Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI
decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem
ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor
da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe
Portier, chama “uma continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo
II, descobriu em um informe elaborado por um grupo de cardeais os
abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção,
finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de
documentos secretos, luta entre facções, lavagem de dinheiro. O Vaticano
era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral
alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições,
artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e
privilégios a frente das instituições religiosas.
Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o
mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do
planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro
dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas
vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador
da obra de João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor
acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das
teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a
propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor
veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses
dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático
da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e
científicas do mundo moderno.
O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde
2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de
um dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da
verdade”. Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois
do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa
e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria
qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso
contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e
ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke
tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha ideia é
trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada
de claro na cúpula da igreja católica.
A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo
mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi
uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos:
operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone,
conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um
italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de
segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a
Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de
redesenhar.
Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou.
Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os
tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor
Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras
missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções
canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e
ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no
seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla,
apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.
Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se
empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a
respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou
sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim
financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das
querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas
maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada
por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise
atual.
Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti
Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de
Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante
do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da
preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate,
publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais
justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema
financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas
das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de
corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam
ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de
prisão contra o arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, o chamado
“banqueiro de Deus”, presidente do IOR e máximo responsável pelos
investimentos do Vaticano na época.
João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano
para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois
devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não
contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade,
algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus
dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de
perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de
junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em
Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano.
Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía,
além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida
como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.
Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só
permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma
fulminante em 2012 por supostas “irregularidades” em sua gestão.
Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do
Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado
por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na
verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre
facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a
elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas
secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários,
construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina
Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no
IOR por meio de laranjas.
Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz
que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por
conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor
Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de
cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio
acompanhada pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento
de documentos roubados do papa.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do
banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita
renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs
reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para
defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível
de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no
qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados,
circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que
um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.
Tradução: Katarina Peixoto