quarta-feira, 25 de julho de 2012

Uma outra Paris

Uma outra cidade

A Paris actual não é a mesma urbe em que Victor Hugo situou os seus Misérables. Essa Paris foi demolida em meados do século dezanove, e foi então que dois fotógrafos fizeram o seu retrato da capital francesa. Um captou os bairros antigos nos seus derradeiros momentos, o outro foi o primeiro a registar a estranha cidade subterrânea.
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Willy Ronis, Os amantes da Bastilha, Paris
© espólio de Willy Ronis

Paris tem uma notável relação com a Fotografia, começando pelo cognome de cidade luz. Este terá começado por ser uma associação figurativa (a capital francesa era o centro da revolução cultural do Iluminismo) no séc. XVIII, e terá posteriormente passado a ter uma asserção literal quando foi aí instalada a primeira grande rede de iluminação pública a gás.
Depois, muitas são as imagens de Paris que entraram no imaginário popular por via fotográfica, cujo exemplo máximo será talvez “Le baiser de l'hôtel de ville” de Robert Doisneau, imagem de 1950 em que um casal se beija numa larga e movimentada via parisiense.
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Robert Doisneau, Le baiser de l'hôtel de ville, Paris, 1950
© espólio de Robert Doisneau

Por último, há que ter em conta o facto de nela se terem passado alguns dos episódios mais marcantes da invenção do processo fotográfico, estando sediados aí (ou ao seu redor) alguns dos pioneiros mais marcantes, como Louis-Jacques Mandé Daguerre, Hippolyte Bayard e Abel Niepce de Saint-Victor.
Porém, a Paris dos pioneiros da Fotografia era uma cidade bastante diferente daquela que temos em mente hoje. As ruas que Daguerre e Bayard percorriam enquanto matutavam nos sais de prata, eram as de uma pólis de raiz medieval que até ao século doze se fora improvisando e construindo, consumindo a pedra das construções da cidade romana que a precedeu. E que partir de então se continuará a expandir, movida sobretudo por inércia, e não tanto por planos, e de uma forma estranhamente autofágica. Esgotada a fonte das construções romanas, os parisienses escavaram as entranhas da cidade, em pedreiras subterrâneas que alimentaram com gesso e calcário, durante séculos, o fulgor construtivo da capital francesa. Sem controlo e sem projecto, as galerias alastraram-se por quilómetros, criando uma verdadeira cidade debaixo da cidade.
Nem sempre seguros, nem sempre cuidados, os subterrâneos revelaram-se por vezes uma fonte de catástrofe. Pequenos desabamentos prenunciaram o enorme colapso de 27 de Julho de 1778, em a rua Boyer foi engolida pelo próprio solo. Perante o sucedido, Luís XVI (exacto, o que mais tarde perderá a cabeça na guilhotina) ordena a criação do corpo de inspectores das pedreiras liderado pelo arquitecto do rei, Charles Axel Guillaumot. É iniciado então um trabalho gigantesco, que incluirá a inspecção, inventariação e cartografia das galerias, o escoramento das instáveis pedreiras e a criação de acessos adicionais para facilitar as vistorias e a conservação. Para facilitar a orientação, Guillaumot ordena a identificação das galerias e túneis, mandando gravar nos seus extremos o nome da rua correspondente no plano superior.
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Joseph-Siffred Duplessis, Retrato de Luís XVI, 1776
imagem da Wikipedia Commons

A Paris subterrânea torna-se um espelho viário da Paris das Luzes. E será assim até que, aquando da instauração do Segundo Império, em meados do século dezanove, se reunem as condições políticas e as ambições de Napoleão III e do prefeito do Sena, o Barão Georges-Eugène Haussmann, que juntos levarão a cabo o que, por várias vezes, havia sido antes defendido – a construção de uma nova Paris. A velha Paris, de ruas caóticas e estreitas, insalubre, não era aceitável para os que defendiam que a capital deveria reflectir no seu traçado e construção a racionalidade da Modernidade. Pesou também a velha rivalidade com os ingleses que, por essa altura, já haviam dotado Londres de um conjunto de Parques Públicos e de um amplo sistema de esgotos. Assim, de 1853 em diante, iniciar-se-á a destruição e o renascimento da capital, trabalho que verdadeiramente só será concluído no final desse século, bem depois do estertor do segundo Império e do afastamento do barão.
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Henri Lehmann, Retrato do barão Georges-Eugène Haussmann, cerca de 1860
colecções do MUSÉE CARNAVALET, Paris, França

