domingo, 15 de janeiro de 2012

O dia em que os EUA roubaram a música brasileira

Caçando Stokowski

Era uma vez uma gravadora americana que pôs suas mãos em algumas músicas raras e maravilhosas e as tornou ainda mais raras.
Esta é a história de minha busca por Native Brazilian Music.


Villa-Lobos (direita) apresenta Donga a Stokowski
(O Globo, 8 de agosto de 1940)

I. Allegro brillante: Rio de Janeiro, 1940

No verão de 1940, Hitler estava no comando da maior parte da Europa ocidental. A Alemanha tomou o poder na Noruega e Dinamarca em abril. Por volta de maio, a Wehrmacht havia devastado Holanda e Bélgica em uma campanha de Blitzkrieg e estava avançando em torno da Linha Maginot na França para capturar as tropas aliadas em Dunkirk. A França rendeu-se em 22 de junho de 1940, e Hitler marchou triunfalmente para Paris. Os ingleses foram forçados a se retirar da Europa Continental. Uma invasão nazista na Inglaterra era iminente.
Os Estados Unidos ainda não haviam entrado na guerra mas estavam profundamente inclinados a garantir que seus vizinhos do sul não se aliassem aos alemães. Esta era uma possibilidade bastante real, já que o presidente brasileiro Getúlio Vargas vinha flertando com o fascismo desde que estabelecera sua ditadura Estado Novo em 1937. Vargas até mandou um “presente” para Hitler: Olga Benário Prestes, revolucionária comunista e esposa do líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes. Judia nascida na Alemanha e grávida de sete meses na época de sua deportação, Olga deu à luz em um campo de concentração, onde morreu em uma câmara de gás.
Presidindo sobre um poder neutro, e tendo suas mãos atadas por um congresso isolacionista, Roosevelt tinha poucos planos de ação abertos a ele. (O Brasil e os Estados Unidos não assinaram um acordo militar até maio de 1942, e só em agosto de 1942—depois que cinco navios brasileiros foram torpedeados por submarinos alemães a alguns quilômetros da costa brasileira—que o Brasil declarou guerra contra Alemanha e Itália). Uma coisa que o Presidente podia fazer era ativar a política de “boa vizinhança” introduzida em seu primeiro discurso inaugural em 1933.
A política de Boa Vizinhança dos EUA manifestou-se de diversas formas, sendo uma delas cultural. As mais conhecidas missões culturais americanas para o Brasil foram feitas por Walt Disney em 1941 e por Orson Welles em 1942. Enquanto estava no Brasil, Disney descobriu o samba “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso e o incluiu—agora intitulado “Brazil”—em seu filme animado Saludos Amigos (Alô Amigos, 1942), impulsionando a canção para a fama internacional. Um segundo filme da Disney que deve sua existência à política de Boa Vizinhança é The Three Caballeros (Você já Foi à Bahia?, 1944), que fez a mesma coisa para outra canção de Ary Barroso, “Na Baixa do Sapateiro” (com o título “Baía” ou “Bahia”). Ambos os filmes, e um terceiro chamado Melody Time (Tempo de Melodia, de 1948), apresentavam o papagaio animado Zé Carioca, um tipo malandro baseado no músico de carne e osso José do Patrocínio Oliveira (1904–1987), que participou de vários longa-metragens como membro da banda de Carmen Miranda e lançou alguns álbuns sob o nome de Zé Carioca.
A missão de Boa Vizinhança de Orson Welles teve menos sucesso. Com a instigação de Nelson Rockefeller e John Hay Whitney, ele foi para o Brasil em 1942 para fazer um filme antológico “especialmente para americanos em todas as Américas” chamado It’s All True (É Tudo Verdade). Sem roteiro em mãos (e talvez com input excessivo de incontáveis funcionários americanos e brasileiros), Welles gastou quase seis meses e uma grande soma de dinheiro improvisando seu caminho pelo filme. Ele mergulhou no mundo do samba para o episódio Carnival in Rio, e se sabe que não poupou despesas em sua jornada pelo autêntico. O sambista Raul Marques (1913–1991) contou como que, durante a filmagem de uma batucada, a roda de pernada tornou-se violenta, mas o diretor incitou os concorrentes e continuou filmando até o final amargo. Vários participantes ficaram machucados, e o ator-cantor-letrista Grande Otelo foi hospitalizado. Quando as pessoas reclamaram da violência, Welles disse, “Eu pagarei por tudo.”
A tragédia perseguiu a produção quase desde o começo. O segundo episódio que Welles estava dirigindo, Four Men on a Raft, enfocou uma famosa viagem de jangada num percurso de 2.788 quilômetros feito por quatro pescadores do Ceará, no nordeste, até a então capital federal, Rio de Janeiro, com o objetivo de chamar a atenção de Vargas para suas condições miseráveis de vida e trabalho e pleitear benefícios do governo. Welles recriou a viagem com os jangadeiros fazendo o papel deles próprios, mas durante a filmagem, seu líder, Jacaré, afogou-se quando a jangada virou na Baía de Guanabara. No mesmo dia, o estúdio de Welles, RKO, cortou seu orçamento e o mandou voltar para casa. Welles se esforçou para continuar com uma equipe reduzida e finalmente filmou uma história estilo documentário, em preto e branco, e mudo. Devido a conflitos do estúdio, ele nunca teve a permissão para terminar It’s All True. (Por um longo tempo acreditou-se que o filme havia sido perdido. Então, pouco antes da morte de Welles em 1985, algumas cenas foram achadas no cofre da Paramount. Eventualmente foram editadas e lançadas como um documentário em 1993.) Além disso, enquanto estava no Brasil, Welles não foi capaz de supervisionar a edição final de seu segundo longa-metragem, The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942). Este filme terminou gravemente mutilado na sala de edições. A carreira de Welles, em seu maior apogeu antes do interlúdio brasileiro, sofreu um golpe do qual nunca se recuperaria completamente.
Cartaz do concerto da AAYO em Buenos Aires, em 22 de agosto de 1940 (imagem cortesia da Biblioteca de Música Otto E. Albrecht, Universidade de Pensilvânia)
Mas antes de Walt Disney e Orson Welles, o Brasil recebeu Leopold Stokowski. De 1912 a 1938, Stokowski (1882–1977) foi o diretor musical da Orquestra da Filadélfia, onde ele construiu sua reputação como um showman. Para os freqüentadores de cinema, o maestro era mais conhecido por sua participação em filmes como The Big Broadcast of 1937 (1936), com Jack Benny, George Burns, Benny Goodman e o gaitista Larry Adler; One Hundred Men and a Girl (1937), com Deanna Durbin e Adolphe Menjou; e acima de tudo, o inovador Fantasia (1940) da Disney. Nas colunas de fofocas, o maestro era especialmente conhecido por seus múltiplos casamentos (um com a herdeira Gloria Vanderbilt) e por ter sido amante de Greta Garbo. Stokowski fundou diversas orquestras, incluindo a All-American Youth Orchestra (AAYO), regida por ele em concertos e gravações em 1940 e 1941. Foi esta orquestra que no verão de 1940 navegou com ele a bordo do S.S. Uruguay para uma turnê de Boa Vizinhança ao Brasil, Argentina, Uruguai, e alguns países da América Central. Seu primeiro porto de escala foi Rio de Janeiro, onde eles tocaram concertos no magnífico Teatro Municipal nas noites de 7 e 8 de agosto.
Stokowski era um aficionado confesso pela música brasileira. Antes da viagem, ele escreveu ao compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujas obras ele vinha defendendo desde 1927, e solicitou sua ajuda para recolher e gravar “a mais legítima música popular brasileira”. O maestro explicou que, devido ao seu grande interesse pela música do Brasil, ele iria pagar todas as despesas envolvidas e até especificou os tipos de música que desejava: sambas, batucadas, marchas de rancho, macumba, emboladas, etc. As gravações propostas estavam destinadas a lançamento pela Columbia Records. Elas também seriam tocadas em um congresso folclórico pan-americano que estava por vir (e que nunca aconteceu).
Villa-Lobos atendeu ao pedido do maestro (veja a carta dele a Stokowski) e recorreu ao seus amigos, os sambistas Donga, Cartola e Zé Espinguela, que convocaram a nata dos músicos do Rio. Talvez apenas um homem da estatura de Villa-Lobos e suas ligações com os mundos do choro e do samba poderia ter reunido tal time dos sonhos para Stokowski. De fato, qualquer cartaz anunciando o seguinte rol seria um item de colecionador avidamente procurado hoje:

