Imagem: Paul Chatem, Islan of the Colorblind |
Um erro primário do STF virá à tona. E surgirá oportunidade de
debater o financiamento empresarial dos partidos, principal mecanismo de
corrupção política no Brasil
Por Antonio Martins |
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Este texto inaugura uma parceria entre
“Outras Palavras” e “Carta Capital”. A partir de hoje, parte de nosso
conteúdo passará a ser publicada simultaneamente no site da revista, em
nova iniciativa para fortalecer os laços entre as mídias
contra-hegemônicas.
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Se o voto do ministro Celso de Mello encerrar, nesta quarta-feira
(18/9), o julgamento do chamado “Mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), milhões de brasileiros irão sentir-se aliviados e engrandecidos.
Tendo acompanhado o episódio, durante oito anos, por meio dos jornais e
da TV, eles acreditarão que surgiu, enfim, um caso em que o desvio de
verbas públicas não ficará impune. Certas circunstâncias ampliarão seu
júbilo. Entre os condenados, haverá “peixes graúdos”. Não será poupado o
PT, partido no governo há dez anos. E, glória máxima, parte dos réus
irá para a cadeia – o símbolo maior e mais humilhante dos sistemas
punitivos modernos. Ficará aberto caminho, pensarão estes milhões, para
moralizar a vida política e resgatar a República.
Será um engano trágico, por dois motivos. Do ponto de vista factual, surgiram, nos últimos meses, sinais concretos de que o chamado “Mensalão” não envolveu
desvio de recursos públicos. O ministro Joaquim Barbosa, relator do
processo e hoje presidente do STF, ignorou estes sinais; teme que este
erro primário torne-se claro; é, também por isso, um opositor ferrenho
da reabertura do caso.
Mas o engano principal seria político. O encerramento do
processo, no pé em que está, evitará que a sociedade debata a corrupção
da vida política por meio do dinheiro oferecido pelas empresas aos
partidos e a suas campanhas eleitorais. Este é, de longe, o principal
mecanismo para submeter as decisões políticas ao poder econômico, e para
promover o enriquecimento ilícito de ocupantes de cargos públicos. Está
exposto, em detalhes, no episódio do “Mensalão”. Encarcerar José Dirceu
e seus colegas, e não examiná-lo, satisfará o ímpeto punitivo com que
alguns julgam possível enfrentar a corrupção. Mas varrerá para debaixo
do tapete o motor que a impulsiona.
* * *
A derrubada do mito segundo o
qual o “Mensalão” envolveu apropriação e desvio de recursos públicos é
obra de um mestre: o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, que dirigiu,
nos anos 1970 e 80 algumas das principais publicações da imprensa de
resistência à ditadura1. Hoje, toca a revista Retrato do Brasil, Lá,
ele e a repórter Lia Imanishi, escrevem, desde fevereiro de 2012, uma
série de reportagens investigativas sobre o julgamento, pelo STF, da
Ação Penal 470 (AP-470) – a que examina o “Mensalão”. Seu trabalho
estende-se por ao menos nove edições regulares da revista [1 2 3 4 5 6 7 8 9], um número especial e um livro.
Os textos expõe em detalhes como dois Procuradores-Gerais da República e
diversos ministros do Supremo, a começar por Joaquim Barbosa, passaram
por cima dos fatos e construíram, para o episódio, a versão que mais
interessava à mídia, à opinião pública conservadora e… ao próprio
sistema político.
Denunciado pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ)
em junho de 2005, o “Mensalão” chegou à Procuradoria-Geral (PGR) e ao
STF um mês depois. Alguns fatos muito graves eram conhecidos, mostram as
reportagens. No início do governo Lula, a direção nacional do PT
repassou, por orientação de seu tesoureiro, Delúbio Soares, e com apoio
do publicitário Marcos Valério, cerca de R$ 55,3 milhões a políticos de
cinco partidos: o próprio PT, PL, PP, PMDB e PTB. Os pagamentos foram
feitos por meio do chamado “valerioduto” – um esquema que incluía os
bancos Rural e BMG, mais a agência de publicidade de Valério e empresas
de seus sócios. Além disso, desde agosto daquele ano Delúbio admitiu
que cometera crimes eleitorais: arrecadação de fundos junto a empresas
sem contabilização (“caixa 2”); distribuição de somas a correligionários
e aliados, também “por fora”.
