Vitória da liberdade da imprensa na ação do policial contra o jornalista
“Nem parecia um policial. Tinha a cara e o focinho de um burocrata medíocre e exótico de algum escritório infecto de contabilidade da periferia”.
Estas linhas, pinçadas num livro de 450 páginas, foram algumas das motivações que levaram o ex-agente do DOPS gaúcho João Augusto da Rosa (conhecido nos porões policiais pelo apelido de "Irno") a ingressar com uma ação por danos morais contra o jornalista Luiz Cláudio Cunha, que durante muitos anos foi chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre.
Cunha é autor do livro “O Sequestro dos Uruguaios”, que reconstruiu um dos episódios tristes dos regimes militares que assolaram o continente sulamericano, na segunda metade do século passado. O seqüestro foi uma operação conjunta e clandestina de policiais brasileiros e uruguaios, perpetrada em novembro de 1978. As vítimas foram Universindo Díaz e Lílian Celiberti, militantes de uma organização de esquerda que combatia a ditadura no Uruguai e que estavam refugiados no Brasil.
O sequestro expôs as vísceras da sinistra Operação Condor à opinião pública brasileira e internacional. Fundada em 1975 no Chile de Pinochet, a Condor era uma vasta ação terrorista de Estado que atropelava fronteiras nacionais e afrontava direitos humanos, forçando o desaparecimento de quem ousasse contestar os regimes de força de muitos generais. Dissidentes políticos eram caçados por comandos clandestinos militares e policiais.
Ontem (25), a 9ª Câmara Cível do TJRS negou provimento ao recurso de apelação do policial e manteve na íntegra a sentença, proferida em 6 de julho do ano passado, pela juíza Claudia Maria Hardt, da 18ª Vara Cível de Porto Alegre. Na ação o autor alegou que, no livro, foi acusado de ter participado, em novembro de 1978, do evento conhecido como sequestro da Rua Botafogo, "reabrindo injusta revolta popular".
A editora L&PM - também ré da ação - invocou o direito de livre expressão, destacando que "a obra aborda episódio público e notório, ocorrido durante o regime militar".
O jornalista Luiz Claudio Cunha lembrou que os fatos e as fotografias presentes no livro já foram amplamente divulgados nos meios de comunicação, sem que esses tivessem sido processados. Mencionou também que na época do julgamento criminal os uruguaios sequestrados estavam presos no Uruguai, impossibilitando que fossem ouvidos.
A juíza enfatizou que "não se pode se esquecer dos abusos cometidos pelas autoridades durante o regime militar brasileiro, retratados em inúmeras compilações históricas e em relatos". Ressaltou ainda que "uma ação cível, como a presente, não pode invadir a esfera criminal julgando positiva ou negativamente quem teriam sido os participantes efetivos do episódio relatado na publicação, até porque tal pronunciamento judicial, como é sabido, já veio a ocorrer".
Na parte nuclear, a magistrada sustentou que "a absolvição criminal de João Augusto da Rosa, por insuficiência de provas, não impede o reexame da culpa e sua demonstração para fins de responsabilidade civil".
Afirma ainda o julgado que "só se mostram toleráveis as restrições à liberdade de imprensa quando comprovado o abuso de direito, o que não ocorre no presente caso".
A juíza reconhece que "o texto foi produzido a partir de relato das vítimas, de testemunhas oculares, de fotografias e de investigação, com o objetivo de desvendar os acontecimentos, e não de ofender a reputação do autor da ação".
Apesar de o livro escrito por Cunha não fazer alusão expressa ao julgamento do TJRS que absolveu o policial por falta de provas, acrescentou a juíza de primeiro grau que não encontrou dolo do repórter em atingir a imagem ou honra do policial. "Não se mostra razoável que o policial tenha se sentido ofendido de maneira especial com a obra aqui examinada, eis que o incidente abordado proporcionou grande repercussão nacional e internacional, com ampla difusão de informações em momentos múltiplos e por meio de variados veículos de informação" - refere a sentença.
A respeito da publicação de fotografias, afirmou que "as que integram o livro estão publicadas em diversas revistas, periódicos e outros veículos, caindo no que se pode denominar domínio público".
A relatora da apelação foi a desembargadora Marilene Bernardi. Ao manter a sentença, ela referiu que "não é possível limitar a criatividade e liberdade de escritores que abordam tema delicado como esse, pois se corre o risco de constranger o espírito investigativo dos repórteres e de encobrir informações necessárias para a fundamentação de nossa consciência crítica".
O voto também ressaltou "estar presente, neste caso, o interesse da sociedade e da própria história ao conhecimento, ainda que parcial, dos fatos ocorridos em recente período político, conhecido pelo lado negro da intolerância, da prepotência e da ausência de liberdade". (Proc. nº 70040534505).
A obscura ação policial no RS
Apanhados em Porto Alegre, Lílian, Universindo e as duas crianças (filhas dela) seriam entregues na fronteira aos agentes da repressão uruguaia. Um detalhe impediu que a operação fosse um êxito completo, como foram muitas outras ações da repressão.
Um telefonema anônimo para a redação da revista Veja, em Porto Alegre, numa tarde de novembro de 1978, levou Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Batista Scalco a um apartamento na Rua Botafogo, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, onde os dois uruguaios estavam morando.
Quando os dois jornalistas chegaram ao apartamento, Lílian e Universindo já estavam nas mãos dos agentes da repressão, que aguardavam para apanhar outro militante – Hugo Cores, o chefe do grupo, cuja visita era aguardada.
Lílian abriu a porta, mas não conseguiu falar nada. Dois homens que estavam no interior do apartamento apareceram, de armas na mão. Um colocou a pistola na cabeça de Cunha e o outro fez o mesmo com Scalco.
Os jornalistas se identificaram e depois de breve interrogatório foram liberados, com a recomendação da nada falarem, pois se tratava de uma operação para apanhar uruguaios ilegais no país.
Um detalhe foi decisivo para desvendar a história: Scalco, experiente fotógrafo de futebol, reconheceu o homem que apontara a arma para sua cabeça. Era Orandi Portassi Lucas, ex-atacante do Inter, conhecido como Didi Pedalada, que - depois de parar com o futebol - se tornara agente do Dops.
A partir desta pista, os jornalistas desvendaram a operação. O segundo homem seria identificado quase dois anos depois – era João Augusto da Rosa. A identificação de Didi Pedalada foi cabal e ele chegou a ser condenado. Mas a identificação de Irno, por meio de fotografias, foi insuficiente. Embora denunciado pelo promotor, após ter sido condenado em primeiro grau, ele foi absolvido, em recurso, por falta de provas.
As provas que poderiam ser decisivas contra João Augusto Rosa – o testemunho dos sequestrados – não puderam ser usadas. Quando ele foi absolvido, Lílian Celiberti e Universindo Dias, estavam incomunicáveis no cárcere da ditadura uruguaia.
Leia mais em: Espaço Vital
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