Os Oito Batutas em 1923. Pixinguinha na extrema direita.

Pixinguinha—Alfredo da Rocha Vianna Jr. (1897–1973). O maior compositor e flautista de choro do Brasil, arranjador pioneiro e saxofonista tenor. Autor de clássicos como “Carinhoso”; “Rosa”; “Ingênuo”; “Naquele Tempo”; “Página de Dor”; “1 x 0”; “Lamentos”; “Cochichando”; e “Vou Vivendo”, dentre muitos outros. Fundador do lendário conjunto Os Oito Batutas (1919), assim como dos Diabos do Céu, Guarda Velha (1932), e Velha Guarda (1954), ele foi um arranjador pioneiro de música popular em incontáveis gravações. Nas gravações de Stokowski, Pixinguinha tocou sua flauta brilhante em muitas faixas, e cantou um dueto com Jararaca.
Cortesia da Agenda do Samba & Choro
Donga—Ernesto Joaquim Maria dos Santos (1891–1974). Violonista e filho de Tia Amélia, uma das célebres baianas da Praça Onze. Em 1916, Donga começou a tocar com Pixinguinha na casa de Tia Ciata, onde ele compôs em parceria “Pelo Telefone”, o primeiro samba gravado e o sucesso do carnaval de 1917. Compositor de “Patrão, Prenda Seu Gado” (com Pixinguinha e João da Bahiana); “Quando uma Estrela Sorri” (com Villa-Lobos e David Nasser); “Benedito no Choro”; e “Seu Mané Luiz” (com Baiano). Co-fundador de Os Oito Batutas, Guarda Velha, e Velha Guarda. O conjunto regional de Donga forneceu muitos dos acompanhamentos nas gravações de Stokowski.

João da Bahiana—João Machado Guedes (1887–1974). Filho de outra baiana influente, Tia Prisciliana (ou Perciliana). Ele começou a desfilar em blocos de Carnaval quando tinha dez anos e foi membro dos lendários ranchos Kananga do Japão e Deixa Falar. Por muitos anos o mais importante percussionista no Brasil, ele é tido como o responsável por introduzir o pandeiro no samba e no choro e transformou a faca e prato em instrumento rítmico. Compositor dos sambas “Batuque na Cozinha” (ressuscitado por Martinho da Vila); “Mulher Cruel”; “Pedindo Vingança”; e “O Futuro É uma Caveira”. Cantor notável de corimas afro-brasileiras. Amigo de toda a vida de Pixinguinha e Donga e co-fundador da Guarda Velha e da Velha Guarda.
Cartola—Angenor de Oliveira (1908–1980). Co-fundador da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e um dos compositores e intérpretes de samba mais fantásticos de todos os tempos. Autor dos sambas imortais “As Rosas Não Falam”; “Acontece”; “Alvorada”; “O Sol Nascerá”; “Sim”; “O Mundo É um Moinho”; “Disfarça e Chora”; “Os Tempos Idos”; “Ao Amanhecer”; “Tive Sim”; e “Cordas de Aço,” para citar alguns. Nas sessões de Stokowski, onde ele fez suas primeiras gravações cantadas, Cartola foi acompanhado pelo compositor/violonista da Mangueira Aluísio Dias; um grupo de percussionistas da Mangueira incluindo Preguiça, China e Negro; e as pastoras da escola de samba, um coro feminino integrado por Neuma, Cecéia, Nadir, Ornélia, Guiomar, Nesilia e Neguinha.

Zé Espinguela—José Gomes da Costa (1901–1944). Pai-de-santo e importante pioneiro do samba. Quando o samba ainda era ilegal, Espinguela recebeu rodas de samba em sua casa seguidas das cerimônias de macumba. Encabeçou o Bloco dos Arengueiros no morro da Mangueira (primeiro desfile de Carnaval: 1927), do qual surgiram os sete fundadores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, dentre eles Espinguela. Inventou a competição de escolas de samba em 1929. Em 1940, ajudou Villa-Lobos na criação do bloco de carnaval no estilo antigo Sôdade do Cordão. Popularmente conhecido como Pai Alufá, ele foi acompanhado nas gravações de Stokowski pelo grupo vocal-instrumental-de dança que geralmente tocava em suas festas, fossem elas sagradas ou profanas. Estas foram as únicas gravações cantadas feitas por Espinguela, também conhecido como José ou Zé Spinelli.


Zé da Zilda—José Gonçalves (1908–1954). Compositor da Mangueira primeiramente conhecido como Zé com Fome por seu hábito de esconder enormes quantidades de comida das festas de seus amigos no estojo de seu violão. Depois formou um duo com sua esposa Zilda e recebeu o novo apelido. Co-autor (com Cartola e Carlos Cachaça) de “Não Quero Mais [Amar a Ninguém]” e (com Marino Pinto) de “Aos Pés da Cruz”, sucesso de Orlando Silva.

Jararaca e Ratinho—Famoso duo cômico nordestino de compositores-atores. José Luis Rodrigues Calazans “Jararaca” (1896–1977) e o saxofonista Severino Rangel de Carvalho “Ratinho” (1896–1972) espalharam seus cocos e emboladas humorísticos por todo o Brasil através de seu programa de rádio extremamente popular. A marcha de Jararaca “Mamãe Eu Quero” (1936) é uma das músicas carnavalescas mais famosas de todos os tempos.

