terça-feira, 21 de dezembro de 2010

As violações de direitos no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro


Leandro Uchoas
do Rio de Janeiro (RJ)


No dia 8 de dezembro de 1980, Mark Chapman acertou quatro tiros em John Lennon, em frente ao Edifício Dakota, em Nova York. Morria o mais famoso dos Beatles, aos 40 anos. Nos dez anos que antecederam o assassinato, o músico vinha assumindo um discurso pacifista e antiimperialista – à sua maneira, claro. Em Nova Brasília, no Complexo do Alemão, um caso emblemático ocorreu 30 anos depois. Ali vivia o jovem João Lennon, de 25 anos, viciado em crack. Ser irmão de um famoso traficante local era sua única vinculação com o crime. O local onde ele morava era próximo de uma boca de fumo, o que o tornava mais vulnerável à ação policial, após a ocupação. No dia em que a polícia entrou no Complexo (28 de novembro), arrombou a porta de sua casa e o interrogou. Como seu xará de Liverpool, Lennon foi friamente executado. A simbólica morte do rapaz é apenas uma das ações policiais que, além de carecer de maior fundamentação, é pouco veiculada pelos principais veículos de comunicação – à exceção da Folha de S.Paulo, que tem dado certa visibilidade aos abusos policiais.
Os casos de arrombamento de porta são fartos no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro. “Não é permitido entrar na casa de ninguém sem mandado. Isso é ilegal”, afirma Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da UERJ. Embora seja, de fato, proibida, a ação é historicamente comum em favelas no Rio de Janeiro. Como muitas, essa é uma lei que não vale para regiões pobres da cidade. Entretanto, nas ocupações recentes da Zona Norte, a lei nunca foi tão desrespeitada. Como há, na região, todos os tipos de polícia, além do Exército, uma mesma casa está sendo invadida mais de uma vez. Tem sido comum moradores próximos se unirem para vigiar as casas dos vizinhos. “Muita gente está perdendo oportunidade de emprego, porque tem que ficar em casa vigiando nossas casas de quem deveria protegê-las”, acusa a moradora Solange*. Quem anda pelas favelas da região encontra incontáveis bilhetes colados na porta. “Senhores policiais, não estou em casa porque estou trabalhando. A chave está com a vizinha do lado. O nome dela é Patrícia*”, diz uma das mensagens.

Segundo Carla*, que mora há 43 anos no Complexo e tem denunciado arbitrariedades junto a entidades de direitos humanos, nas vielas internas das favelas o abuso policial é mais comum. “Eles impõe o terror lá dentro. Só quem mora no interior é que sabe o que está acontecendo. É uma terra sem lei. Tem muita mãe que perdeu o filho, e não vai relatar porque tem medo. A população precisa de um trabalho sério de saúde mental”, diz. Nas ruas principais, há uma concentração enorme de policiais e soldados armados. Jornalistas também têm sido vistos a todo momento. Equipes de TV chegam a dormir na favela. “É muito fácil o jornal Extra fazer um varal com mensagens de elogio. As pessoas que escreveram ali foram escolhidas”, acusa Carla, sobre o jornal popular das Organizações Globo. Mototaxistas já foram avisados por policiais que, assim que acabar a “celeuma midiática”, vão ter que pagar taxas para circular no Alemão. Uma vez confirmada, a ameaça é grave, porque significaria um embrião de milícia sendo instalado num dos maiores complexos de favela do Brasil.
“A gente anda pelas vielas [da Vila Cruzeiro] e sente que há alguma coisa errada no ar. Um clima de terror. A mãe que teve o corpo do filho lançado aos porcos foi procurar a polícia. Eles disseram para ela que, se ela ‘foi capaz de colocar um vagabundo no mundo, também era capaz de tirá-lo da pocilga’”, relata Alexandre Magalhães, da Rede Contra a Violência. Em uma visita de organizações de direitos humanos às comunidades, foram relatados diversos casos de pessoas tomando remédios controlados e crianças com problemas psíquicos. Uma mulher grávida de sete meses foi torturada por policiais. Disseram que estavam à procura de R$ 100 mil. Quando ela negou qualquer possibilidade de possuir a quantia em casa, os policiais teriam dito: “pode ser R$ 10 mil”. Um menino foi trancado num quarto de casa, sofrendo tortura durante aproximadamente 90 minutos por cerca de dez policiais. A família, que logo antes já teria sofrido achaques na sala, teria ouvido tudo do lado de fora. O pai, deficiente físico, estaria com problemas psíquicos, considerando-se culpado.
“Ninguém consegue informação sobre as pessoas detidas no Alemão. Virou uma caixa-preta”, diz Isabel Mansur, da Justiça Global. Segundo os moradores, é comum a polícia, nos casos de abuso, dizer que vai voltar, para evitar denúncias. Há acusações também de que, nos dias iniciais, durante tiroteio, moradores foram utilizados como escudo pela polícia em algumas localidades mais afastadas. “Essa diversidade de polícias diferentes, essa pulverização, serve justamente para dificultar a investigação. Tudo é construído para a gente não saber quem é, quem fez”, afirma Camila Freitas Ribeiro, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ). As entidades de direitos humanos pretendem contatar o ministro Paulo Vannucchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, para levar as denúncias. Porém, a transição no governo federal pode atrapalhar o processo. Na gestão de Dilma Rousseff (PT), a pasta será ocupada pela petista gaúcha Maria do Rosário.
Alguns moradores aproveitam para reclamar da instalação das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na região. Segundo eles, as ações dos governos não atacariam os verdadeiros problemas da área. Grandes obras estariam convivendo, lado a lado, com ruas esburacadas, fiação caótica, lixo e esgoto a céu aberto. Também haveria o apadrinhamento político para a contratação de funcionários, e dívidas trabalhistas de algumas das empreiteiras. Entidades locais, como a Raízes e Movimentos e a Verdejar, estão apresentando um pacote de projetos para o desenvolvimento local. Eles foram desenvolvidos pelos próprios moradores, e teriam gestão pública. O Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da Misericórdia, que reúne as entidades, não tem entre seus objetivos lidar com denúncias dos moradores, mas frequentemente são procurados. “Tenho medo até do Disque Denúncia”, disse um morador, numa das reuniões de apresentações dos projetos.

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