sexta-feira, 12 de abril de 2013

Nunca houve uma mulher como Gilda

RUY CASTRO – ESPECIAL De 1946 pra cá, todas as vezes em que Gilda foi exibido em cinema ou TV, legiões de mulheres, ao fim do filme, juraram não descansar enquanto não se parecessem com Gilda. Legiões de rapazes também. Note bem: os representantes de uma e de outra categoria não queriam parecer-se com Rita Hayworth – mas com a Gilda de Rita Hayworth. E não se tratava apenas de imitar o seu jeito quase imoral de jogar o cabelo, de transformar inocentes saboneteiras numa tentação erótica ou de fumar como se cada lenta baforada quisesse dizer alguma coisa. Era algo mais profundo e complexo: tentar apossar-se do seu fogo gelado, só se pode chamá-lo assim – a capacidade de inflamar uma paixão e, ao mesmo tempo, esnobar o ser inflamado a ponto de reduzi-lo à servidão total, ao nada. Não devia ser fácil. Tanto que, em nenhum outro filme, antes ou depois, e muito menos na vida real, nem a própria atriz conseguiu. Nem é preciso repetir a sua triste e batida frase, de que os homens dormiam com Gilda e acordavam com ela, Rita. Mas não se deixe desanimar. Gilda, o filme, está agora disponível no Brasil, num cintilante vídeo lançado pela Columbia, apto a ser consultado e estudado por quem quiser incorporar traços do personagem à sua personalidade. É um filme sem preconceitos, um dos poucos a dar motivo para a alta estima em que é tido nos dois continentes sexuais: hetero e homo. É provável que, ao produzir Gilda, isso não estivesse nos planos da Columbia. Pelo menos, não explicitamente. Era para ser apenas um bom drama romântico, com ação e tensão contínuas e um baita personagem feminino. E a história, banal, não antecipava nenhuma possibilidade de malícia. Um aventureiro americano perdido na Argentina durante a II Guerra, Johnny Farrell (interpretado por Glenn Ford), torna-se o homem de confiança do dono de um cassino, Ballin Mundson (vivido com o ar sinistro de manequim de vitrine por George Macready). Mundson viaja e volta casado com Gilda, mulher cujo passado faz pensar que ela terá um grande futuro. O que Mundson não sabe é que Farrell faz parte do passado de Gilda – e como! Os dois foram amantes (talvez em Nova York), separaram-se (por razões nunca explicadas), mas seu ódio é tão grande que, agora, em Buenos Aires, Gilda fará de tudo para destruir a amizade entre os dois homens. Aparentemente, nada demais nisso. Em Casablanca, por exemplo, Humphrey Bogart deixava Ingrid Bergman tomar aquele avião para que ele pudesse dedicar-se à sua amizade com o chefe de polícia Claude Rains. Isso, sim, é que era comprometedor. Mas, de fato, em Gilda, há alguma coisa de suspeito na relação entre Farrell e Mundson: a insistência com que ambos terminam cada frase dirigindo-se carinhosamente um ao outro pelo primeiro nome. Mundson, mais velho, “adota” o boa-pinta Farrell depressa demais, revelando-lhe até a combinação de seu cofre. Outro exemplo: a frieza com que Mundson não se incomoda de ser traído por Gilda, desde que seja com Farrell – mas Farrell jamais o trairá com Gilda e não se importa que ela dê suas voltinhas com estranhos, desde que Mundson não fique sabendo e se magoe. É claro que, no fim, o triângulo se resolve a favor dos dois astros. Mas que fica no ar um travo de bandalheira, ah, isso fica. E pode ser a razão do status de cult que o filme goza com o público gay. A Hollywood dos anos 40 era medrosa demais para se permitir qualquer ambigüidade moral, mas alguns fatos dão base à idéia de que pode haver um – como é mesmo a palavra? – “subtexto” maroto em Gilda. O roteiro foi obra de duas mulheres: Jo Eisinger, que fez o rascunho, e Marion Parsonnet, que lhe deu forma final. Foram elas que criaram Gilda como uma grande mulher e, de quebra, podem ter-se divertido inoculando dubiedades nos dois personagens masculinos. Você dirá que o diretor era um homem, Charles Vidor. Mas, na política dos antigos estúdios, o verdadeiro autor de um filme era quase sempre o produtor executivo, com o diretor não passando de um funcionário subalterno. E o produtor de Gilda era a poderosa Virginia van Upp, protegida do patrão, Harry Cohn, e com carta branca na Columbia. Cohn era famoso pela burrice, e, se Virginia quisesse contrabandear qualquer ideologia exótica para dentro do seu filme, ela o faria. A Cohn só interessava que Rita Hayworth, já com 28 anos, tivesse finalmente um papel que deixasse todo mundo de quatro. Pois ela deixou. Por causa de Rita, criou-se toda uma mitologia em torno de Gilda. As platéias do pós-guerra acreditaram no slogan de lançamento do filme – “Nunca houve uma mulher como Gilda”. E com certa razão: desde 1934, quando se instituíra a autocensura no cinema americano, os filmes não mostravam uma mulher tão sensual e dadivosa quanto ela. Seu impacto em 1946 pôde ser medido até em megatons: pouco depois da estréia do filme, a bomba que os americanos explodiram no Atol de Bikini, no Pacífico, na primeira experiência nuclear em tempo de paz, foi batizada de Gilda, pela equipe que a construiu e trazia um desenho de Rita na carapaça. Era uma publicidade espontânea e sem preço. Para definir Rita (que era então mulher de Orson Welles, embora o casamento estivesse afundando), o crítico do New York Times Bosley Crowther cunhou a expressão “superstar” – a primeira vez que uma estrela foi chamada de super. No Brasil, Gilda tornou-se fantasia de Carnaval, apelido de travesti e foi usada pelas torcidas adversárias para ofender o ilibado mas exuberante craque do Botafogo e da seleção brasileira Heleno de Freitas. Com tudo isso, Gilda nem precisava ser tão divertido. É o lixo de luxo, como só os americanos sabiam fazer, com uma chocante fotografia de filme noir, deslumbrante cenários art déco e Rita usando um guarda-roupa que deve ter inspirado várias coleções. Mas o melhor são as falas, algumas infernais e que, depois, o cinema se cansou de copiar. Gilda finge esquecer o primeiro nome de Farrell e comenta: “Johnny – nome difícil de lembrar e fácil de esquecer”. Em outro momento, Farrell resume o seu desprezo por ela, dizendo: “Há mais mulheres do que qualquer outra coisa no mundo – exceto insetos”. A própria Gilda, numa avaliação ousada, se define: “Se eu fosse uma fazenda, não teria cercas”. Pena que nem sempre as legendas em português ajudem: Mundson bate à porta do quarto de Gilda e pergunta: “Gilda, você está vestida”? Em inglês, Mundson pergunta: “Gilda, are you decent?” Muito mais a propósito. O filme se passa em Buenos Aires, mas há tanto Buenos Aires em cena quanto Zanzibar ou Timbuktu, ou seja, nenhum. Nem mesmo um plano geral da Plaza de Mayo ou uma mísera vista aérea. Bem diferente de Interlúdio, que Hitchcock rodou naquele mesmo ano e em que a história transcorre no Rio, com Cary Grant e Ingrid Bergman namorando o tempo todo diante de “back projections” da Cinelândia e de Copacabana. Gilda é claustrofóbico: toda a ação se passa em interiores e não há uma única seqüencia à luz do dia. É um pequeno mundo, dominado por uma grande mulher. Se bem que, fosse o herói argentino, daqueles violentos, de tango, Gilda entraria na linha com uns tapas assim que começasse a aprontar. Strip-tease ao som de Put the Blame on Mame, então, nem pensar.

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