Luiz Americano—Notável compositor de choro (1900–1961) e importante clarinetista e saxofonista. Em 1931, compôs e gravou “É do que Há!”. Em 1938, compôs “O Pandeiro do João da Bahiana.” Em 1953, gravou o choro de Ratinho “Saxofone, Por Que Choras?” No ano seguinte, Ary Barroso citaria ele como um dos músicos mais importantes do Brasil.
Também participaram a cantora Janir Martins da Rádio Nacional (única solista mulher), o conjunto regional de Donga contendo o cantor Mauro César (nome verdadeiro: José Nascimento), e um quarteto masculino do Orfeão Villa-Lobos. Em sua biografia de Pixinguinha, Sérgio Cabral menciona outros nomes ilustres associados à sessão de gravação: Paulo da Portela (fundador da G.R.E.S. Portela), Augusto Calheiros, e o violonista Laurindo de Almeida. Dois outros sambistas lendários, Ataulfo Alves e Carlos Cachaça, foram convidados mas não compareceram (Carlos Cachaça, um empregado vitalício da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) que nunca perdia um dia de trabalho, tinha que estar na estação de trem Central do Brasil naquela noite).

O S.S. Uruguay atracado na Praça Mauá no Rio de Janeiro. Foi um dos três navios de Boa Vizinhança pertencentes à American Republics Line e operado pela Moore-McCormack Lines. Em maio de 1939, o Uruguay trouxe Carmen Miranda para Nova York pela primeira vez. (foto cortesia de Leon van Duivendijk)
Onde as gravações eram feitas?
A Columbia tinha um estúdio de gravações no Rio de Janeiro, e este teria sido o lugar natural para se conduzir as sessões. Mas a filial da Columbia do Brasil, Byington & Cia., nem foi comunicada. Em vez disso, os músicos subiram a bordo do S.S. Uruguay, onde o grande salão estava equipado com a aparelhagem de gravação cortesia da Columbia. Presentes durantes as gravações estavam não só os artistas, mas também membros da imprensa, músicos da AAYO, passageiros do navio, e até o capitão.
Em seu livro Todo Tempo que Eu Viver (Rio de Janeiro, Corisco Edições, 1988), o cineasta Roberto Moura citou uma reportagem que apareceu no jornal A Noite em 8 de agosto de 1940:
[...] O salão de música do Uruguai em toda sua existência talvez não tenha abrigado tantas celebridades como o fez ontem à noite. [...]
Às 22 horas, começou a concentração dos conjuntos, escolas de samba, orquestra, gente que ia cantar e gente que ia ouvir. Nesse último grupo, o próprio comandante do navio, que logo tomou lugar em uma cômoda poltrona, de onde acompanhou todo o desfile.
Pixinguinha, Jararaca, Ratinho, Luís Americano, Augusto Calheiros, Donga, Zé Espinguela, Mauro César, João da Baiana, Janir Martins, Uma ala do Saudade do Cordão [sic], que tanto sucesso alcançou no último carnaval, a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, o compositor David Nasser, toda essa gente fala, comenta, discute, até que tem início a trabalho das gravações. À medida que os ponteiros dos relógios correm, os passageiros do Uruguai voltam dos seus passeios pela cidade e vão tomando lugar no vasto salão. E os grupos se sucedem diante do microfone na tarefa das gravações.
Já passava muito da meia-noite quando chegaram os maestros Stokowski e Villa-Lobos. Os fotógrafos se movimentam, na ânsia de colher os melhores flagrantes, mas o famoso régisseur de Filadélfia foge discretamente das objetivas. Por fim, desaparece de vez do salão. Mas em seu lugar fica Pixinguinha, que absorve a atenção geral com seu famoso “Urubu Malandro”.
E, assim, de número em número, passa a noite e já é a madrugada que surge. O salão de música do Uruguai ainda cheio. Agora, a maior parte da platéia é constituída dos elementos da All American Youth Orchestra, que, curiosos, procuram conhecer os instrumentos típicos. Pela manhã, o homem do controle podia contar mais de uma centena de gravações. Aquilo é o trabalho de uma noite e é, também, a música brasileira na sua expressão mais típica, que vai para os outros países do Continente servir à política pan-americana de aproximação dos povos deste hemisfério.
Em resumo, era tanto uma reunião social quanto uma sessão de trabalho, e as condições de gravação no salão cheio estavam longe do ideal, como pode ser facilmente constatado ouvindo-se os álbuns lançados pela Columbia. O engenheiro de som era americano—bastante alheio à música e instrumentos afro-brasileiros—e tinha de dar um jeito de gravar pelo menos quarenta números em uma sessão. Esta era apenas a primeira insinuação de que o “Bom Vizinho” do Brasil não estava dando muita importância à música.
Em 8 de agosto de 1940, quinta-feira, o jornal O Globo anunciou na primeira página:

Samba, a atração de Stokowski!

