Por Tamires Coêlho em Observatório da Imprensa
Os profissionais de Comunicação, sobretudo os jornalistas, estão sendo
cada vez mais vistos com olhos de desconfiança por boa parcela da
população. Diante de notícias e comentários estereotipados e (muitas
vezes) de mau gosto, o jornalismo já não é mais visto como um lugar de
construção e desconstrução de fatos, mas como legitimador de um senso
comum superficial. É possível encontrar distorções (sutis e escrachadas)
nos mais variados meios de comunicação, nas abordagens de incontáveis
temas.
Como seria impossível relatar todas as falhas éticas (sejam de ethos
jornalístico ou relativas a um código de moralidade da profissão) que –
infelizmente – encontramos publicadas cotidianamente em diversas
interfaces, este artigo tem seu foco voltado à cobertura da Marcha das
Vadias de Porto Alegre em 2012 pela Rede Brasil Sul de Televisão (RBS –
distribuidora da Rede Globo para os estados do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina).
A Marcha das Vadias é um manifesto que ocorre desde 2011 em várias
partes do mundo, inclusive em várias cidades do Brasil. A onda de
protestos começou quando foi constatado um número bastante alto de
estupros na Universidade de Toronto (Canadá) e um policial tentou
“conscientizar” as mulheres dizendo-lhes que “não se vestissem como
vadias” se não quisessem ser estupradas – como se (absurdamente) as
mulheres abusadas pudessem ser culpadas por seu estupro. A manifestação
em Porto Alegre aconteceu no dia 27 de maio (domingo) e atraiu pelo
menos 1.500 pessoas à Praça da Redenção (Praça Farroupilha).
Roupas curtas
O evento ativista reuniu mulheres, homens, homossexuais, idosos e
crianças que reivindicaram igualdade de direitos, clamaram pelo fim do
machismo, do abuso sexual e da violência contra as mulheres –
independentemente da roupa que elas estejam usando. O movimento pacífico
não era partidarizado, embora houvessem algumas pessoas com símbolos e
bandeiras de partidos políticos, e não pretendia visibilizar nenhuma
organização ou instituição em específico. Apesar de frases e gritos de
crítica à Igreja católica (que é totalmente contra o aborto) e ao
sistema capitalista (iniciativas mais isoladas), foi uma marcha voltada à
sociedade em seus mais diversos âmbitos.
Desde o início, durante a confecção de cartazes, muitos ativistas já
comentavam os possíveis desdobramentos midiáticos que a marcha –
organizada com a ajuda imprescindível de redes sociais virtuais –
poderia causar e especulavam quais seriam os discursos e críticas ao
protesto por parte da RBS, que concentra boa parte dos meios de
comunicação do estado e da região Sul do país. Mas a empresa
surpreendeu. E não foi de maneira positiva.
Distorcer entrevistas e minimizar a participação popular da marcha foi
apenas o começo. Afirmar que um movimento que parou uma importante via
da capital com mais de mil manifestantes tinha “dezenas de pessoas” no
jornal impresso Zero Hora foi uma piadinha bem rápida, perto da stand up comedy que se desenrolaria na segunda-feira subsequente (28 de maio). Logo no Bom Dia Rio Grande,
telejornal matinal da emissora no estado, gritos e frases de efeito
contra a violência sexual e pela igualdade de gênero foram simplesmente
igualados às escolhas de vestuário das mulheres – com direito a
comparações com personagens caricaturais de novelas. Mensagens como “Meu
corpo, minhas regras”, “Estupro não tem justificativa”, “Pelo fim da
violência contra a mulher”, “Menos violência + orgasmo”, “Se ser livre é
ser vadia, somos todas vadias”, “Estupro = Machismo”, “Eu não vim da
tua costela, tu que vieste do meu útero”, “Basta! Não somos
estupráveis”, “Mulher bonita é a que luta”, foram simplesmente ignoradas
em parte da matéria, que mostrou a Marcha das Vadias como um protesto
para que as mulheres usem roupas curtas ou chamativas. E só.
Participação “oportuna”
Parece óbvio que se a marcha tivesse um motivo eminentemente estético,
de aparência, relativo à moda, não haveria o por quê de marchar e de
mobilizar tantas pessoas em torno de uma causa. Mas o discurso da RBS
deixou claro que o grupo ativista lutava pelo direito de usar roupas
consideradas “vulgares” quando as mulheres bem entendessem. Visão
reducionista que transfere o valor do poder político das mulheres a uma
discussão sobre moda, consumo e corpo físico.
Apesar de a matéria televisiva ter mencionado que a organização do
protesto defendia que “[...] a mulher deve ser respeitada, independente (sic)
da forma de se vestir”, imediatamente depois a repórter Dayanne
Rodrigues diz que as mulheres estavam lutando (pasmem!) para que as
roupas justas não fossem consideradas vulgares. O foco da matéria foi
nas roupas das mulheres, e não no manifesto pacífico contra o machismo e
a violência sexual. E como já não fosse suficientemente incoerente,
exibe um trecho de entrevista (que contradiz a fala da própria repórter)
com uma das organizadoras da marcha explicando que, não importa a roupa
que a mulher use, nada confere a um homem o direito de abusar
sexualmente dela.
Até aí, talvez algum leitor pense que esta análise é totalmente
feminista, radical e que não considera eventuais deslizes que ocorrem
naturalmente na profissão de jornalista, na correria das redações etc.
Mas a reportagem é fechada com “chave de ouro” com a participação
bastante “oportuna” de uma consultora de moda. Sim, porque uma
consultora de moda obviamente iria revelar dados importantes
correlacionados a uma marcha contra a violência sexual (quanta
coerência!). Deturpando o objetivo principal da Marcha das Vadias, a
matéria passa a discutir o que uma mulher pode vestir (ou não) e quando
vestir, ratificando assim os padrões impostos às mulheres quanto ao
estereótipo e ao comportamento – aspectos ironicamente questionados na
marcha.
