Vinte anos atrás, o advogado
paraguaio Martín Almada recebeu informações que mudaram a sua vida e
ajudaram a lançar luz sobre a Operação Condor, ação coordenada entre
exércitos das antigas ditaduras sul-americanas.
Almada vinha há anos buscando documentos que o
ajudassem a provar que ele próprio havia sido torturado pela ditadura do
general Alfredo Stroessner, nos anos 1970, e que sua mulher havia sido
forçada a escutar a tortura.
Mas só três anos depois da queda de
Stroessner é que, em uma conversa telefônica, uma mulher lhe informou
onde encontrar esses arquivos.
"Ela me desenhou um mapa e disse que confiava que eu agiria", lembra Almada.
Em questão de dias, Almada e seu colega José
Agustín Fernández viajaram ao local indicado: uma delegacia de polícia
nos arredores de Assunção.
"Era uma delegacia completamente normal", conta o
advogado. "(Mas) nos fundos havia um edifício com uma enorme montanha
de papéis."
'Arquivos do Terror'
Eram cerca de 700 mil documentos sobre as
atividades da polícia secreta paraguaia ao longo de mais de três
décadas. Os papéis descobertos em 1992 ficaram conhecidos como os
"Arquivos do Terror".
Para Almada, os papéis serviriam para comprovar suas experiências como prisioneiro no Paraguai entre 1974 e 1977.
"Foi como uma explosão de memória", afirma.
"Senti que cada pasta que abríamos nos ajudaria a voltar ao passado e a
entender o regime de terror em que vivemos. Cada documento revelava
terror e tragédia."
Stroessner governou o Paraguai por 35 anos, com a ajuda do Exército e de uma polícia secreta, após tomar o poder em 1954.
Usando uma rede de informantes, as autoridades sob seu mando perseguiam qualquer paraguaio considerado subversivo.
Calcanhar de Aquiles
A polícia secreta era liderada pelo temido
Pastor Coronel, que, segundo relatos, teria agido como torturador em
alguns casos. Mas ele tinha um calcanhar de Aquiles: sua obsessão por
documentos em ordem.
Seus subordinados cuidadosamente registravam
cada prisão, interrogatório e movimento de suspeitos. Também faziam
centenas de gravações e fotos de encontros de ativistas da oposição.
Os Arquivos do Terror, que foram liberados ao
público em 2009, no governo de Fernando Lugo, contém fotos até de
funerais e casamentos.
Almada entrou na mira da polícia secreta no
início dos anos 1970, quando ele e sua mulher, Celestina, trabalhavam
como professores em uma escola perto de Assunção. Esquerdistas, eles
protestavam por aumentos salariais e mudanças no currículo escolar.
Uma noite, ele foi preso. Após 30 dias de
interrogatórios, Almada foi oficialmente classificado como "intelectual
terrorista" e enviado à prisão de Emboscada, onde ficou durante três
anos.
Celestina morreu pouco depois, em aparente
suicídio. Almada acredita que ela morreu depois de ter sido forçada a
escutar as sessões de tortura a que ele foi submetido. Acha que ela foi
levada a crer que ele tinha morrido.
Ele procurou as gravações nos Arquivos do
Terror, na expectativa de encontrar provas de que a polícia contactou
sua mulher. Mas não achou nada que explicasse a morte de Celestina.
Operação Condor
Mas encontrou respostas para outras questões importantes.
Na prisão, ele conhecera prisioneiros de outros
países sul-americanos, que conversavam sobre uma operação secreta
envolvendo ditaduras da região, inteligência conjunta e devolução de
prisioneiros políticos a seus países. O codinome parecia ser Condor.
Nos arquivos, Almada e Fernández encontraram um
documento vital. Marcado "top secret", tratava-se de um convite do chefe
da polícia secreta chilena a seu par paraguaio, para a reunião de
fundação da Operação Condor, em Santiago, em 25 de novembro de 1975.
"É um documento crucial", opina Andrew Nickson, acadêmico britânico que trabalhou para a Anistia Internacional no Paraguai.
Graças ao convite e a outros papéis do arquivo,
pode-se saber que Paraguai, Chile, Argentina e Uruguai foram os
membros-fundadores da Operação Condor. Brasil e Bolívia se uniram ao
projeto em seguida.
A operação tinha um sistema secreto de
comunicação, através de bases militares americanas no canal do Panamá,
que lhes permitiu criar um banco de dados de suspeitos para encontrá-los
com rapidez.
Para John Dinges, autor do livro "Os Anos do
Condor", os Arquivos do Terror - junto com documentos que os EUA
liberaram a respeito de Chile e Argentina, disponíveis no National
Security Archive em Washington - lançaram luz sobre o modus operandi das
forças de segurança sul-americanas da época.
"Sem eles, as investigações em todos os países
teriam tido que se basear praticamente só em relatos de vítimas e em
poucas fontes militares que vieram a público", diz.
Pinochet
As provas coletadas por Almada colaboraram para
as tentativas de indiciar o general chileno Augusto Pinochet entre 1998 e
2006. Os arquivos também foram usados em diversos casos de direitos
humanos na Argentina e no Chile.
No Paraguai, após o retorno da democracia,
alguns acusados foram a julgamento por tortura, mas a maioria dos
comandantes associados ao regime militar permaneceu livre.
Ainda assim, Almada acredita ter tido a última palavra.
"Quando eu estava algemado, costumava dizer a
eles que o mundo estava mudando lentamente e que cedo ou tarde a
democracia viria, e eu teria um papel importante. Claro que eu estava
inventando, e duvido que tenham acreditado. Mas, de certa forma, virou
realidade."
Martín Almada foi entrevistado pelo programa
Witness, do Serviço Mundial da BBC, que conta a história através dos
olhos de quem a viveu