Na década de 60 de oitocentos, quando os trabalhos estavam verdadeiramente a começar, foi contratado o fotógrafo Charles Marville para registar, para memória futura, a Paris em vias de desaparecer. Charles Marville, pseudónimo de Charles François Bossu, um pintor, gravador e ilustrador nascido em 1813, que mudara de mister aquando do aparecimento da fotografia, havia-se destacado da grande quantidade de fotógrafos da época ao se ter especializado na fotografia de obras de Arte e de Arquitectura, primeiro utilizando a técnica de negativos em papel salgado, depois chapas de vidro com colódio húmido.
Em 1858, inicia uma ligação formal com o município de Paris, fotografando o Bois de Boulogne, o recentemente renovado parque real, que se tornara um dos locais preferidos da burguesia parisiense. Este trabalho é, na prática, o início da enorme série de fotografias relacionada com a renovação da cidade, e como vimos, durante a década seguinte realizará cerca de 400 fotografias das ruas e becos que serão arrasados pela programada acção de Haussmann (que aliás lhe encomendará igualmente o retrato da nova cidade, numa outra sequência de imagens, que incluirá desde as novas igrejas e avenidas aos pitorescos urinóis).
O fotógrafo oficial do município fará assim uma abrangente recolha visual da Paris mutante do segundo império, mas o que mais nos impressiona é o corpo de imagens da cidade condenada. A ele devemos a fonte que permite as reconstruções cinematográficas realistas da cidade, em séries ou filmes. Graças a ele podemos, com propriedade, imaginar as ruas de Les misérables, de Vitor Hugo, onde Jean Valjean deambula (no meu caso, por falta de imaginação, Valjean parece-se sempre com Gérard Depardieu).
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Charles Marville, Bois de Boulogne, Paris, 1858
coleccções da National Gallery of Art, Washington, E.U.A

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Charles Marville, Margem esquerda do Sena, Paris, 1851-1855
coleccções da National gallery of Art, Washington, E.U.A
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Charles Marville, Rue de la Ferronneries, Paris, 1865
colecções do J. Paul Getty Museum,Los Angeles, E.U.A.
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Charles Marville, Beco junto ao Mercado dos cavalos, Paris, 1860
colecções do J. Paul Getty Museum,Los Angeles, E.U.A.
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Charles Marville, rue de Bourdonnais, Paris, 1865
colecções do J. Paul Getty Museum,Los Angeles, E.U.A.
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Charles Marville, Rue de la arbalète, 1865-1867
colecções do MUSÉE CARNAVALET, Paris, França
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Charles Marville, Rue de la Bûcherie, Paris, 1866-1868
coleccções da National Gallery of Art, Washington, E.U.A
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Charles Marville, Rue des Lombards, Paris, 1864
coleccções da National Gallery of Art, Washington, E.U.A
Uma das inesperadas consequências da renovação de Paris foi a de refocar a atenção dos parisienses, pelo menos de alguns, na cidade do Subsolo. Estranhamente para nós, criaturas do conforto e da higiene, a rede de esgotos criada então era para muitos dos burgueses citadinos uma atracção a visitar. Uma outra secção da Paris subterrânea ganha então renovada atenção, as catacumbas. No último quartel do séc. XVIII, tornou-se inadiável e imperativo resolver a situação dos sobrelotados cemitérios parisienses, que se tornavam um sério problema de saúde pública, tal era a quantidade de matéria em decomposição. Inseridos maioritariamente no espaço de igrejas, revelavam-se impossíveis de ampliar e impróprios de uma metrópole que crescia incessantemente. É decidida a criação de três enormes cemitérios nos arredores, e eliminação das pequenas necrópoles citadinas. Uma vez tomada a decisão, impõe-se decidir o que fazer dos restos mortais nelas existentes. Alexandre Lenoir, responsável policial parisiense, pensa nas pedreiras. Será o seu sucessor, Thiroux de Crosne, quem escolherá o local exacto, e quem porá em acção o plano de transladação em 1786, com o apoio do corpo de inspectores das pedreiras. Até 1810, as pedreiras e galerias serão usadas como mero depósito até que Louis-Étienne Héricart de Thury, o sucessor de Guillaumot na chefia dos inspectores, decide dar maior dignidade à tarefa e tornar visitáveis os ossários. Inicia-se então a actual disposição das catacumbas, com as ossadas compostas e guarnecidas com as pedras das campas que foi possível recuperar.