“Voz do povo”
Quando a repórter diz que “vale o bom senso” em relação às roupas a
serem usadas por mulheres, ela deve ter esquecido (ironicamente) sobre
como esse é também um elemento primordial na produção de conteúdo
jornalístico. O direito de sair de shortinho ou de minissaia defendido
na marcha não é um apelo comercial para que se compre mais dessas peças
de roupas, mas um pedido de respeito para que, muito vestida ou pouco
vestida, nada dê o direito a qualquer homem de considerá-la fácil,
vulgar ou “estuprável”. A impressão que ficou é a de que, se não
houvesse imagens, facilmente acreditaríamos que a repórter nem teria se
dado ao trabalho de ir à manifestação para ouvir a versão dos ativistas.
E as incoerências supracitadas no impresso e na TV do grupo RBS foram
apenas uma preparação ao que viria a ser dito em um programa da Rádio
Atlântida (pertencente ao mesmo conglomerado comunicacional) horas mais
tarde. O locutor Alexandre Fetter, em total desrespeito às
manifestantes, disse: “Vão lavar uma louça. Como vou respeitar quem se
auto-intitula de vadia?” O comentário gerou revolta por parte de muita
gente e gerou uma série de réplicas ao “comunicador” (se é que é
possível utilizar essa denominação), a ponto de ele escrever
debochadamente em sua conta de Twitter as seguintes mensagens: “Sofrendo
ataque de vadias e variações sobre o gênero, a tarde inteira” e “Daí
quem se auto intitula vadia fica braba por que a chamo pelo título. Não
consigo entender, daí, gurias. Relaxem e, eventualmente, gozem.”
Surge, então, o questionamento: seria essa a “voz do povo” do Rio
Grande do Sul? De uma pessoa que utiliza um programa de rádio para
debochar de causas ativistas e claramente corrobora com agressões
simbólicas machistas? De alguém que sequer foi capaz de pesquisar no
Google sobre os motivos do nome da Marcha das Vadias? O já referido “bom
senso” citado pela repórter do Bom Dia Rio Grande espera que não.
“Aprodução e transmissão do saber”
Percebe-se que, se a sociedade e a cultura do brasileiro estão tendendo
(mesmo que lentamente) à não aceitação de estereótipos e ao não
conformismo, o profissional de comunicação das grandes empresas (talvez
imposto por seus editores, ou não) deturpa critérios de noticiabilidade,
modifica narrativas e sentidos, desconsidera denúncias importantes. E
um jornalismo que não acompanha esse processo está fadado a ser tão
desacreditado quanto a política eleitoral no país.
Levando em conta a noção de ethos, que seria “a imagem de si
que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre
seu alocutário” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.220), qual é a
imagem de si que os comunicadores estão construindo? Será que os
jornalistas e o locutor do grupo RBS tentam ser objetivos à medida do
possível, ou seria esse um jornalismo híbrido deformado no qual “nem
temos um jornalismo opinativo consistente, pluralista; nem temos um
jornalismo noticioso habilitado a exercer a grande reportagem de
aprofundamento e investigação dos problemas sociais” (MEDINA, 1988, p.
140)?
Se, como diz Pena (2005), “a notícia nunca esteve tão carregada de
opinião”, por que travestir de informativo o que não é? Se o mesmo
teórico diz que o jornalismo é uma “prática discursiva especializada de
produção e transmissão de saber”, não seria esse saber orientado e
direcionado previamente? Se “a percepção individual, para ser ampliada,
necessita da assistência de intérpretes munidos com dados não amplamente
disponíveis à experiência individual” (BAUMAN, 2004), como proceder
quando os intérpretes não estão devidamente informados e bradam o que
primeiro lhes vier à cabeça?
Pretensa objetividade
Este artigo não tem a intenção de incitar o boicote à RBS, ou de propor
alternativas de comunicação aos produtos do grupo. Mas questionamos
como dar credibilidade a uma empresa de comunicação que age da forma
supracitada e que, muito irônica e incoerentemente, recém publicou um
“guia de ética” que prega que “o primeiro dever do jornalismo é a busca
da verdade”, que considera como seu objetivo “assegurar ao público seu
direito à informação independente, à opinião plural, às respostas e às
correções sempre que estas se fizerem necessárias” e que se diz “uma
empresa ética e que se orgulha do que faz”. É difícil encontrar na
prática um “bom senso” da RBS que seja tão lindo e transparente como é o
guia utópico.
A Marcha das Vadias de Porto Alegre conseguiu o que queria: gerar
debates, discussões, dissabores, polêmica e visibilidade ao movimento
pelo fim da violência sexual. Junto com um novo pensamento em termos de
sociedade e de educação (voltadas à diversidade), o que deve ser
repensado no fazer jornalístico e na sua pretensa objetividade?
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zigmunt. Entrevista com Zygmunt Bauman. Entrevista concedida a
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. São Paulo: Tempo Social, 2004. Disponível aqui, acesso em 28 de maio de 2012.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENAU, Dominique.Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
GRUPO RBS. Guia de Ética e autorregulamentação jornalística. PortoAlegre: RBS Publicações, 2011. Disponível aqui, acesso em 28 de maio de 2012.
GRUPO RBS. Marcha das vadias pede mais respeito às mulheres, em Porto Alegre. 28 de maio de 2012. Disponível aqui, acesso em 28 de maio de 2012.
MEDINA, Cremilda. Notícia um produto à venda: Jornalismo na sociedade urbana e industrial. 2ªed. São Paulo: Summus, 1988.
PENA, Felipe.Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005.
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