domingo, 6 de abril de 2014

Sobre o Campo Conservador brasileiro (só para fortes)

Era uma vez os críticos do PT e do governo. É natural, uma vez que estamos no 12º ano da hegemonia política do Partido dos Trabalhadores, este é um país cheio de problemas não resolvidos e a goteira de onde pingam os escândalos políticos parece não ter reparo. Além disso, houve posições políticas derrotadas e outras que não vêem uma oportunidade de desforra no horizonte – tudo isso é um fardo difícil de suportar. É normal criticar governos, ainda mais os que duram tanto, e há críticos civilizadíssimos, muitos deles situados no centro e na própria esquerda no espectro político, enquanto outros são moderados, do ponto de vista da clivagem moral. E mesmo os críticos sistemáticos do governo e do partido, aqueles que juraram morrer virgens de qualquer concessão argumentativa ao PT, como Cantanhêde ou Kramer, cumprem um papel previsto pelas leis da divergência democrática.
Em seguida, faz já alguns anos, começaram a aparecer na cena pública os odiadores do PT. A crítica, neste caso, não é uma posição intelectual, mas uma atitude existencial, política e moral ao mesmo tempo. Os PT-haters não querem conversa, querem é que o PT se acabe, que nenhum petista seja reeleito doravante, que todo o PT seja recolhido à Papuda o mais cedo possível, que todo eleitor do PT seja tratado a pão, água e chibata para aprender a não pecar mais. Trazem aos ambientes digitais a sua santa indignação, as chamas da sua fúria purificadora, a sua autoconcedida superioridade moral.
Era uma vez a direita política de tipo republicano. Para eles, não há dúvida sobre a democracia ser um valor universal, apenas preferem liberdade a igualdade social e não aceitam que agendas voltadas para promover justiça social onerem a produção de riquezas nem violem a liberdade na economia. Querem políticas industriais consistentes, controle fiscal do Estado, restrição da dimensão do próprio Estado, desoneração da produção, melhor infraestrutura, essas agendas que eram o próprio Credo antes da crise econômica e que agora são apenas ideias-guias.
Mas aí vieram os ultraconservadores. Para eles, a vida pública deve ser organizada em torno de valores, os valores do cristianismo conservador. Alguns vão além, e, demais dos seus princípios assentados em "valores familiares" ou "em favor da vida" ou em "valores cristãos", se tornam verdadeiros devoradores de liberdades e de direitos dos que divergem dessa matriz. Combatem em geral, em dois fronts. Primeiro, atacam cotidianamente, com todas as suas forças, as minorias cuja existência é um desafio à sua tabela dogmática de princípios, todas as pessoas que as defendem e o Estado liberal que as protege e lhes concede direitos. Em segundo lugar, sentem-se a última fronteira da defesa da Luz contra os liberais e moderados, estes que defendem Estado leigo, o direito de as pessoas viverem como bem entenderem, tolerância, relativismo moral e pluralismo na política e nos modos de vida.
Por fim, deu as caras com tudo a direita antiliberal, sombria, fascistoide. Já aparecia aqui e ali defendendo agendas para a segurança pública, uma sua obsessão, severas e à base de vingança social: “só pessoas direitas podem ter algum direito, e olhe lá, para o resto nada mais justo que o serem justiciadas pelas ‘pessoas de bem’”; “não tem essa de menor ou maior de idade, praticou o crime tem que ser punido com a maior severidade possível, enquanto não houver pena de morte”. Em março, aparece despudorada, decretando revisão completa do Golpe de Estado de 1964 e da brutalidade e tortura praticada pela ditadura, além de querer celebrar a famigerada Marcha da Família – “qual o quê? A ‘intervenção militar’ foi só uma reação virtuosa contra os comunistas, e não se torturou pessoas do bem, mas só comunistas que, como se sabe (lá eles), são o equivalente político a bandidos e, portanto, mereciam ser torturados”. No episódio dos protestos do “EuNãoMereçoSerEstuprada” surgiram das sombras para dizer que quem provoca acha, sim.
Ultimamente, há uma impressionante e acelerada convergência entre o 2º, o 4º e o 5º grupos, isto é, entre os antipetistas apaixonados, os ultraconservadores e a direita antiliberal. Vínculos não explicitados vieram à tona e o sentido de que têm inimigos comuns, petistas e liberais, parece vir prevalecendo. Até o ano passado, você tinha o grupo dos evangélicos fundamentalistas criticando toda forma de vida que desafiasse o seu sistema único e dogmático de valores, mas não os via por aí defendendo que bandidos podiam ser amarrados a postes. Agora, sim. As antiliberais viúvas da ditadura são também conservadoras, mas os conservadores não precisam flertar com a ideia de golpe militar, mas Feliciano foi à Marcha e tuitou de lá todo animado. Odiadores do PT não precisavam gostar de fascistoides ou de fundamentalistas religiosos, mas os mais radicais deles acham que quem odeia o PT, não importa de onde venham, é parte da família.
Vejam o caso Rachel Sheherazade. Não é uma crítica do PT, mas uma ativista do ódio ao PT, ao mesmo tempo em que é militante do conservadorismo e foi uma das convocadoras da fracassada Marcha da Família. Não dá nem para dizer o que é mais preponderante nela. Tente atacá-la dizendo o quanto a agenda dela é ofensiva aos direitos humanos, aos direitos civis e à tolerância, e alguém contra-atacará para dizer que o trabalho dela é desmascarar o PT e que é por causa disso que ela é temida. Não adianta explicar que Cantanhêde e Kramer também criticam o PT, mas nem por isso defendem pena de morte nem acha que a ditadura é uma fantasia comunista. Não, para essa gente, é tudo o mesmo mingau: não haverá paz na terra enquanto o último petista não for enforcado nas tripas do último gay ou afogado no sangue do último liberal. Fazer distinções é para fracos.

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