quarta-feira, 20 de junho de 2012

Tenório Jr. e a Comissão da Verdade - Joyce


Este é nosso amigo querido, Tenório Jr., maravilhoso pianista, um dos maiores do samba-jazz - na verdade, um dos pioneiros deste estilo.

Além de grande instrumentista, era também compositor de grandes temas, como 'Embalo' - que eu e Tutty gravamos em nosso CD juntos, 'Samba-Jazz & Outras Bossas' - e muitos outros, além de vários temas que ficaram inéditos depois de sua morte, aos 35.

(vejam a capa do disco abaixo, o único LP que ele lançou na vida, hoje um clássico várias vezes reeditado pelo mundo)


Tenório tinha uma inteligência impressionante, aquele humor ácido dos muito observadores, musicalidade à flor da pele. Tinha também 5 filhos e algumas compulsões, das quais, a longo prazo, precisaria se libertar. Mas não houve tempo.
Como todo o mundo sabe - e se não sabe, precisa saber - Tenório desapareceu em Buenos Aires, na madrugada de 18 de março de 1976, depois de ter se apresentado num show com Vinicius de Moraes e Toquinho. Eram as vésperas do golpe militar que deporia a presidente Isabelita Perón e jogaria o país numa longa noite ditatorial. Nosso amigo saiu do hotel para comprar cigarros, ou um sanduíche, ou um remédio - as versões são conflitantes - e nunca mais voltou. Tempos depois, o depoimento de um ex-oficial argentino que participara da repressão dava conta de que Tenório fora confundido com alguém que estava sendo caçado, numa espécie de operação pente-fino, pré-golpe. E morreu na tortura, cerca de 10 dias depois. Ele, que de política não sabia nada, nem queria saber. O ser mais apolítico que já conheci na vida, totalmente inofensivo, que só pensava e vivia para a música, foi preso, torturado e morto como se fosse um perigoso subversivo. O que, ainda que fosse, não justificaria o que ele passou.
Sua odisséia serviu como inspiração para o filme 'Os Desafinados', de Walter Lima Jr, com Rodrigo Santoro fazendo um Tenório de dar aflição a quem o conheceu (no filme, o personagem tem outro nome). É a mediunidade a serviço da arte, só pode ser, pois não existem registros visuais de nosso amigo falando, andando ou mesmo tocando, que expliquem uma composição tão precisa do ator.
Há também outra produção em andamento, do espanhol Fernando Trueba, sobre a mesma história. Trueba esteve aqui em casa e na casa de outros amigos que conheceram e conviveram com 'Seu Antenas' (apelido pelo qual eu o chamava, já que ele era uma antena ambulante para tudo o que era som), para ouvir depoimentos sobre ele. Eu estive com Tenório poucos dias antes do acontecido, pois estava na mesma turnê, da qual saí em Montevidéu, enquanto eles seguiam para Buenos Aires. Acompanhei o desespero de Vinicius, da família (o quinto filho ainda na barriga da mãe) e de toda a classe musical carioca naquele momento. Ninguém sabia o que fazer, a embaixada brasileira não podia ajudar, foi totalmente o caos. Até que o oficial argentino, numa entrevista, contasse o que realmente aconteceu. É  uma página infeliz da nossa história que merece mesmo um documentário, como este que Trueba está há anos preparando e que agora, dizem, pode ser feito em formato de animação.
Falo tudo isso porque tenho esperança de que o caso Tenório venha a ser investigado na Comissão da Verdade, que recém foi inaugurada. Sei que muitos outros casos estarão esperando - e dentre eles, alguns de gente que conheci e por quem tive diferentes afetos: meu parente Aloisio Palhano; a família Angel Jones (Stuart, Sonia e Zuzu); Ana Maria Nacinovic, minha colega de escola; e tantos outros mais. Mas embora o sequestro, prisão e morte de Tenório tenham se dado na Argentina, houve uma conivência do Brasil, no sentido de 'desaparecer' com aquele inocente que, ao sair da cadeia onde fora parar por acaso, poderia dar com a língua nos dentes e assim comprovar o que extra-oficialmente já se sabia: havia uma cooperação sinistra entre os governos ditatoriais do Cone Sul.
É esperar para ver.

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