Durante oito horas consecutivas, o famoso regente gravou perto de 40 músicas populares do Brasil.
Na noite anterior, depois de seu concerto no Teatro Municipal, Stokowski voltou para o navio para supervisionar as gravações. Ele se retirou exausto às 3 da manhã, mas as gravações continuaram até o sol raiar. De acordo com alguns relatos, a sessão foi retomada na noite seguinte, mas não há informações disponíveis sobre o que teria sido gravado..
O que foi gravado na noite de 7 de agosto e na manhã do dia 8?
Existem pelo menos dois relatos detalhados, baseados em reportagens de jornais da época. Os relatos não batem perfeitamente.
Em sua biografia, Pixinguinha, Vida e Obra, Sérgio Cabral cita O Globo:
Primeiro, os maracatus e frevos, de autoria de Pixinguinha. Em seguida, solo de choro por Luiz Americano e seu conjunto. A parte cantada principiou com Janir Martins, cantora da Rádio Nacional, possuidora de boa voz e boa interpretação do samba, e José Gonçalves, em Seu Mané Luiz. O mesmo José Gonçalves gravou o samba de breque Uma Festa de Zés. A Estação Primeira de Mangueira, escola de samba, cantou, após, quatro produções de Cartola, todos do mais legítimo sabor de nossos morros. Jararaca e Ratinho fizeram ao microphone um desafio e interpretaram a difícil embolada Bambo no Bambu. A seguir, Augusto Calheiros reviveu as modinhas de Catulo da Paixão Cearense. Entraram em cena os velhos do Sodade do Cordão (uma tentativa de Villa-Lobos para recuperar, em 1940, antigas manifestações carnavalescas) numa apresentação impressionante de melodias monótonas, às vezes, ruidosas, outras da magia negra. Depois de quatro gravações dessas, teve início a fixação na cera de duas marchas de rancho de Donga e Davi Nasser, Meu Jardim e Quando uma Estrela Sorri, gravadas pela Estação Primeira de Mangueira, fazendo solista o cantor Mauro César. Dos mesmos autores, foram gravados os sambas Samba da Lua e Sofre Quem Faz Sofrer, aquele por Janir Martins e José Gonçalves e este por Mauro César. Passou-se então ao número de maior sensação da noite: o solo de flauta de Pixinguinha em Urubu Malandro. Todos os presentes ficaram entusiasmados não só com o pitoresco da música, como pela execução primorosa de Pixinguinha, a ponto de um dos chefes da orquestra dizer: “Este é um dos melhores flautistas que eu já ouvi.”
Os pesquisadores Marília T. Barboza e Arthur L. de Oliveira juntaram matérias de jornais repletas de imprecisões, omissões e duplicações para produzir a seguinte lista de músicas, publicadas em duas de suas biografias, Filho de Ogum Bexiguento (sobre Pixinguinha) e Cartola—Os Tempos Idos:
01. Seu Mané Luiz (partido-alto de Donga e Cícero de Almeida)
02. Meu Amor (samba do morro de Cartola e Aluísio Dias)
03. Festa Encrencada (samba de breque de José Gonçalves)
04. Passarinho Bateu Asas (toada de Donga)
05. Sapo Dentro do Saco (embolada de Jararaca)
06. Orimé (macumba de Zé Espinguela)
07. Hoje É Dia (macumba de Zé Espinguela)
08. Afoché (candomblé de Zé Espinguela)
09. Samba da Lua (batucada de Donga e David Nasser)
10. Intrigas no Buteco do Padilha (choro de Luiz Americano)
11. Tocando pra Você (choro de Luiz Americano)
12. Luiz Americano no Lido (choro de Luiz Americano)
13. Bole-Bole (maxixe de José Gonçalves)
14. Caboclo do Mato (fantasia sobre macumba de João da Bahiana)
15. Quequerequequê (fantasia sobre macumba de João da Bahiana)
16. Pelo Telefone (samba de Donga e Mauro de Almeida)
17. Bambu (embolada de Donga)
18. Primeiro Amor (samba do morro de Cartola e Aluísio Dias)
19. Apanhá Limão (samba de Jararaca)
20. José Barbino (maracatu de Pixinguinha e Jararaca
21. Na Praia (modinha de Raul Moraes)
22. Saia da Morena (embolada de Donga)
23. Tristeza (samba do morro de Cartola)
24. Quem Me Vê Sorrir (samba do morro de Cartola e Carlos Cachaça)
25. Ranchinho Desfeito (samba-canção de Donga e David Nasser)
26. Cambinda Velha (frevo de Pixinguinha)
27. Urubu Malandro (variations; samba de Pixinguinha)
28. Amarra a Vaca (embolada de Jararaca)
29. Alma de Tupi (modinha de Jararaca)
30. Taco Taco (desafio de Jararaca)
31. Sofre Quem Faz Sofrer (samba de Donga e David Nasser)
32. Romance de um Índio (samba de Donga e David Nasser)
33. Curimachô (macumba de Zé Espinguela)
34. Camandauê (candomblé de Zé Espinguela)
35. Meu Jardim (marcha de rancho de Donga e David Nasser)
36. Ranchinho Desfeito (marcha de rancho de Donga e David Nasser)
37. Acoroagô (candomblé de Zé Espinguela)
38. Canide-Ione (cântico ameríndio, ambientação de Villa-Lobos)
39. Nozani-Na (cântico ameríndio, ambientação de Villa-Lobos)
40. Teiru (cântico ameríndio, ambientação de Villa-Lobos)
“Ranchinho Desfeito” é listado duas vezes, a segunda vez como marcha de rancho. Segundo Barboza e Oliveira, a música foi gravada duas vezes, mas pode ser que esta marcha de rancho seja “Quando uma Estrela Sorri” (dos mesmos autores), mencionada na reportagem de O Globo mas ausente na lista acima.
Na sexta-feira, 9 de agosto, com pelo menos quarenta músicas gravadas (alguns dizem uma centena), Stokowski deu adeus ao Rio de Janeiro e partiu para São Paulo. O que ele deu aos músicos por seu trabalho? Apenas seus cumprimentos entusiasmados.


Scans: Jim Braun

II. Scherzo poco allegro: Native Brazilian Music

A Columbia Records lançou as gravações de Stokowski feitas no Uruguay no inicio de 1942 (veja a resenha publicada na revista Time) sob o título Native Brazilian Music. Das quarenta músicas gravadas, apenas dezessete viram a luz do dia, em dois álbuns, cada um contendo quatro discos 78-RPM. As notas na contracapa anunciavam:
Aqui neste álbum da Columbia Records você tem a música autêntica do Brasil... tocada primorosamente por músicos nativos... selecionada e gravada sob a supervisão pessoal de Leopold Stokowski.
Estas gravações significantes foram feitas durante a turnê do Maestro Stokowski pela América do Sul com a All-American Orchestra. Nas várias paradas da turnê, Dr. Stokowski ouviu a música nativa popular e folclórica do modo como é interpretada pelos músicos de nossos estados Bons Vizinhos. Para a gravação ele escolheu o que achava ser melhor e o mais típico.
Os planos para estes discos foram feitos quando foram acertados os primeiros acordos para se gravar, exclusivamente na Columbia Masterworks, a All-American Orchestra sob Leopoldo Stokowski.
O aclamado solo de flauta de Pixinguinha em “Urubu Malandro” foi uma das muitas perdas. Mas o truncamento não era o único defeito dos álbuns. Apenas seis dos dezessete títulos das músicas escaparam a mutilação na etiqueta dos discos. Dos nomes dos compositores, meros três foram escritos corretamente. Já os intérpretes, eles foram ignorados em sua maioria. No Volume Dois, a ordem das músicas foi trocada. E considerando o zelo de Stokowski pela “mais legítima música nativa brasileira”, as descrições das composições são inadequadas de um modo desapontador. Eu reformatei as informações da etiqueta para facilitar a leitura, apesar de ter mantido a escrita e a ordem, como estava nos discos da Columbia:

Scan: Jim Braun
Native Brazilian Music, Vol. One, Set C-83
36503 C83-1 (CO 30165) Grupa do Rae Alufá: Macumba de Ochócê (Jose Espingucla); Macumba with Vocal Ensemble
36503 C83-2 (CO 30166) Grupo do Rae Alufá: Macumba de Inhançan (Jose Espingucla); Macumba with Vocal Ensemble
36504 C83-3 (CO 30150) Regionale Orchestra: Samba Concao (Wasson-Donga); Samba with Vocal Refrain
36504 C83-4 (CO 30151) Regionale Orchestra: Caboclo do Matto (Cetulio Marinho); Samba with Vocal Ensemble
36505 C83-5 (CO 30154) Guarda Vilha Orchestra: Seu Mané e Luís (Ernesto dos Santos); Samba with Vocal Duet
36505 C83-6 (CO 30156) Ernesto dos Santos with Orchestra: Bambo du Bambu; Samba with Vocal Refrain
36506 C83-7 (CO 30155) Jararaça e Rattinho: Sappo no Sacco (Jararaça e Rattinho); Embolada with Ensemble Vocal
36506 C83-8 (CO 30147) Regionale Orchestra: K Keri K K (Yoad Machrado Cudo j); Samba with Vocal Ensemble

