O complicado assunto neonazi na Alemanha
Enquanto os eurolíderes se debatem com a banca financeira, por ela
comprimidos agora na Espanha, novo (?) elo fraco na cadeia, enquanto a
Itália está na sala de espera da UTI, o complicado assunto neo nazi
voltou a mostrar o nariz – e a cara inteira – na Alemanha.
Por Flávio Aguiar*
A revista Der Spiegel (versão em inglês)
trouxe à luz copioso noticiário, a partir de um dossiê de duas mil
páginas das duas agências do Serviço Secreto Federal Alemão (Bundesamt
für Verfassungsschutz e Bundesnachrichtendienst), sobre ser inteiramente
falsa a difundida e, na verdade, nunca contraditada versão de que
grupos de esquerda, como a RAF (Rote Armee Fraktion, também conhecida
indevidamente como “Grupo Baader-Meinhof”), teriam ajudado os membros da
facção palestina Setembro Negro que assaltaram o prédio 31 da Vila
Olímpica em Munique, onde se hospedava a delegação israelense, durante
os Jogos Olímpicos de 1972.
No assalto, os oito assaltantes mataram dois dos israelenses (um
atleta e um treinador) e sequestraram outros nove, no dia 5 de setembro.
Queriam troca-los por 234 prisioneiros palestinos e também por alguns
prisioneiros da RAF, fato que, entre outros, levaram à “conclusão” de
que essa organização alemã os tinha ajudado.
No dia 6, ao tentarem embarcar num avião que os levaria para fora do
país, num aeroporto militar, foram interceptados por uma operação
anti-terrorista das Forças Armadas alemãs, o que redundou numa
catástrofe. Os assaltantes mataram todos os reféns (embora haja a
suspeita de que alguns deles possam ter morrido no fogo cruzado). Dos
oito terroristas, cinco morreram na hora e três foram presos. Mais tarde
esses três foram libertados através do sequestro de um avião da
Lufthansa. Mas dois deles morreram em operações posteriores do Mossad,
que eliminou quase todos os suspeitos de participação ou planejamento no
ataque de Munique. O terceiro assaltante vive até hoje na
clandestinidade, enquanto o idealizador do sequestro, Abu Daoud, morreu
em 2010 de causas naturais.
O dossiê comprova que Abu Daoud tinha uma estreita ligação com Willi
Pohl, hoje beirando os 70 anos, que conseguira-lhe pelo menos carros
para a operação, além de levá-lo a viajar por toda a Alemanha. Há a
possibilidade de que Pohl tenha conseguido também armas, embora ele,
numa entrevista à própria Der Spiegel, o negue. Em todo caso, colocou
Daoud em contato com Wolfgang Abramovski, reconhecido falsificador de
documentos que, levado para as cercanias de Beirute, provavelmente
forneceu passaportes para o grupo.
Ocorre que Pohl e Abramovski não eram membros de nenhum grupo
terrorista ou não de esquerda, mas sim de uma célula neonazista, e foram
denunciados à polícia ainda antes dos acontecimentos de Munique,
inclusive sobre a ligação com Daoud, por um ex-colega de militância e
pelo ex-patrão do primeiro, de quem ele tomara algum dinheiro.
Depois do conhecido “Massacre de Munique”, Abramovski e Pohl foram
presos, em outubro daquele ano, de posse de considerável arsena de
armamentos, panfletos e cartas ameaçadoras ao juiz que dirigia o
processo contra os três sobreviventes da tragédia, parte de um primeiro
plano para libertá-los, que evidentemente não foi adiante. Desde então o
Serviço Secreto alemão já sabia que a conexão alemã do Setembro Negro
era neonazi, e não esquerdista, como comprovam mensagens trocadas pelas
agências envolvidas, que nunca vieram a público – até esta semana.
É claro que restam milhares de luzes e perguntas acesas e ainda sem respostas sobre esse caso e esse dossiê. Algumas delas:
1) Se agisse de modo mais consistente, investigando a fundo as
denúncias que recebera, o Serviço Secreto alemão poderia ter evitado o
sequestro?
2) Essa é mais uma operação neonazi na história alemã pós-Segunda
Guerra que “passa batida”, num primeiro momento, por essas agências e
que a opinião pública fica com a versão de que seriam outros os
implicados. Qual o significado disso?
3) Grupos de esquerda – a RAF em particular – foram acusadas de forma
disseminada de participação na tragédia. Nada se fez durante quatro
décadas para desmentir essa acusação. Por quê? (É verdade que
declarações bombásticas de mebros da RAF, inclusive de Ulrike Meinhof,
ajudaram a forjar essa impressão, mas tudo, hoje está comprovado, era
blefe, não realidade).
4) Surpreendentemente, quando julgados em 1974, Pohl e Abramovski
receberam penas extremamente leves, somente por “posse ilegal de armas”.
Por que? O que isso significa?
Para arrematar: segundo a revista, Pohl hoje nada tem a ver com
terrorismos ou com quaisquer atividades neonazis. É autor (de sucesso)
de histórias policiais, inclusive como roteiros de TV, com outro nome, é
claro. De Abramovski não se tem notícia.
* Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim