em Arte e Ideias por Sandro Marcos
Tal qual a lepra, a esquizofrenia foi combustível para exercício do
preconceito e da falta de inteligência que podem assolar mentes humanas,
talvez sejam predispostas à maldade ou que sejam apenas engrenagem de
um sistema préconcebido para não funcionar, para ser torto e vil. Assim
como acontecia nos campos de leprosos de antigamente os equizofrênicos,
ou loucos, foram - e são - retirados do convívio social, familiar e
mundano. A sociedade, suas famílias (!) os colocaram à parte, ainda
colocam, e como se não fosse suficiente esta exclusão, há este terrível
caso onde humanos flagelam humanos em troca de uma fútil tranquilidade.
Falo do caso do lendário e deprimente Hospital Colônia de Barbacena,
Minas Gerais, Brasil. Um local terrível, de uma época em que não se
falava em humanização da psiquiatria no país.
Em visita recente à cidade fui ao antigo hospital para visitar o
Museu da Loucura, aproveitando para capturar as fotografias que ilustram
este artigo. O Museu, inaugurado em 1996, retrata e expõe claramente e
com coragem, a história deste que foi primeiro hospital psiquiátrico do
estado, criado em 1903 como Assistência aos Alienados do Estado de Minas Gerais.
Lá funcionava antes um Sanatório particular para tratamento de
tuberculose que havia falido e estava desativado. O "hospício", segundo
diversos registros históricos, situa-e em terras da antiga Fazenda da Caveira cujo proprietário era Joaquim Silvério dos Reis, conhecido na história mineira como o delator da Inconfidência.
De interessante construção arquitetônica o espaço do museu deixa os
visitantes, de certa forma, com um sentimento de melancolia e apreensão,
mas sem falsos dramas ou sensacionalismo. A imersão no conteúdo das
salas permite uma profunda reflexão sobre o mundo, sobre humanos e,
principalmente, sobre nós mesmos e nossa relação com o diverso, com o
difícil... A primeira sala mostra o relato da criação do hospital, sua
história e personagens principais da época com muitas fotos e destaque
para um exemplar genuíno do primeiro telefone da cidade de Barbacena que
era instalado no hospital. É recomendado paciência e atenção nesta sala
para que se possa "entrar no clima" do lugar. Destaque negativo da sala
para um ofício da Secretaria da Saúde destinado ao diretor do hospital
psiquiátrico orientando para que fossem retiradas as camas dos quartos
dos doentes e estes passassem a dormir no chão para que coubessem mais
deles num mesmo quarto. Uma desumana solução para a superlotação que
mostra o descaso de autoridades para com aquelas pessoas.
Ofício da Secretaria de saúde orientando a retirada das camas.
Doente em local sem camas.
A sala número dois é talvez a mais interessante e impactante pois
retrata as maneiras que os doentes eram tratados e as crueldades a que
eram submetidos, tudo ilustrado com fotos e objetos que chegam a dar
arrepios, como os aparelhos de eletrochoque, prática introduzida na
psiquiatria em 1938 e que produz, segundo especialistas, resultados
eficazes se utilizada com moderação e não nas cavalares doses que se
faziam comuns no hospital de Barbacena. Ainda nesta sala vemos outros
exemplos de materiais que compunham o dia a dia dos doentes, tais como
grades das celas onde ficavam, aparatos de uso famacêutico dentre outros
de cunho médico e mesmo de tortura sob pretexto de contenção. Após uma
olhada nas pesadas algemas expostas em uma vitrine foi triste constatar,
neste momento, o quão sem valor eram aquelas vidas para quem devia
cuidar delas e a sala seguinte revela muito disso ao mencionar como as
famílias dos "loucos" os levavam já com intenção de interná-los para
sempre e de nunca mais visitá-los.
Celas onde os doentes ficavam.
Aparelho eletroconvulsor.