Scan: Jim Braun
Native Brazilian Music, Vol. Two, Set C-84
36507 C84-1 (CO 30152) Alfredo Vianna e Calazans: Zé Barbino (Alfredo viana e Calazans); Vocal
36507 C84-2 (CO 30153) Luis Americano: Tocanda Pra Voce (Luis Americano); Instrumental
36508 C84-3 (CO 30148) Regionale Orchestra: Pelo Telefone (Donga); Zamba with Vocal Chorus
36508 C84-4 (CO 30149) Regionale Orchestra: Passarinho Baleu Asa (Donga); Zamba with Vocal Ensemble
36509 C84-5 (CO 30163) Mangueira Chorus: Quem Me Ve Sorrir (de Oliveira); Zamba with Vocal Ensemble
36509 C84-6 (CO 30193) Brazilian Indian Singers: 1. Teirú 2. Nozani-Na (Villa-Lobos); Chants
36510 C84-7 (CO 30190) Grupo do Rae Alufá: Cantigo de Festa (Jose Espingucla); Canção with Vocal Ensemble
36510 C84-8 (CO 30167) Brazilian Indian Singers: Canide Ioune (Villa-Lobos); Vocal
A Columbia nunca lançou Native Brazilian Music no Brasil, e por quarenta e sete anos, as únicas cópias conhecias poderiam ser contadas nos dedos de uma mão. O historiador de música e crítico Lúcio Rangel era um dos poucos sortudos que tinham os álbuns—ele os recebeu de um amigo em Nova York que os havia conseguido por acaso. Rangel finalmente doou seus álbuns para o Museu da Imagem e do Som (MIS), de onde desapareceram em circunstâncias misteriosas.

Zé Espinguela e Villa-Lobos (direita) durante um ensaio do
Sôdade do Cordão na casa de Espinguela, 1940. (foto cortesia
de Ermelinda A. Paz).
A maioria dos músicos morreu sem nunca ter ouvido as gravações. Poucos foram pagos por elas. Cartola recebeu uns míseros 1.500 réis, o suficiente para comprar três maços de cigarro baratos, um ano e meio depois das gravações. Em uma entrevista dada a Sérgio Cabral em 1974, Cartola disse que finalmente ouviu “Quem Me Vê Sorrir”—sua primeira gravação cantando—na casa de Lúcio Rangel uns bons vinte anos depois das sessões no Uruguay. Dois outros participantes da mesma gravação, Aluísio Dias (1911–1991) e Dona Neuma Gonçalves Silva, tiveram de esperar até 1980 para ouvi-la em fita. Dona Neuma (1922–2000) era a filha do presidente da Mangueira Saturnino Gonçalves, e a grande dama do samba. Em 1940 ela tinha 18 anos e foi uma das pastoras que forneceram o acompanhamento vocal eletrizante em “Quem Me Vê Sorrir”. Em uma entrevista de 1981 para o cineasta Roberto Moura, Dona Neuma ainda lembrava com carinho e descreveu com detalhes a comida deliciosa servida a bordo do Uruguay 41 anos antes:
Assim, como eu os coroas que foram... eu ainda era criança, mas os coroas que foram, foram a fim de comer, tinha muita coisa boa pra gente comer, aí foi a primeira vez que nós comemos peru com abacaxi, carne de porco com ameixa, um jantar luxuoso. Gravamos, depois da festa é que teve a recepção. [...] Foi tudo no mesmo dia. Foi rápido. Foi de tarde mas o samba rolou até de manhã. Eu dormi no convés do navio, que gostoso lá. [...] Tinha um tipo de uma aletria com presunto, queijo, sei lá, não era macarrão era aletria, mas muito bem feita, soltinha, não ficou aquela lama não, que a gente faz uma aletria, muito bem feita, não sei como é que eles cozinharam aquilo, mas ficou soltinha, acho que eles fizeram o molho depois cozinharam o macarrão ali dentro, deram uma sacudidela que ficou soltinho, uma delícia, mas eu só queria comer, sabe? Comer e andar. [...]
Era um navio bonito. [...] Era um salão bonito, tinha um palco, nós cantamos num palco, ele regendo. Ele regia a nós, tinha uma orquestra e a bateria nossa. [...] Ele regia a orquestra, depois veio e regeu a bateria e a gente. Nós já sabíamos porque o maestro Villa-Lobos ensinou os gestos da mão, como ia, se fosse levantando, se fosse levantar, todos os gestos nós sabíamos, ensinados pelo maestro Villa-Lobos. Ele ensinava aqui, na escola, em todo lugar, porque o maestro que nós conhecíamos naquela época foi o Villa-Lobos, foi ele. Ele vinha aqui no morro muito, porque ele era amigão do Cartola.
Nem o governo do Brasil nem qualquer outra entidade brasileira fez algum esforço para recuperar estes gravações. Em 1987, durante o centenário de Villa-Lobos, o Museu Villa-Lobos (MVL) no Rio de Janeiro lançou os 16 lados de Native Brazilian Music em um LP produzido por Suetônio Valença, Marcelo Rodolfo, e Jairo Severiano, com notas do musicólogo Ary Vasconcelos. A música foi transferida não a partir das matrizes originais, cujo paradeiro (se sobreviveram) continuou desconhecido, mas a partir de discos 78 rpm doados pelo colecionador Flávio Silva.
Esta foi a primeira vez que as músicas, seus autores, e os intérpretes foram corretamente identificados, com a exceção de Pai Alufá (Zé Espinguela), cujo grupo inexplicavelmente reteve o “apelido” Grupo do Rae Alufá, à la Columbia (corrigi o nome abaixo):

Native Brazilian Music, Vol. 1 (C-83)

