isso fazia do presídio um barril de pólvora prestes a explodir” (ibidem).
A rebelião foi espontânea. Quem quiser recuar mais no tempo para ter uma ideia do tratamento dado no Brasil aos condenados pode ler o conto “Como o homem chegou”, de Lima Barreto.
Resiste-se a ver as determinações políticas de todo esse enredo. Seria como tirar as máscaras de todos nós, os que cumprimos a obrigação de votar e os que são eleitos, os que silenciamos e os que fazemos discursos enganadores.
As decapitações horrorizam (e mais ainda porque exploradas em desatinada busca de audiência), mas são antigas no Brasil. O que faziam os gaúchos em suas guerras civis do século 19? Quem não conhece
esta foto, feita há 75 anos? Quem ensinou a decapitar?
Como diz a letra genial de Fátima Guedes, “Esses tempos não tão pra ninharia/ Não fosse a vez daquele, um outro ia/ Quantas vezes se leu só nesta semana/ Essa história contada assim por cima/ A verdade não rima”.