Em 1861, o fotógrafo Gaspard-Felix Tournachon, mais conhecido pelo seu pseudónimo Félix Nadar, visita os novos esgotos e decide, num impulso sem grande interesse comercial, fotografar o que o solo de Paris escondia.
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Félix Nadar, auto-retrato, 1854-1860
colecções do Musée d'Orsay, Paris, França

Este arrojo era um óbvio desafio, dada a infância da técnica. Apesar de usar o processo do colódio seco, mais propício a aventuras no exterior, arrastar o equipamento e fazer imagens dos subterrâneos era algo que estava longe de ser fácil. E a menor das dificuldades não era, sem dúvida, a falta de Luz. Encontra-se, por vezes, a informação de que para resolver esta questão, Nadar terá sido um dos pioneiros do uso da ignição combinada de magnésio e cloreto de potássio, antepassada dos flashes actuais, para produzir os clarões necessários à iluminação destes motivos. Mas tal não foi, de facto, a sua solução. Homem habituado a pensar em termos de iluminação no seu estúdio especialmente construído com grandes vidraças, a sua resposta foi mais complicada de transportar e de usar. Mas permitiu um outro tipo de abordagem, com exposições mais longas e controladas. O fotógrafo fez-se acompanhar de bastantes ajudantes, carregou-os com cabos e baterias, e com a rudimentar iluminação eléctrica da época anterior a Edison. Fotografou assim o grosso das suas imagens subterrâneas, dispondo iluminação a gosto e usando exposições, por vezes, a rondar os vinte minutos. A reportagem de exterior de Nadar era um laborioso trabalho de estúdio.
Ao eventual propósito inicial de retratar a maravilha técnica que eram os novos esgotos, Nadar sobrepõe depois o ensejo de registar uma secção mais antiga do subsolo, precisamente a parte das galerias e pedreiras que recebera os mais de sete milhões de esqueletos dos ancestrais cemitérios parisienses. Será aí que, no Outono de 1861 e no Inverno de 1862, fará a maior parte das mais de cem fotografias subterrâneas que realizou. As suas motivações e a sua insistência não são particularmente claras. Ao contrário de muitos fotógrafos seus contemporâneos, realizou muito poucos retratos em leito de morte, e nas suas memórias “Quand j'étais photographe”, de 1900, afirmou que as catacumbas, enquanto motivo, eram algo monótonas, o seu pitoresco esgotava-se rapidamente. O apelo dos ossários é eminentemente literário e não tanto visual, e o desafio do fotógrafo, induz-nos Nadar, é sobretudo técnico. Mas não nos esclarece acerca da predominância quantitativa das imagens das catacumbas em relação às dos esgotos, menos de três dezenas e mais tardias (datam de 1864 e 1865).
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
colecções do J. Paul Getty Museum,Los Angeles, E.U.A.
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
imagem da Wikipedia Commons
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
imagem da Wikipedia Commons
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
imagem da Wikipedia Commons
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
imagem da Wikipedia Commons
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
imagem da Wikipedia Commons
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Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861
imagem da Wikipedia Commons
Nadar parece aqui funcionar como exemplo da estranha dualidade do séc. XIX. A par de um enorme interesse na técnica, na era da Máquina, o espírito oitocentista procura um contraponto na idealização da Natureza, da História e do misterioso. O fotógrafo parisiense, intimo das elites progressistas, agente do desenvolvimento da técnica fotográfica, ao se dirigir para o subsolo, prefere lutar com impossibilidade de retratar o enigma da morte a fazer um hino fotográfico ao progresso da higiene urbana. Aos esgotos de Haussmann prefere a Paris subterrânea antiga, espelho de uma cidade que morria na superfície à mercê do Progresso.
Charles Marville e Félix Nadar, trabalhando na mesma década, deixam-nos um retrato particular da capital parisiense num momento decisivo. Marville captura o estertor das ruas e becos condenados, e Nadar leva-nos para as trevas da cidade que perdurará com a configuração e os nomes das ruas pré-Haussmann. Deixam-nos um retrato de Paris, mas neste esta é uma outra cidade.

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