1. Macumba de Oxóssi (Donga/José Espinguela)
Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
Uma macumba em louvor de Oxóssi, orixá da floresta e da caça, sincretizado como São Sebastião no Rio de Janeiro, e como São Jorge na Bahia. Pequenas frases de chamada e resposta em Yoruba, cantadas por solista masculino e coro feminino acompanhados por uma batucada potente (chamada “Orimé” [no. 6] na lista de 40 músicas).
2. Macumba de Iansã (Donga/José Espinguela)
Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
Uma macumba em louvor de Iansã, orixá feminino da espada de fogo, sincretizada como Santa Bárbara. Solista masculino e coro feminino acompanhados de batucada (chamada “Camandauê” [no. 34] na lista de 40 músicas).
3. Ranchinho Desfeito (Donga/De Castro e Souza/David Nasser)
Mauro César
Um Samba-canção simples, cantado no estilo vocal de Orlando Silva e acompanhado pelo conjunto regional de Donga e a excelente flauta de Pixinguinha (no. 25 na lista de 40 músicas).
4. Caboclo do Mato (Getúlio Marinho da Silva “Amor”)
João da Bahiana, Janir Martins e Jararaca
Corima contendo frases curtas de chamadas (João) e respostas (Janir e Jararaca), improvisos de flauta por Pixinguinha, e o famoso pandeiro de João (no. 14 na lista de 40 músicas).
5. Seu Mané Luiz (Donga)
José Gonçalves (aka Zé da Zilda) e Janir Martins
Samba humorístico em um dueto de casal, acompanhado pelo regional de Donga com solo de flauta de Pixinguinha e percussão (no. 1 na lista de 40 músicas).
6. Bambo do Bambu (Donga)
Jararaca e Ratinho
Embolada tipicamente rápida, trava-língua, acompanhada por um regional com o violão de Laurindo de Almeida (no. 17 na lista de 40 músicas).
7. Sapo no Saco (Jararaca)
Jararaca e Ratinho
Uma clássica embolada veloz, cantada em dueto e acompanhada por um regional, esta foi uma das poucas músicas contidas nos álbuns da Columbia que foram gravadas anteriormente (no. 5 na lista de 40 músicas).
8. Que Quere Que Quê (João da Bahiana/Donga/ Pixinguinha)
João da Bahiana e Janir Martins
Macumba carnavalesca contendo chamadas masculinas e respostas femininas, com o pandeiro de João e os improvisos de Pixinguinha na flauta. Previamente gravada em 1932 como “Que Querê” com autoria atribuída aos três músicos, esta música provavelmente foi composta apenas por João (no. 15 na lista de 40 músicas).

Native Brazilian Music, Vol. 2 (C-84)

1. Zé Barbino (Pixinguinha/Jararaca)
Pixinguinha e Jararaca
Um maracatu com metais e percussão intercalados por duos vocais masculinos. Uma gravação rara de Pixinguinha cantando (no. 20 na lista de 40 músicas).
2. Tocando pra Você (Luiz Americano)
Luiz Americano
Um choro de três partes [estrutura a-b-a-c-a] com solo de clarineta acompanhado por um regional com João da Bahiana tocando pandeiro (no. 11 na lista de 40 músicas).
Foto: Daniella Thompson
3. Passarinho Bateu Asas (Donga)
José Gonçalves (aka Zé da Zilda)
Samba com solo masculino e refrão cantado por um casal, acompanhados pela flauta de Pixinguinha e o regional de Donga. Esta famosa composição havia sido gravada por Francisco Alves em 1928 (no. 4 na lista de 40 músicas).
4. Pelo Telefone (Donga/Mauro de Almeida)
José Gonçalves (aka Zé da Zilda)
O famoso samba, com solo masculino e coro feminino, a flauta brilhante de Pixinguinha, e o regional de Donga (no. 16 na lista de 40 músicas).
5. Quem Me Vê Sorrir (Cartola/Carlos Cachaça)
Cartola e coro da Mangueira
Outro clássico do samba cantado por Cartola com as vozes agudas das pastoras da Mangueira, com grunhidos expressivos de cuíca, Aluísio Dias no violão, e a potente batucada dos percussionistas da Mangueira (no. 24 na lista de 40 músicas).
6. Teiru/Nozani-Ná (Traditional/Heitor Villa-Lobos)
Quarteto do Coral Orfeão Villa-Lobos
Dois cantos ameríndios, entoadas devagar e deliberadamente por quatro professores do Orfeão Villa-Lobos. “Teiru” é um canto fúnebre para a morte de um cacique, recolhido por Roquete Pinto em 1912. Em 1926, Villa-Lobos tornou-o o segundo de seus Três Poemas Indígenas. “Nozani-Ná” está incluída nas Canções Típicas Brasileiras (1919) de Villa-Lobos. (nos. 39 e 40 na lista de 40 músicas).
7. Cantiga de Festa (Donga/José Espinguela)
Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
Corima contendo solo masculino e coro feminino, batucada e palmas (no. 7 na lista de 40 músicas).
8. Canidé Ioune (Traditional/Heitor Villa-Lobos)
Quarteto do Coral Orfeão Villa-Lobos
Este canto ameríndio, recolhido pelo viajante Jean de Léry em 1553, é o primeiro dos Três Poemas Indígenas, de Villa-Lobos, publicado em 1926. É cantado por quatro professores do Orfeão Villa-Lobos (no. 38 na lista de 40 músicas).

