De: Sul21
Cláudio Guerra Foto: Reprodução / Topbooks / iG |
Da Redação
O delegado Sérgio Paranhos Fleury, titular da Delegacia de
Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo e um dos maiores símbolos da
repressão violenta a opositores durante a ditadura militar no Brasil,
teria sido assassinado por ordem dos próprios colegas de farda,
revoltados com o processo de abertura política iniciado por Ernesto
Geisel. A afirmação é de Cláudio Antônio Guerra, ex-delegado do
Departamento de Operações Políticas e Sociais (DOPS) no Espírito Santo,
em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros no livro
“Memórias de uma guerra suja”, recém-publicado pela editora Topbooks.
Cláudio Guerra faz outras declarações igualmente impactantes no
decorrer do livro. Até então um nome pouco citado entre entidades de
defesa dos direitos humanos, o ex-delegado do DOPS traz revelações que
podem ter grande peso nos trabalhos da Comissão da Verdade. Trata-se da
primeira confissão de participação em eventos de grande importância no
processo de resistência à redemocratização do país no final dos anos 70 e
início dos anos 80.
Após um período de certa fama no Espírito Santos no começo dos anos
70, quando era considerado um dos grandes nomes na luta contra a
“bandidagem”, Cláudio Guerra caiu em desgraça e terminou preso pelo
assassinato do bicheiro Jonathas Borlamarques de Souza – crime que ele
diz ter sido cometido por outro policial, a mando de dois coronéis que
comandavam a Secretaria de Segurança e o Departamento de Polícia. Foi
condenado a outros 18 anos pelas mortes de sua primeira esposa e da
cunhada, pena que está suspensa judicialmente. As confissões em
“Memórias de uma guerra suja” ocorrem, segundo o ex-integrante do DOPS,
depois de sua conversão a uma igreja evangélica. No momento, Guerra
encontra-se sob proteção da Polícia Federal.
Em seu depoimento, ele admite ter participado do atentado ao
Riocentro, durante as comemorações do Dia do trabalhador de 1981, em uma
ação que pretendia provocar um “grande golpe contra o projeto de
abertura democrática”. Revela, além disso, ter participado da ocultação
de cadáveres de dez presos políticos, entre eles alguns líderes
históricos do PCB, como David Capistrano e João Massena Mello. As
informações sobre o livro foram divulgadas nesta quarta-feira (2) pelo iG.
“O delegado Fleury tinha de morrer”
O ex-integrante do DOPS diz ter participado da própria reunião que
definiu a morte do delegado Fleury. “O delegado Fleury tinha de morrer.
Foi uma decisão unânime de nossa comunidade, em São Paulo, numa votação
feita em local público, o restaurante Baby Beef”, afirma Cláudio Guerra.
A reunião que selou a morte de Fleury teria contado com a presença do
coronel do Exército Ênio Pimentel da Silveira (o “Doutor Ney”); o
coronel-aviador Juarez de Deus Gomes da Silva, da Divisão de Segurança e
Informações do Ministério da Justiça; o delegado da Polícia Civil de
São Paulo Aparecido Laertes Calandra; o coronel de Exército Freddie
Perdigão, do Serviço Nacional de Informações (SNI); o comandante Antônio
Vieira, do Cenimar; e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
comandante do Departamento de Operações de Informações do 2º Exército
(DOI-Codi).
“Fleury tinha se tornado um homem rico desviando dinheiro dos
empresários que pagavam para sustentar as ações clandestinas do regime
militar. Não obedecia mais a ninguém, agindo por conta própria. E
exorbitava”, diz Cláudio Guerra, apontando também o vício em cocaína de
Fleury. “Cansei de ver”, afirma. A versão oficial é de que o delegado
Fleury morreu em um acidente de lancha em Ilhabela. Guerra afirma ter
dado a ideia de fazer tudo parecer um acidente, além de ter sido o
primeiro enviado para cometer o assassinato. Porém, após surgir a
notícia de que Fleury tinha adquirido uma lancha, a execução acabou
ficando a cargo do Centro de Informações da Marinha (Cenimar).
Militantes foram incinerados em usina de açúcar
Cláudio Guerra confessa ter sido um dos principais encarregados de
matar adversários da ditadura durante os anos 70 e 80. Entre outros, ele
afirma ter executado pessoalmente militantes de esquerda como Nestor
Veras, do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB). “Ele
tinha sido muito torturado e estava agonizando”, conta Guerra. “Eu lhe
dei o tiro de misericórdia, na verdade dois, um no peito e outro na
cabeça. Estava preso na Delegacia de Furtos em Belo Horizonte. Após
tirá-lo de lá, o levamos para uma mata e demos os tiros”.