Em seguida a visita torna-se um tanto mórbida ao pararmos para ler
alguns textos muito interessantes que contam como os funcionários do
hospital chegavam a cozinhar corpos de doentes mortos em tambores de
gasolina para que sua carne derretesse e os ossos pudessem ser vendidos
às faculdades de medicina da cidade e região. Nesta mesma sala, já a
quarta, vê-se fotos dos pátios, quartos e de outras dependências do
lugar como eram antigamente, fotos muitas vezes capturadas durante
visitas de famosos psiquiatras de todo o mundo.
Algemas usadas para contenção dos pacientes.
Cotidiano dos internados.
Outra impressionante exposição do museu é a representação de uma sala
de cirurgia na qual vemos alguns instrumentos que eram utilizados
antigamente e ainda um exemplar de crânio de um ex-paciente e algumas
radiografias. As práticas cirúrgicas adotadas no hospital eram, em sua
maioria, degradantes, cruéis e sem qualquer noção de cuidado humanitário
ou solidário com os internados. Frágeis e sempre confusos eles ficavam
sempre e completamente à mercê de inescrupulosos médicos e gerentes do
hospital que objetivavam tudo, menos seu tratamento adequado.
Termina-se a visita com uma exposição de divulgação da grife “Pirô
Criô”, composta por trabalhos manuais e de artesanato feito pelos
usuários do hospital. E este é momento propício par que sejam feitos
exames de consciência, momento para procurarmos nosso lugar nesta
sociedade onde os valores são demasiadamente turvos, onde pessoas não
são mais que nada. A psiquiatria passou por algumas evoluções
significativas e os esquizofrênicos aos poucos, e em poucos lugares, têm
deixado de ser tratados como casos perdidos para serem encarados de
frente como seres humanos portadores, sim, desta doença psiquiátrica
endógena, que se caracteriza principalmente pela perda do contato com a
realidade; não pela perda das características de seres humanos. Que
realidade é esta que nos orgulhamos de ostentar? Que vergonha é esta que
temos de ter ao nosso lado irmãos humanos que merecem talvez muito mais
que nós a atenção que lhes é negada?
Pátio no antigo manicômio.
Houve significativas melhorias na psiquiatria brasileira, com
movimentos de luta pela humanização do tratamento e dos hospitais,
abolição dos manicômios e, principalmente, pela revolução dos métodos
utilizados e do modo de ver o portador de esquizofrênia e outras doenças
mentais. Como relata este trecho de um artigo da Wikipédia: "As
políticas para a saúde mental foram objeto de vivo interesse de atores
sociais que a influenciaram através de atuações externas à gestão
sanitária nas últimas três décadas, determinando, em grande medida, sua
trajetória. Amarante define reforma psiquiátrica como um processo
histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e
estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação
do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria (1995). No caso
brasileiro esse processo é tributário dos debates teóricos e das
experiências que constituem o ideário da "nova psiquiatria" (Venancio,
1990). No Brasil, o processo se iniciou no final da década de 1970, no
contexto político de luta pela democratização. O principal marco de sua
fundação é a chamada "crise da Dinsam" (Divisão Nacional de Saúde
Mental), que eclode em 1978. Os profissionais da área denunciavam as
péssimas condições da maioria dos hospitais psiquiátricos do Ministério
da Saúde no Rio de Janeiro e vários foram demitidos. No mesmo ano, no V
Congresso Brasileiro de Psiquiatria, uma caravana de profissionais da
saúde demitidos no processo de lutas da Dinsam divulgou o Manifesto de
Camboriú e marcou o I Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde
Mental, realizado em São Paulo, em 1979. Neste processo surge o
principal protagonista da reforma psiquiátrica brasileira, o Movimento
dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)."
Após isso ganhou-se em certa qualidade no tratamento, hospitais
manicômio como o de Barbacena foram fechados, pessoas presas por maus
tratos e crueldade, bem como assassinatos. Mas ainda resta o
preconceito, numa das piores formas em que se manifesta, uma forma por
vezes disfarçada, mascarada de piedade e que na verdade é a pior
patologia a que está exposto o portador de esquizofrênia. O abando
familiar e social resistem ao tempo e a sensação de que a "loucura" é
uma condenação que nasce com o doente e traça sua sina para sempre
permanece ainda nos dias de hoje; houve reforma da psiquiatria mas não
uma reforma da sociedade.
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