III. Andante vivace: California, 1999

A primeira vez que ouvi falar de Native Brazilian Music foi através de Paulo “Pauleira” Malaguti. Em abril de 1999 eu estava entrevistando-o para um artigo sobre seu grupo vocal, Arranco de Varsóvia (Brazzil, Maio 1999). Arranco havia gravado o samba de Cartola e Carlos Cachaça “Quem Me Vê Sorrir”—agora mais conhecido como “Quem Me Vê Sorrindo”—em seus CDs Quem É de Sambar e Samba de Cartola, e Malaguti descreveu seu encontro com a música:
Em 1993 deram-me um destes discos [do MVL] que foram lançados aqui e fiquei muito impressionado com todo o disco, e particularmente com esta faixa específica. A mistura de uma melodia e poema muito delicados, e o som das pastoras com a batucada primitiva da Mangueira deixaram uma profunda impressão no meu entendimento sobre a história do samba. Então eu usei exatamente a mesma forma da gravação original, fazendo minha própria polifonia para a introdução e harmonizando a melodia principal. Esta melodia é tão bem feita que facilita o trabalho do arranjador em criar outras vozes para acompanhá-la. Esta canção continua sendo para nós no Arranco um cartão de visitas poderoso quando fazemos pequenas apresentações. Esta é a canção que nós mostramos primeiramente a Beth Carvalho, e ela ficou sinceramente comovida com o nosso canto. Nós a gravamos novamente em nosso segundo disco em uma versão ligeiramente diferente.
No começo do maio, adquiri o recém-lançado CD Cartola—O Sol Nascerá (Revivendo RVCD-131), que contém composições de Cartola gravadas entre 1929 e 1968, incluindo a execução de “Quem Me Vê Sorrir” das sessões de Stokowski. O contraste entre o canto delicado de Cartola e o acompanhamento fortemente africanizado das pastoras era cativante, e a minha curiosidade, sempre viva, foi intensamente despertada. Nesta etapa, tudo o que eu sabia sobre as gravações de Stokowski era que tinham sido feitas em 1940 a bordo do Uruguay, e que Villa-Lobos reunira Cartola e o “pessoal da Mangueira”, Donga, Jararaca & Ratinho, Luiz Americano, Zé Espinguela, e outros para gravar “várias coisas diferentes” (nas palavras de Malaguti).
Mais tarde naquele mês eu viajei para o Rio de Janeiro, onde o colecionador Valfredo Guida deixou que eu ouvisse todo o álbum do MVL e me deu uma cópia em fita com uma lista de faixas escrita à mão que especificava os títulos e compositores, mas não os intérpretes. Eu tenho em alta estima esta fita, mas tudo poderia ter ficado onde estava se não fosse pela ajuda de outro amigo.
No fim de julho de 1999, recebi um e-mail de Jim Braun, que idealiza e apresenta programas de música na rádio KBOO em Portland, Oregon. Jim disse-me que estava me enviando uma cópia em fita de (como ele disse) “um álbum de 78 rpm da Columbia chamado Native Brazilian Music—Volume 1 (eu acho que nunca houve um Volume 2), que contém algumas coisas que você com certeza irá achar interessante.” Como nota de rodapé Jim acrescentou, “A propósito do álbum Native Brazilian Music: na etiqueta de todos os lados aparece o texto ‘Gravado sob a supervisão pessoal de LEOPOLD STOKOWSKI.’ Eu não acredito, mas suponho que eles acharam que isto iria ajudar nas vendas.” Eu disse ao Jim para acreditar e enviei a ele as poucas informações que tinha. Ele respondeu, “Muitíssimo obrigado pela informação sobre Stokowski; não poderia ter sido mais providencial, já que estou planejando levar ao ar todos os oito lados no meu próximo programa nesta sexta- a partir de fita cassete, é claro, já que a KBOO não possui um toca 78 rpm.” Poucos dos títulos das oito gravações de Jim batiam com a lista que eu consegui com minha fita do Rio, e só depois que li mais a respeito e escutei a fita de Jim que percebi que as gravações eram idênticas.
Naquela mesma semana, eu estava lendo a biografia de Pixinguinha Filho de Ogum Bexiguento, recentemente adquirida num sebo do Rio. E lá, na página 102, estava a história das sessões do Stokowski, incluindo uma lista de quarenta músicas gravadas a bordo do Uruguay.
Quarenta músicas, quando apenas dezessete haviam sido lançadas em dezesseis lados.
Agora verdadeiramente animada, apanhei Pixinguinha, Vida e Obra de Cabral, e então seu As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, e aprendi muito do que você já leu até agora. Com muito esforço, juntei informações de fontes díspares para identificar as dezessete músicas de Native Brazilian Music, seus compositores e intérpretes.
Ocorreu-me que em algum lugar, talvez nos cofres da Columbia neste país [EUA], poderiam estar elanguescendo 23 gravações inéditas feitas por alguns dos maiores músicos brasileiros. Será que alguém sabia delas ou tinha alguma pista sobre seus paradeiros?
Por pura coincidência, eu estava terminando um artigo sobre o grupo de samba Família Roitman (Brazzil, julho 1999). O violonista deste grupo, Felipe Trotta, disse-me que estava trabalhando no Museu Villa-Lobos temporariamente, e o enviei uma série de perguntas que ele encaminhou para Marcelo Rodolfo, o funcionário do museu envolvido no lançamento de NBM.
Daniella ThompsonO MVL alguma vez lançou estas gravações em CD? Caso tenha lançado, está disponível para compra?
Marcelo Rodolfo—Infelizmente ainda não.
DTO que aconteceu com as outras 23 gravações feitas por Stokowski a bordo do navio Uruguay em 7 e 8 de agosto de 1940? A Columbia nunca as lançou..
MR—Nós não temos idéia.
DTAs matrizes algum dia foram retornadas ao Brasil? Elas ainda existem
MR—Nós também não sabemos. O Museu Villa-Lobos lançou em 1987 uma versão em LP diretamente a partir daqueles álbuns de 78-RPM conhecidos.
Desculpe se não pudemos ajudá-la muito, mas nós achamos que você pode conseguir mais informações com Suetônio Valença. Ele é especialista em música brasileira e foi um dos responsáveis por aquele lançamento.
Esperamos que você tenha sucesso em sua investigação.
[Em 2001, um leitor brasileiro disse-me que ele perguntara a Marcelo Rodolfo por que ele não tinha se esforçado mais para me ajudar na investigação. Rodolfo respondeu, “Ela estava muito ávida.”]
Era hora de lançar um ataque total. Enviei um e-mail para Paulo Malaguti e pedi a ele para contatar Suetônio Valença. Eu também postei um e-mail na lista de discussão sobre música brasileira Saudades do Brasil, perguntando se alguém sabia como se procura matrizes de gravações antigas nos cofres da Columbia, pertencente à Sony. A única resposta imediata veio de Jack O’Neil, dono da Blue Jackel Entertainment—um selo americano que já lançou uma quantia significativa de música brasileira de qualidade. Jack escreve:
A Sony Brasil é muito organizada e pode achar praticamente qualquer coisa que você pedir. A Sony/Columbia EUA é o completo oposto. Se tem mais de 10 anos, eles não conseguem achar nada.
No dia seguinte ele acrescentou:
Você deveria desistir de lidar com a Sony EUA; eles não terão gravações deste lançamento. Você deveria lidar com a Sony Brasil; talvez eles possam fazer uma cópia para você em DAT ou CD. A Sony Brasil era a única gravadora que ainda sabia o que eles tinham em 78-RPMs quando estávamos licenciando. Parece ser um ótimo disco.
As notícias de Jack não eram o que eu espera ouvir, mas movida pelo seu interesse, eu contei a ele toda a história. Ele respondeu: “Que grande estória. Isto é o que faz o mundo girar”, e me informou que existe uma forma confiável de transferir música de 78-RPMs para CD, concluindo:
Se elas nunca foram lançadas no Brasil, então você tem que encontrar alguém nos EUA que as rastreie. A Sony Special Products é uma divisão de licenciamento, mas se você disser a eles que você está interessada em licenciar, talvez eles a procurem para você. É um processo que geralmente leva cerca de 6 meses.
Novamente, a informação de Jack era tanto encorajadora quanto desanimadora. Poderia existir uma maneira de se localizar as matrizes originais, mas me tornar uma produtora era a última coisa que eu desejava fazer. Enquanto isso, eu tive notícias de Malaguti:
Eu conversei com Suetônio neste momento, e ele está bastante disposto a ajudá-la. Eu acho que ele possui as gravações originais da Columbia, e ele disse que as matrizes devem estar na Columbia a esta altura. Eu não soube dizer com detalhes qual o seu interesse, mas ele ficou curioso e me passou seu e-mail para que você entre em contato. Você deve correr porque ele vai sair da cidade amanhã em uma viagem a Praga para alguns programas de rádio que ele fez.
Então eu escrevi ao Suetônio Valença um longo e-mail, sugerindo que talvez uma gravadora brasileira como a Revivendo, que é especialista em relançar gravações históricas em CD, talvez esteja interessada em relançar NBM. Em algum momento, meu interesse havia mudado de meramente ouvir todas as quarenta gravações para a convicção de que este tesouro deveria ser desenterrado e lançado em disco. Mas será que ele poderia ser recuperado? E eu deveria me tornar uma produtora para fazê-lo?
Eu estava ponderando o imponderável quando alguns dias depois outra resposta à pergunta na lista de discussões chegou. Desta vez era o meu amigo Luca DiDonna, um colecionador de discos de música brasileira. Luca me contou que uma edição recente da revista Absolute Sound continha um artigo sobre Discos da Columbia durante a década de 50, escrito por Michael Gray, da Biblioteca do Congresso (EUA). Um raio de luz inesperado. Mandei um e-mail para a divisão Columbia da Sony. Não é preciso dizer que a mensagem ainda não foi respondida. Depois procurei pelo artigo no site da Absolute Sound e enviei um e-mail para seu editor, Mark Fisher, que encaminhou minha mensagem para Michael Gray. Gray logo entrou em contato, e eu recontei a longa história novamente. Sua resposta:
Eu estava ciente de que LS tinha feito gravações com a AAYO no Brasil, mas não sabia dos discos de música brasileira.
Tenho muitos amigos na Sony—talvez você poderia me enviar uma lista de números de matriz e eu posso ver se as matrizes sobreviveram. Isto está bom?
Obrigado.
Outra busca frenética. Um e-mail de Jim Braun, com instruções para localizar os números de matriz dos oito lados de seu NBM, Vol. 1. Um nono número de matriz veio de uma foto de um dos discos do Vol. 2, reproduzida no livro Pixinguinha de Cabral (a etiqueta do disco ainda continha a legenda ‘Volume Um’, embora o lado tenha sido identificado como C84-1—Lado 1 de Volume Dois). Mais e-mails a pesquisadores no Rio de Janeiro não obtiveram nenhuma informação útil. Doze dias depois, recebi um e-mail de Mike Gray:
Você tem um número de FAX? Eu achei algum material na Biblioteca do Congresso hoje que pode ser útil, embora um pouco frustrante se você está procurando por aquelas matrizes desaparecidas...
O fax chegou no dia seguinte, contendo várias páginas de microfichas, listando gravações de 1941 e ’42. Lá—entre “Sometimes” e “How About You” de Eddy Duchin e “Gooddee Mama” e “You’re a Sap, Mr. Jap” de Orrin Tucker em um lado e “America, I Love You” e “The Star-Spangled Banner” de Kate Smith no outro lado—estavam os meus dezesseis lados do NBM com erros de grafia e tudo, embora não necessariamente os mesmos erros de grafia contidos nos discos da Columbia.. “Passarinho Bateu Asas”, que se transformou em “Passarinho Baleu Asa” na etiqueta do disco, virou “Passarinho Bazeu Aza” no arquivo da Biblioteca do Congresso. Algumas músicas recuperaram seus títulos legítimos. Local de gravação: desconhecido. Data de gravação: 12 de março de 1941. Na margem do fax, Mike Gray acrescentou:
Eu também olhei nos relatórios diários do engenheiro de som para 1940/41, mas não consigo achar os números originais das matrizes ou a as datas de registro que forneceram os números dos discos. Dada a sua informação sobre as gravações, a data 12/3/41 provavelmente significa uma data de recebimento em vez de uma data de gravação. Espero que tudo isso ajude um pouco...
O que Mike Gray estava me dizendo, sempre muito gentil, era que ele acreditava que as matrizes não haviam sido preservadas—o insulto final em um longo inventário de injúrias.
No dia seguinte tive notícias do colecionador, pesquisador e produtor Paulo Cesar de Andrade:
Infelizmente não pude conseguir os números de matriz das gravações. No Brasil, nós usamos números de gravação, e não números de matriz, em discografias. Se as gravações feitas nos Brasil forem 40 e se você consegui-las, nós podemos produzir uma caixa de 2 CDs com todas as gravações históricas. Estou de dedos cruzados.
Meus próprios dedos não estavam mais cruzados. Chegou a hora de partir para o plano B. Mandei uma rajada de e-mails para dizer às pessoas que as matrizes de NBM provavelmente não sobreviveram. Jack O’Neil respondeu:
É isso que eu quero dizer; tanta coisa antiga fantástica se perdeu. Os 78s podem servir como matrizes nas mãos certas. Para lançar ou licenciar um CD completo de uma grande gravadora é muito difícil. Eles querem fabricá-lo e enviar a você o produto final por uma quantia ridícula de dinheiro. Eu adoraria ouvir estas gravações. Talvez se eu me apaixonar por elas [eu poderia] ajudar.
Meu gravador de fita possui apenas uma cabeça de gravação, então mais uma vez eu recorri a Jim Braun. Ele fez uma pergunta astuta para a qual eu não pude fornecer resposta: “Será que as matrizes poderiam estar nos cofres da Columbia sem o conhecimento da Biblioteca do Congresso?” e de boa vontade concordou em mandar para Jack uma fita com os oito lados de seu NBM, Vol. 1. Pensando na frente, ele acrescentou:
Enquanto isso, eu estive pensando: se uma caixa de dois CDs é impossível, que tal um único CD contendo os dezesseis lados lançados pela Columbia? Certamente uma cópia decente de NBM, Vol. 2 pode ser obtida em algum lugar. Eu tenho olhado no rec.music.marketplace.misc, pensando em colocar um anúncio, e também me deparei com uma lista de e-mails para colecionadores de discos em 78 rpm. O que você acha?

