segunda-feira, 1 de abril de 2013

Secretária de planejamento fala sobre Pinheirinho 2 e os desafios (reais!) da gestão de São Paulo

Confiram abaixo entrevista da secretária de planejamento, orçamento e gestão da prefeitura de São Paulo, Leda Paulani, publicada na Folha no dia 28 de março.

Pinheirinho 2 mostra lógica mercantil, diz secretária de SP

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
O conflito na reintegração de posse na área conhecida como Pinheirinho 2, em São Paulo, é um episódio paradigmático do desenvolvimento urbano pautado pela lógica mercantil, cuja finalidade última não é o ser humano. As sentenças judiciais de desocupação deveriam levar em conta também a função social da propriedade.
A visão é da secretária de planejamento, orçamento e gestão da cidade, Leda Maria Paulani, 58. Para ela, “Se o Estado não entra para reequilibrar o jogo, é um desastre”.
Nesta entrevista, ela afirma que a força do capital em São Paulo construiu espaços privados e deixou o interesse público de lado. Daí decorrem os problemas da megalópole, onde convivem a riqueza suntuosa e a pobreza aviltante. A cidade tem um “déficit de urbanidade”, declara.
Economista marxista, ela critica a condução da política econômica federal e define a atual administração como “progressista e protossocialista”. Na sua visão, o melhor caminho seria construir um amplo programa de investimentos públicos.
Paulani identifica em Brasília um forte discurso ortodoxo que “enxerga o ressurgimento do fantasma inflacionário em cada esquina”. E prevê que a tendência de queda dos juros não deve persistir.
Aqui, ela fala também das dificuldades da gestão e da discussão sobre o orçamento participativo.
Folha – Como a sra. explica casos como o de Pinheirinho 2? Leda Paulani - É um episódio paradigmático de uma situação em que o desenvolvimento urbano e a própria ocupação urbana e a relação com a propriedade da terra foram se dando de uma maneira desordenada e sem nenhuma participação ativa do poder público para que isso não produzisse resultados tão nefastos para a vida social da cidade. Há duas cidades dentro de São Paulo: uma cidade dos direitos, da democracia, da cidadania, da vida material minimamente organizada, e outra meio da barbárie.
Quando na gestão da Marta Suplicy pensamos nos CEUS, foi um pouco nesse sentido: colocar o Estado com presença forte nas periferias para ir mudando esses espaços da cidade. Os processos que são comandados pela lógica mercantil são muito poderosos. Isso fica visível no preço dos imóveis, dos terrenos de três anos para cá: subiram muitíssimo além do que qualquer alteração monetária justificaria. Esse episódio é exemplo disso.
E como se combate?
O prefeito interveio rapidamente e com força para evitar cenas de violência. [A prefeitura] vai fazer o possível e impossível para resolver isso de uma forma civilizada.
Há confusão no cadastramento?
Parece que tem problemas. Correndo atrás do prejuízo, se pode resolver e melhorar. Impedir que, por conta de uma sentença judicial que segue os usos e costumes…
Como assim?
[As sentenças judiciais] têm sido pautadas, como sempre, pelos interesses privados e por uma leitura estrita dos direitos de propriedade.
A Justiça tem sido pautada pelos interesses privados?
Talvez seja um pouco leviano dizer isso dessa forma. Mas se fosse levado em conta, de outro lado, a função social da propriedade, que está na Constituição, talvez algumas dessas sentenças tivessem outro teor. A sociedade brasileira é patrimonial. O peso da propriedade é indiscutível, cláusula pétrea da sociabilidade brasileira.
Nesse caso específico há uma série de coisas que é possível, mas o ideal seria que não houvesse mais esse tipo de situação. Que houvesse um mínimo de controle do processo de ocupação urbana, de ordenação urbana. O poder da especulação, lógica mercantil é inversamente proporcional ao poder do poder público. Se há vontade política do poder público de ordenar o processo, no médio prazo, a tendência é a redução do número desses episódios lamentáveis.
A especulação é muito forte em São Paulo?

Quando há um processo de financeirização forte, ocorre um processo de formação de bolhas de ativos. É natural. A terra é um ativo real dos mais importantes. Essa lógica mercantil entra em um município como SP e vai varrendo, levando de roldão as coisas. E o que é a especulação? É quando se mantém um determinado ativo para ganhar com a variação de preço dele.
Nesse caso específico há especulação?