No entanto, mostra o Retrato do Brasil, os
procuradores-gerais Antonio Fernando de Souza (que atuou no caso até o
final de seu mandato, em junho de 2009) e seu sucessor, Roberto Gurgel,
omitiram-se da investigação deste delito. Estavam empenhados em
argumentar que a admissão do “caixa 2” era mera estratégia para ocultar
outro crime. Os dirigentes PT, no governo federal, teriam abastecido o
partido e as agremiações aliadas com recursos desviados do Estado.
Formular hipóteses é parte das atribuições do
procurador-geral, responsável por comandar inquéritos. Mas nem Antonio
Fernando de Souza, nem Roberto Gurgel preocuparam-se com os passos
posteriores indispensáveis: investigar; demonstrar a suposição; reunir
provas. Ao denunciar ao STF, em abril de 2006, quarenta pessoas
envolvidas no episódio, o primeiro assegurou que houvera desvio
de recursos públicos. À falta de provas, serviu-se de um atalho.
Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil (BB) à época
dos fatos, figurava ao mesmo tempo em duas pontas do inquérito. Ele
havia recebido, por meio do valerioduto, R$ 326 mil. E, na condição de
dirigente do BB, autorizara o pagamento de R$ 72,8 milhões à DNA,
agência de publicidade de Marcos Valério. Isso bastou para que o
procurador juntasse as pontas. A origem primeira do dinheiro repassado
ao PT e aliados seria o Banco do Brasil. Pizzolato desviara os R$ 72,8
milhões da instituição que ajudava a dirigir; como recompensa, recebera
suborno de R$ 326 mil.
A “demonstração” foi aceita e repetida acriticamente (e à
exaustão), nos últimos sete anos – a começar pelo sucessor de Souza e
pela maioria dos ministros do STF. Num de seus textos, Raimundo Pereira descreve,
com humor, o discurso empolado que o ministro Gilmar Mendes proferiu na
sessão do tribunal, transmitida ao vivo pela TV, em 29/8/12. Está no YouTube.
Voz empostada, gestos teatrais, Mendes indigna-se: “O que fizeram com o
Ban-co-do-Bra-sil?” E prossegue: “Em operações singelas, se tiram desta
instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum.
[…] Eu fico a imaginar […] como nós descemos na escala das
de-gra-da-ções”. Três semanas antes, ao apresentar sua acusação, no
plenário do Supremo, o procurar-geral Roberto Gurgel, assegurara: “Foi
sem dúvida o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de
dinheiro publico realizado no Brasil”.
Em nenhum momento, Pizzolato admitiu as acusações que
lhe foram feitas. Os R$ 326 mil recebidos via valerioduto, sustentou,
foram para o PT. Todos os pagamentos do BB à DNA correspondiam a
serviços efetivamente prestados pela agência. Conforme reza um princípio
elementar do Direito, cabia aos que o acusavam provar sua culpa.
Poucos sabem, mas o princípio básico da presunção de
inocência não foi respeitado, no julgamento da AP-470. O STF considerou
que, sendo os réus pessoas “muito poderosas”, e tendo eles supostamente
formado uma quadrilha para apagar as marcas de seus crimes, era possível
condená-los com base em indícios consistentes. Pizzolato, por exemplo,
foi condenado por unanimidade, em três das acusações que enfrentou e,
por 11 votos contra um, numa quarta. Devido à ampla diferença de votos,
não poderá beneficiar-se do direito a apresentar “embargos
infringentes”, mesmo que o ministro Celso de Mello considere-os
legítimos. Sua pena está fixada em 12 anos e 7 meses de prisão mais
multa em torno de R$ 1,3 milhão.
A partir de outubro, no entanto, restou-lhe um alento moral. As reportagens de Retrato do Brasil refizeram
a trilha de seus argumentos e comprovaram sua veracidade. O STF não
permite a Pizzolato reivindicar sua presunção de inocência, mas Raimundo
Pereira e Lia Imanishi estão conseguindo comprovar
que ele não é culpado do que lhe atribui o Supremo. A partir dos
próprios autos do processo, flagrantemente ignorados por dois
procuradores-gerais e diversos ministros do Supremo, levantaram 99 notas
fiscais que comprovam: os R$ 72,8 milhões pagos à DNA referem-se a
promoções e eventos reais, que ocorreram às vistas de milhares ou
milhões de brasileiros e têm documentação fiscal regular.
Se estivessem interessados em cumprir sua função
constitucional, e não em condenar de antemão, os procuradores e
ministros poderiam ter chegado às mesmas conclusões dos repórteres. Verificariam
que os recursos pagos pelo BB à DNA não “tiraram da instituição 73
milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum”. Custearam
eventos patrocinados pelo cartão de crédito do banco (bandeira Visa), ou
promoções para divulgá-lo. Entre elas, o Réveillon do Rio de Janeiro; o
Círio de Nazaré, em Belém; o Festival de Inverno de Campos do Jordão; a
exposição de cultura africana Projeto África, no Centro Cultural do
banco no Rio de Janeiro; a publicidade do BB nos biquínis, sutiãs e
bandanas das campeãs mundiais de vôlei de praia, Shelda e Adriana;
dezenas de peças publicitárias veiculadas pela Rede Globo…
As descobertas de Raimundo e Lia, que desmentem os
vereditos do STF, foram feitas em outubro do ano passado e têm sido
apresentadas, desde então, com profundidade e detalhes cada vez maiores,
nas sucessivas edições do Retrato do Brasil. Foram tema central
de debates e atos de protesto contra a forma como se deu o julgamento do
“Mensalão”. Até agora, não foram contestadas por nenhum ministro do
Supremo, nenhum dos dos procuradores-gerais da República envolvidos no
caso, nenhum dos jornais ou jornalistas que defendem a tese do “desvio
de dinheiro público”. Todos usam, como defesa, o silêncio e a inércia.
* * *
Ao desprezarem a investigação de crime eleitoral e
optarem pela tentativa de caracterizar desvio de dinheiro público,
ministros e procuradores fizeram uma opção política e de, digamos, marketing pessoal. Desvio atrai manchetes e holofotes, além de evocar cadeia.
Afirmar que a AP-470 tratou do “mais atrevido caso de corrupção da
História” reforça a tese, sempre repetida pelos jornais e TVs, de que o
Brasil seria melhor se jamais tivesse sido governado pela esquerda. Em
contraste, caixa dois de campanha parece coisa banal e corriqueira, algo que todos os partidos praticam, assunto desimportante. Será?
O economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP e
consultor de diversas agências da ONU, tem se empenhado em demonstrar o
contrário. Numa série de artigos e entrevistas publicados nos últimos
meses (inclusive em Outras Palavras), ele sustenta que o modelo
empresarial de financiamento dos partidos e dos políticos, no Brasil, é a
principal causa do esvaziamento da democracia, do sequestro da política
pelo poder econômico e do enriquecimento ilícito dos governantes. Sem
desmontar este modelo, diz Ladislau, combater a corrupção será sempre
uma caça catártica – porém vã – a bodes expiatórios.
Nas “sociedades de espetáculo”, altamente midiatizadas, explica
o professor, eleger um político tornou-se extremamente caro; e possuir
recursos para bancar muitos mandatos assegura enorme poder político. Em
1997, o Congresso Nacional modificou a legislação eleitoral e autorizou
as empresas a investir em partidos e políticos. Desde então, os gastos
globais dos candidatos nas eleições dispararam. Segundo o TSE, saltaram
de R$ 827 milhões, em 2002, para R$ 4,09 bilhões, em 2012 – um aumento
de 591%, em apenas uma década – isso, sem contar o caixa dois. “Eleger
um simples deputado, em qualquer Estado do país, não custa menos de R$
2,5 milhões”, diz Ladislau.
Quem é capaz de mobilizar estes recursos? Uma pesquisa
dos professores Wagner Praion Mancuso (USP) e Bruno Speck (Unicamp)
revela que “os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as
fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010,
corresponderam a 74,4% de todo dinheiro aplicado nas eleições”. Mais uma
vez, sem contar os recursos transferidos “por fora”. Quais os efeitos
deste vínculo entre pode econômico e mandatos?
Ladislau retorna: “Os interesses manifestam-se do lado
das políticas que serão aprovadas – por exemplo, contratos de construção
de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as
cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e as montadoras
agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a
preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a
necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre
representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte
coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele […]
sabe quem manda, está preso numa sinuca”.
As consequências deste controle são claras. Ladislau fornece
um exemplo, entre inúmeros. “Existe uma bancada Friboi no Congresso,
com 41 deputados federais e sete senadores. Dos 41 deputados financiados
pela empresa, só um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as mudanças
no Código Florestal. O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu
R$ 1,25 milhão de agropecuárias (…) Com o financiamento corporativo,
temos bancadas ruralista, da grande mídia, das montadoras, dos grandes
bancos, das empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do
cidadão”…
De que forma este fenômento se desdobra também em lesão
direta aos cofres públicos? “Uma dimensão importante deste círculo
vicioso”, arremata
Ladislau, “é o sobrefaturamento. Quanto mais se eleva o custo
financeiro das campanhas, mais a pressão empresarial sobre os políticos
se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com
muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos
contratos, que reduz as concorrências públicas a simulacros e permite
elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim
adquiridos permitirão financiar as campanhas da eleição seguinte”…
* * *
Nas eleições de 2012, o PT
foi, segundo o TSE, o partido que mais recebeu financiamento privado
para suas campanhas: R$ 255 milhões. As grandes empresas são
pragmáticas: investem em quem é mais capaz de reunir votos, eleger-se e
defender seus interesses: importa-lhes pouco a cor partidária. A entrada
dos petistas no circuito das campanhas sustentadas por empresas é,
porém, uma das explicações centrais para o retrocesso político do
partido – reconhecido por algumas de suas lideranças, como o governador
gaúcho Tarso Genro. Nas eleições para o Executivo, os choques são mais
crus. Mas na atuação parlamentar, por exemplo, estão se dissolvendo as
diferenças – antes nítidas – entre as bancadas petistas e as dos
partidos conservadores.
Também por isso, a conduta dos procuradores-gerais e da
maioria dos ministros do STF, no julgamento da AP-470, foi grotesco.
Tendo em mãos um caso que poderia revelar alguns dos mecanismos centrais
de corrupção da política – desde que investigado a fundo –, eles
optaram pela busca fácil e preguiçosa de “culpados” individuais, por
“jogar para a plateia”, por buscar sem descanso os holofotes. Ao
fazê-lo, cometeram, como se viu, injustiças e erros primários.
Se o ministro Celso de Mello optar, nesta quarta-feira,
por reconhecer o direito dos réus aos embargos infringentes, haverá
alguma esperança de reparar o estrago. Tecnicamente, o espaço para
corrigir as sentenças é exíguo. No plano do debate político, serão
outros quinhentos. Reaberto o caso, é provável que as revelações
factuais recentes feitas pelo trabalho jornalístico de Raimundo
Pereira e Lia Imanishi ganhem novo destaque. E – muito mais importante –
talvez surja uma brecha para argumentar que o resgate da democracia
começa com uma vastíssima reforma política, não com um espetáculo ritual
de encarceramento.
1Raimundo Pereira criou e editou Opinião (1971-1977) e Movimento (1975-1980), sobre o qual há um livro, disponível na Internet. Antes disso, dirigiu, entre outros trabalhos, a edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, considerada por alguns como “a maior de todas as reportagens da imprensa brasileira”.
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