IV. Coda


Foto: Daniella Thompson
Jim Braun enviou a fita prometida para Jack O’Neil. Jack gostou do material e até disse que adoraria lançá-lo, mas ele achou que seria impossível licenciar os direitos da Sony, já que ninguém lá sabe que o material existe. O dono da Rob Digital, uma gravadora brasileira que enfoca o choro, reagiu de maneira similar. Quanto a Jim, em setembro de 1999 ele encontrou o Vol.2 de NBM oferecido em uma venda na Internet e o comprou (ele havia adquirido seu primeiro volume em alguma venda de garagem ou num sebo). Eventualmente me escreveu de volta mas não tinha informações novas para oferecer além de dizer que o MVL deverá relançar NBM em CD (“deverá” não é o mesmo que “irá”). Ele prometeu me enviar as notas do encarte da edição do MVL em LP de 1987 mas nunca chegou a fazê-lo. Eu fui presenteada com uma cópia do LP do MVL em março de 2000 e incorporei os detalhes finais no artigo quando ele estava indo para as prensas. Minhas investidas na Revivendo ainda hão de dar frutos. Jim Braun recentemente me disse que ele está pronto para disponibilizar seus discos 78-RPM caso alguma gravadora esteja interessada em relançar NBM em CD.
Ainda estamos esperando.
= = =
Há uma continuação para esta história.
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Leitura recomendada
Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho: Filho de Ogum Bexiguento (Rio de Janeiro, MEC/Funarte, 1979/Gryphus, 1997).
Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho: Cartola—Os Tempos Idos (Rio de Janeiro, Funarte, 1983, 1987, 1997/Gryphus, 2003).
Sérgio Cabral: As Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1996).
Sérgio Cabral: Pixinguinha, Vida e Obra (Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1997).
Abel Cardoso Junior: Encarte do CD Cartola—O Sol Nascerá (Revivendo RVCD-131, 1998).
Nota: Alexandre Dias escaneou as fotos seguintes da capa do LP Native Brazilian Music (Museu Villa-Lobos, 1987): Stokowski com Donga & Villa-Lobos; Zé Espinguela; Zé da Zilda; Jararaca e Ratinho; Luiz Americano.

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