É difícil afirmar assim. Seguramente se ele não iria usar a terra, como não usou. Essa terra ficou lá e houve invasão. A invasão, de certa forma, o ajuda, porque quase que impõe uma desapropriação. Ele está errado, fez algo ilegal? Não. Mas é um comportamento especulativo. Se mantém o ativo não para usufruir do benefício que ele possa te dar.
As bolhas de ativos são muito frequentes, como a historia tem mostrado nesses últimos 30 anos.
Há uma bolha em São Paulo?
Dizer que há bolha é dizer que vai estourar. É preciso qualificar. As bolhas podem estourar ou desinflar simplesmente absoluta ou relativamente. Se dizia há 3 ou 4 anos que havia uma bolha de imóveis em SP, os preços estouraram . Mas não houve estouro de bolha. Como aconteceu nos EUA na crise de 2008. Não dá para dizer que alguma coisa desse tipo está aqui. Mas quando o preço de alguma coisa sobe de uma maneira que não é possível justificar, e se esse negócio é um ativo como a terra terreno em SP sempre foi muito caro e de uns tempos para cá subiu muito mais_ tem alguma coisa acontecendo aí.
Resumindo, este caso é …
Paradigmático dessa situação em que se tem um contexto de financeirização em que a lógica financeira comanda as transações. Nesse enquadramento, é normal que os ativos sejam objeto de especulação e a terra se torne uma mercadoria financeira.
E como ficam as pessoas ficam nesse jogo?
As pessoas acabam estorvando esse jogo. Nesse caso, elas acabaram até ajudando o jogo. A lógica mercantil é uma lógica em si mesma. A finalidade ultima dela não é o ser humano. Marx foi quem mais claramente colocou isso. Nesse caso se aplica de forma redobrada e triplicada. Karl Polanyi [autor de "A Grande Transformação"] diz que três coisas não deveriam ter sido transformadas em mercadoria: a terra, o trabalho e o dinheiro. Porque isso destrói a sociedade. Ele não deixa de ter razão. Terra, dinheiro e trabalho têm a forma de mercadoria, mas mercadoria, de fato, não são, e não poderiam sê-lo. Funcionam como mercadoria de acordo com a lógica mercantil. Nesse contexto, o que acontece com o ser humano e com necessidades humanas importa menos. Se o Estado não entra para reequilibrar o jogo, é um desastre.
O Estado teria que ser mais duro contra a especulação?
Se o Judiciário quisesse de fato fazer valer o que está na Constituição, não poderia jamais ter dado uma sentença dessas. A terra está com essas famílias há quanto tempo? O que ele [o proprietário] fez lá? Nada. Uma terra enorme, 130 mil metros quadrados, numa cidade como São Paulo, onde se tem uma enorme escassez de terrenos.
O prefeito prometeu as creches. Fizemos um força tarefa para encontrar terrenos. É um sufoco para conseguir [terreno] onde se precisa e que não se seja esfolado para comprar. Tudo é um absurdo de caro. Um sujeito tem um terreno desse tamanho, não faz nada com ele. Se não se aplicar aí a função social da propriedade, vai aplicar onde?
A sra. defende, então, que o Judiciário considere mais a função social da propriedade?
Sim, do que [considerar] o puro e simples e protocolar direito à propriedade privada, que também esta na Constituição.
Qual a ideia da prefeitura agora?
É um pouco respirar. Ver como manter essas famílias ate construir moradias decentes para elas.
Na esfera municipal, sempre foram fortes os poderes dos setores de transporte, lixo e imobiliário. Como a atual gestão vai lidar, ou está lidando com as pressões dessas áreas?
A questão do transporte é uma das mais complicadas, porque transporte público em grandes centros urbanos como São Paulo tem, por definição, de ser subsidiado e a municipalidade não abriga recursos suficientes. Por conta disso e de outras variáveis que extrapolam o arbítrio do poder municipal, há décadas os subsídios vêm sendo dados de forma invertida, incentivando-se o transporte individual e desestimulando-se o transporte público, o que para São Paulo é uma tragédia. Mas a resolução disso, mais uma vez, extrapola o âmbito municipal. Quanto ao setor imobiliário, sua força impositiva é inversamente proporcional à força do poder público municipal em seu papel de ordenar o crescimento urbano. Como já mencionei, a meu ver, a vitória do Fernando e de seu programa de governo indica que está na hora de o poder municipal começar a exercer seu papel de ordenador, pautando o setor imobiliário, em vez de ser pautado por ele. Institucionalmente, os instrumentos existem (plano diretor, lei de zoneamento, estatuto das cidades) e vontade política para tanto, ao menos nesta gestão, é o que não falta.
Os atuais contratos de lixo e varrição estão sendo renegociados em benefício do município e o modelo de gestão também pode ser alterado.
Qual sua avaliação do trabalho da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão?
É um trabalho pesado, puxado, porque a Secretaria é muito grande, nevrálgica, e trata de muitos assuntos transversais, afetando, portanto, todos os demais órgãos (orçamento, pessoal, informações, política de compras etc..). Com a dificuldade financeira e orçamentária existente e com nossa ansiedade de querer começar a mudar logo a cara da cidade, o trabalho triplica, porque tudo tem de ser feito ao mesmo tempo e sempre com um nível elevado de tensão. Nossa sorte é que o Fernando [Haddad] é um condutor extremamente hábil.
O que vai bem e o que vai mal?
Eu diria que o governo vai muito bem, o ambiente dentro dele é muito bom, o que não é pouca coisa, dadas, por um lado, as dificuldades já assinaladas e, por outro, o caráter, digamos assim, ecumênico do próprio governo. Acho que o Fernando acertou na escolha de seus auxiliares, porque, para além de sua competência técnica e independentemente de sua origem e/ou ligação com o prefeito e/ou o PT, todos acreditamos muito em seu projeto.
O que vai mal é a falta de recursos. O orçamento aprovado ao final de dezembro superestimou a receita, criando despesas que não poderiam existir, e deixou despesas importantes de fora, como, por exemplo, a despesa com o subsídio à tarifa do transporte público, que foi orçada a menor, e os recursos necessários para a execução das obras relativas à Copa do Mundo, com as quais o município se comprometeu.
Qual o principal problema da prefeitura do seu ponto de vista?
No curto prazo, como já disse, a principal dificuldade são as restrições orçamentária e financeira. Mas existe um problema de fundo, que é igualmente importante: uma desestruturação enorme dos recursos humanos da prefeitura. Há duas carreiras bem estruturadas, que são as de auditor tributário e procurador. Os salários iniciais são substantivos e existe uma carreira propriamente dita, além de honorários e gratificações. Com isso, bons profissionais são atraídos e selecionados pelos concursos. A dificuldade aqui é que eles são poucos, em particular os procuradores, havendo uma carência bastante grande desses profissionais em praticamente todos os órgãos. Além dessas duas carreiras, o quadro de pessoal da educação, em particular o magistério, também está bem estruturado, refletindo um trabalho que se iniciou lá atrás, ainda na gestão Marta. Neste último caso, apesar de os salários não serem ainda aquilo que desejaríamos para carreira tão importante, é muito melhor do que já foi e há acordos fechados anteriormente que continuarão a elevá-los e que a nova gestão evidentemente vai honrar.
Mas, tirando isso, o restante é muito complicado. Apesar dos concursos que de quando em quando são feitos, os bons quadros acabam não ficando na prefeitura. A carreira de engenheiro, por exemplo, tem salário inicial de cerca de R$ 3.000,00, absolutamente insuficiente para reter um bom profissional. O mesmo acontece com arquitetos, psicólogos, geólogos, assistentes sociais, médicos etc. De outro lado não temos, por exemplo, a carreira de gestor de políticas públicas, hoje absolutamente essencial. Enfim, esse é um problema que vamos encarar e vamos tentar minorar, mas cuja resolução efetiva demanda um largo período de tempo, em particular quando não se nada em dinheiro, como é o nosso caso.
Qual é a prioridade maior na sua visão?
Acho que o maior desafio é fazer de São Paulo uma verdadeira cidade. Não sou urbanista e posso estar dizendo uma obviedade, mas o que me parece é que há um tremendo déficit de urbanidade em São Paulo. A força do capital por aqui foi construindo espaços privados contíguos e não espaço público, que é onde a cidade de fato existe. Seus principais problemas são, de uma forma ou de outra, decorrentes disso. O crescimento explosivo da cidade, sua transformação numa megalópole no exíguo prazo de três ou quatro décadas produziu essa concretude estonteante e contraditória de riqueza suntuosa e pobreza aviltante, de civilização e barbárie, e esse processo insano foi puxado em boa medida pela lógica da valorização capitalista.
Mas isso ocorreu não apenas pela força do capital. Nas últimas décadas, essa força foi auxiliada pelo espírito da época, o qual tornou Estado e planejamento palavras proscritas. Hoje, porém, parece que há uma compreensão um pouco mais clara de que assim não é possível continuar e a própria vitória do Fernando é, a meu ver, uma demonstração disso. Por isso é difícil dizer qual seria a prioridade, porque qualquer que seja o problema, se se tentar para ele uma solução estanque, não vai funcionar. É preciso pensar a cidade como um todo, que foi o que o programa do Fernando fez, com muita competência.
Mas programa de governo é uma carta de intenções. Cabe agora colocá-lo de pé. A Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão tem, nesse sentido, um papel destacado. Em 90 dias a contar da posse, ou seja, no final de março, temos que entregar o Programa de Metas e o desafio vai ser justamente este: trabalhando embora por área e por secretaria, traduzir essa visão articulada e holística que, esperamos, comece a mudar um pouco a realidade de São Paulo.
Como é o processo de elaboração do Programa de Metas?
A elaboração do Programa de Metas em 90 dias após o início de uma nova gestão é uma obrigação que o executivo paulistano tem por força de uma mudança na lei orgânica do município de 2007. Apesar do enorme esforço que envolve, dado o exíguo prazo disponível para a elaboração do Programa, trata-se de uma medida extremamente positiva, pois justamente obriga o novo governo municipal a planejar suas atividades e iniciativas ao longo dos quatro anos que terá pela frente. Essa obrigação legal foi o resultado de uma conquista da sociedade civil, que rapidamente começou a se espalhar pelo país, de modo que hoje já são vários os municípios que têm essa obrigação. No caso de São Paulo, a elaboração de um Programa de Metas em 90 dias será sempre um desafio, dado o gigantismo da cidade e sua complexa, porém, necessária, estrutura administrativa.
Contudo nosso trabalho foi facilitado pela existência de um plano de governo tão detalhado quanto aquele que elegeu o Fernando. Foi tomando esse plano como base que o Programa de Metas foi elaborado. Os objetivos e iniciativas de mais de 20 órgãos foram coletados e sintetizados a partir dos eixos norteadores do plano. Nosso princípio é que o Programa de Metas não pode ser só um listão de coisas a serem feitas, mas deve traduzir uma visão de cidade e essa visão está desenhada no plano que elegeu o atual prefeito.
O prefeito começou o seu trabalho anunciando cortes. Não foi muito anticlimático? Havia outro caminho? A prefeitura de São Paulo é desenvolvimentista?
Os cortes foram necessários pela inadequação do orçamento, à qual já me referi. Se existem receitas cuja realização não é segura, seria irresponsabilidade autorizar despesas que dependem delas. Esperamos que a arrecadação de tributos nos surpreenda e/ou que os recursos decorrentes de convênios com os outros níveis do poder executivo, em particular o federal, cresçam substantivamente. Assim acontecendo, as dotações hoje congeladas poderão ser liberadas. Não havia outro caminho, sobretudo porque hoje, com a Lei da Responsabilidade Fiscal, a realização de déficits orçamentários é muito complicada. Não poderíamos expor o prefeito a esse tipo de risco. Mas não foi anticlimático. Como já disse, dificuldades à parte, o clima dentro do governo está muito bom e todos já sabíamos que não existia um mar de rosas do ponto de vista dos recursos, bem ao contrário.
Acho que a pergunta sobre se São Paulo é desenvolvimentista não procede. O desenvolvimentismo foi um período da história brasileira e latino-americana em que o continente teve a oportunidade de empurrar o processo de desenvolvimento, direcionando-o por meio de políticas de Estado. É complicada hoje a utilização do termo, porque vivemos em outra quadra histórica. Além disso, no plano municipal, os graus de liberdade são bem menores, pois a política econômica macro não está a nosso alcance.
Como está a questão da rediscussão da dívida com o governo federal?
Não estou diretamente encarregada disso, mas parece vai bem. Não é algo que vá se obter de imediato, dependente que é de mudança de lei no Congresso, mas tudo indica que o governo federal deverá apoiar essa mudança, a qual atenderá o pleito não só da cidade de São Paulo, mas de vários outros municípios e estados.
Educação foi um dos pontos fracos da gestão anterior. Como e quando será possível acabar com o crônico déficit de vagas em creches?
A questão do déficit de vagas para educação de zero a três anos é uma das maiores preocupações do atual governo e providências estão sendo tomadas em relação a esse grave problema. Mas, eu prefiro deixar essa questão para o secretário Cesar Calegari, que, com mais propriedade que eu, pode dar informações a respeito.
Já é possível vislumbrar o que não poderá ser realizado em relação ao prometido na campanha?
A pretensão é realizar tudo que está lá.
Como a sra. avalia a relação entre a prefeitura e a Câmara Municipal?
A Câmara voltou às suas atividades há pouco tempo. As comissões foram recentemente constituídas. É difícil saber por ora em que tom andará a conversa. De qualquer forma, esperamos que, para além do jogo político-partidário que inevitavelmente existe, possamos ter na Câmara um verdadeiro espaço de debate sobre a cidade.
Gestões petistas criaram no passado o orçamento participativo. Por que a prefeitura de São Paulo não adota esse modelo? Entraria em confronto com interesses de vereadores e subprefeitos? Seria mais democrático e eficaz, ou não?
A participação é uma questão de grande peso na atual gestão. O programa de governo foi construído graças a uma enorme e generosa participação popular. O orçamento participativo insere-se nesse contexto. Na gestão Marta, fizemos o orçamento participativo nos moldes tradicionais, com sua estrutura piramidal, envolvendo toda a cidade, num trabalho verdadeiramente extenuante. Esse modelo está sendo repensado, devendo-se levar em conta, hoje, a realidade das subprefeituras e a existência de outros órgãos de participação, como o recém-criado Conselho da Cidade, o conselho de representantes das subprefeituras (a despeito dos óbices jurídicos que ainda precisam ser superados) e os vários conselhos específicos existentes em variados âmbitos, além da possibilidade de reeditarmos as conferências municipais setoriais (de saúde, educação, transporte etc.). Mas o modelo propriamente ainda não está pronto.
Com relação ao suposto confronto entre um modelo mais participativo e a política convencional, o que ocorre é que o crescimento da participação social sempre suscita a discussão sobre os limites da democracia representativa, pois que a população é aí diretamente chamada a emitir sua opinião. Mas, ao contrário do que pensam alguns, essa sorte de democracia direta está longe de diminuir o poder da democracia representativa. Ao contrário. Com maior conscientização e participação popular ganham todos os níveis e todos os poderes de governo. Quem perde é apenas a velha política, que deve mesmo ser enfraquecida.
Como o fraco desempenho do PIB está afetando a cidade de São Paulo? O avanço da desindustrialização preocupa?
No âmbito das finanças municipais, o fraco desempenho do PIB reduz a arrecadação de tributos (em relação ao que poderia ser), em particular do ICMS, cuja correlação com o PIB é, dentre todas, a mais elevada. Quanto ao avanço da desindustrialização, o processo preocupa principalmente em nível de país, já que impõe um retrocesso ao perfil de nossa oferta, de nosso aparato produtivo e, por tabela, de nosso status tecnológico. No âmbito da cidade, o impacto é mais indireto. As indústrias, em grande parte, já saíram daqui há algum tempo, mas a dinâmica da região metropolitana como um todo envolve relações estreitas entre indústrias nos municípios da grande São Paulo e a variada gama de serviços oferecida pela cidade. Se o processo de desindustrialização atinge essas indústrias prejudica também a produção na capital.
Qual sua avaliação sobre o desempenho do governo federal na economia? O ritmo de crescimento vai melhorar em 2013? Onde o governo errou? A crise externa explica pouca coisa, certo?
A crise do final de 2008 faz sentir até hoje seu impacto. Assim, apesar das medidas tomadas pelo governo federal para reerguer a economia, os resultados não são os esperados. Com exceção de 2010 (mas a base de 2009 estava muito deprimida), o crescimento do PIB tem sido muito baixo, muito aquém do necessário para um país como o Brasil. Mas, evidentemente, a crise externa não explica tudo. De meados dos anos 1990 até meados dos anos 2000, incluindo-se aí a primeira gestão Lula, o governo federal praticou uma política neoliberal, afinada com os interesses financeiros e rentistas. Isto implicou um par câmbio/juros em tudo avesso ao crescimento industrial e ao aumento do investimento. Quando a política interna começa a mudar, a partir da segunda gestão Lula, ela se choca com a crise mundial.
A reação interna à crise foi rápida e deu resultados no curto prazo, sobretudo porque se conseguiu muito rapidamente descongelar o crédito interbancário, mas os resultados não foram sustentáveis. Depois de mais de uma década vivendo sob uma política anti-indústria não é de estranhar que o investimento, principal variável a determinar o comportamento do PIB, demore tanto a reagir. Além disso, a estratégia escolhida nem sempre foi acertada. Se, em vez de despender tantos recursos com incentivo ao consumo e desoneração fiscal, o governo tivesse revertido tudo isso num amplo programa de investimentos públicos, os resultados seriam melhores. Aliás, essa tem sido a história do Brasil. Por aqui, o investimento privado só reage quando puxado pelos investimentos públicos. Tentar sustentar o crescimento na ampliação do consumo e o consumo na ampliação do crédito é tentar fazer a roda da macroeconomia girar ao contrário.
A sra. defende uma posição mais dura do governo federal em relação aos bancos. O que foi feito até agora é suficiente?
Demorou demais, mas finalmente o governo começou a utilizar suas armas para reequilibrar o jogo em favor dos clientes. Esse mérito é do governo Dilma, que sabiamente utilizou os bancos públicos para forçar a redução de tarifas, spreads e taxas de juro, e mais pode ser feito nessa direção.
O governo federal tem tomado medidas de estímulo a empresas e privatizações. O governo Dilma está à esquerda ou à direita do de Lula?
É difícil responder nesses termos, mas, como já disse, há uma mudança de tom na política econômica a partir da segunda gestão Lula, e a gestão Dilma confirmou e aprofundou esse caminho, principalmente operando a troca de comando do Banco Central.
A crise internacional arrefeceu ou voltará a atormentar?
A crise internacional é estrutural. Ela é resultado da forma que assumiu o desenvolvimento capitalista depois da crise dos anos 1970. A partir daí, em muito auxiliado pelo final do acordo de Bretton Woods, unilateralmente operado, diga-se de passagem, pelos EUA, a riqueza financeira começa a crescer velozmente, num ritmo quatro vezes maior do que a riqueza real. Isso ensejou toda uma grita pela liberalização e desregulamentação dos mercados, principalmente pelo fim das amarras ao fluxo internacional de capitais. É essa, por sinal, a base material da ascensão do discurso neoliberal.
A inauguração dessa nova fase na história capitalista trouxe consigo o surgimento recorrente de bolhas de ativos com as consequentes crises que elas provocam. As formas encontradas para minorar os impactos daí decorrentes acabam por aprofundar as causas estruturais da crise, pois fortalecem a riqueza financeira. Em função disso, é muito difícil acreditar que a crise foi ultrapassada e não voltará a atormentar.
Qual sua projeção para câmbio e juros para este ano?
Penso que o discurso ortodoxo, que enxerga o ressurgimento do fantasma inflacionário em cada esquina, ainda é muito forte dentro do governo, apesar da mudança geral de tom. Em função disso, a tendência de queda da taxa Selic não deve persistir, sendo o mais provável que volte a subir um pouco, ou, na melhor das hipóteses, se mantenha como está. Quanto ao câmbio, ele depende também de outras variáveis, como a própria evolução da crise internacional. Ponderando tudo, talvez fique como está.
Como marxista, como a sra. analisa a atual conjuntura nacional e municipal?
São Paulo é uma cidade única em termos dos desafios que coloca para a gestão municipal, em razão de seu gigantismo, do crescimento sem controle e presidido em grande medida pelo capital, como já disse.
Combinando-se isso ao momento da história capitalista que atravessamos, conseguir por aqui não só melhorar a cidade, mas mudar seu eixo numa direção menos opressiva, de mais liberdade e generosidade, será um enorme avanço.
Então, retomando a pergunta anterior sobre se a atual gestão é desenvolvimentista, eu diria que a Prefeitura de São Paulo é hoje progressista e protossocialista. Alguém poderia então perguntar o que é o socialismo… Eu diria, repetindo Kant ao falar sobre o Bem, que não sabemos o que ele é, mas temos que agir como se soubéssemos.
A meu ver, sanar, ou ao menos reduzir o déficit de urbanidade que aflige a cidade é agir nessa direção, fundamentalmente reduzindo desigualdades e ampliando direitos. E a redução da desigualdade não passa apenas pela redução da desigualdade de renda, ainda que esta seja fundamental. Ela é também redução de desigualdade espacial, de mobilidade, de participação, de acesso a emprego, a cultura, a serviços de qualidade, enfim.
É isso, me parece, que está no cerne do programa do Fernando e é esse projeto que nos mobiliza e nos faz ir em frente, mesmo em meio a tantas dificuldades. Bairrismos à parte, considerando a importância de São Paulo para o país, uma mudança dessa dimensão não será sem consequências no plano nacional.

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