A mando de seus superiores, o ex-delegado do DOPS diz ter executado
outros militantes, como Ronaldo Mouth Queiroz, estudante universitário e
membro da Aliança Libertadora Nacional – ALN, além de Emanuel Bezerra
Santos, Manoel Lisboa de Moura e Manoel Aleixo da Silva – três
integrantes do Partido Comunista Revolucionário (PCR).
Em outro trecho, Cláudio Guerra admite ter atuado para ocultar
cadáveres de pelo menos dez opositores da ditadura, incinerados em uma
usina de açúcar no norte do RJ chamada Cambahyba. A sugestão de usar os
fornos para incinerar cadáveres teria diso do próprio Cláudio Guerra. A
usina era de propriedade do ex-vice-governador do Rio de Janeiro Heli
Ribeiro, que recebia armas do Exército para combater sem-terra da região
e que, segundo Guerra, “faria o que fosse preciso para evitar que o
comunismo tomasse o poder no Brasil”.
Livro escrito por Marcelo Netto e Rogério Medeiros |
Teriam sido incinerados João Batista e Joaquim Pires Cerveira, presos
na Argentina pela equipe do delegado Fleury; Ana Rosa Kucinsk (que
apresentava sinais de violência sexual, de acordo com Guerra); Wilson
Silva (que teria tido as unhas da mão direita arrancadas); Fernando
Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação
Popular Marxista Leninista (APML); e David Capistrano, João Massena
Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes históricos
do PCB. Capistrano teve a mão direita arrancada, de acordo com Cláudio
Guerra.
Riocentro: “Era evidente que muitas pessoas morreriam pisoteadas após explosão”
Cláudio Guerra também admite participação direta no atentado no
Riocentro, em 1981. Além disso, afirma ter participado de “várias
equipes” que promoveram ações contra a abertura democrática no Brasil.
No Riocentro, a bomba teria, segundo Guerra, explodido por engano no
colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, por um erro do capitão
Wilson Luís Chaves Machado, que conduzia o veículo que transportava o
artefato. “Aquela bomba era uma das três que deveriam explodir no show. O
capitão Wilson estacionou o veículo embaixo de um fio de alta tensão e a
carga elétrica desse fio, a energia que passava em cima do Puma, fechou
o circuito da bomba, provocando a explosão. O erro foi do capitão”,
conta o ex-delegado do DOPS.
Teriam participado da operação Freddie Perdigão, coronel do Exército e
integrante do Serviço Nacional de Informações (SNI); o comandante
Antônio Vieira, do Centro de Informações da Marinha (Cenimar); e e o
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do Departamento de
Operações de Informações do 2º Exército (DOI-Codi).
Foto: Reprodução / OAB |
“O destino daquela bomba era o palco. Tratava-se de um artefato de
grande poder destruidor. O efeito da carga explosiva no ambiente
festivo, onde deveriam se apresentar uns oitenta artistas famosos, seria
devastador. A expansão da explosão e a onda de pânico dentro do
Riocentro gerariam consequências desastrosas. Era evidente que muitas
pessoas morreriam pisoteadas”, conta Cláudio Guerra, que teria sido
encarregado de prender os esquerdistas que seriam responsabilizados pelo
atentado.
Segundo ele, todos os serviços de apoio do Riocentro, incluindo
policiamento e assistência médica, de forma a potencializar a quantidade
de vítimas. Além disso, placas de trânsito foram pichadas com a sigla
da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), para dar a entender que o
ataque tinha sido uma ação da esquerda. A explosão prematura da bomba,
porém, acabou forçando os participantes a abortar a missão.
Inquérito sobre morte de Fleury pode ser reaberto, diz procuradora
Após a divulgação das informações, a procuradora da república Eugênia
Fávaro defendeu, em declarações ao iG, a reabertura do inquérito sobre a
morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. “Este relato tem uma série de
novos elementos e revelações muito, muito importantes. Vamos pedir que o
inquérito sobre a morte do delegado seja reaberto. Afinal, não deixa de
ser um homicídio comum”, afirmou a procuradora, integrante do grupo
designado pelo Ministério Público Federal para atuar juridicamente
contra ex-torturadores e criminosos ligados à ditadura militar.
Por sua vez, o deputado estadual paulista Adriano Diogo (PT),
presidente da Comissão da Verdade criada pela Assembleia Legislativa de
São Paulo, defendeu a convocação do ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra
para depor. “Embora ele seja do Espírito Santo, tem informações sobre
vários crimes ocorridos em São Paulo”, afirma o deputado, lembrando que a
comissão paulista tem autorização para trabalhar em qualquer lugar do
Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por sua opinião