Reinaldo Guimarães* |
O
programa “Mais Médicos” está focado na necessidade de colocar médicos
onde não há médicos e onde médicos não querem ir. O “Mais Médicos” não
está interessado em atender as expectativas da corporação e,
principalmente, de seus representantes sindicais.
O
“Mais Médicos” não está fazendo competição com o mercado de trabalho
dos médicos brasileiros. Antes de importar médicos, houve uma chamada
para médicos brasileiros que, lamentavelmente, não prosperou. Em parte,
devido a uma feroz campanha contra o programa liderada pelos líderes
corporativos sindicais e de vários Conselhos Regionais de Medicina.
Após
a frustração da chamada de médicos brasileiros, o programa abriu uma
chamada internacional que, apesar de ter atraído médicos de vários
países, não logrou ainda atingir as metas estabelecidas pelo Ministério
da Saúde. Foi então que, com a interveniência da Organização
Panamericana da Saúde, foi assinado o convênio com Cuba.
Se
a campanha contra o programa já era feroz, a partir daí os
sindicalistas médicos entraram numa escalada de insanidades que atingiu o
seu ápice com as declarações do presidente do CRM de Minas Gerais.
Disse ele que, caso tenha notícia de algum médico em exercício com
diploma obtido no exterior e sem revalidação, acionará o Ministério
Público do Trabalho e a Polícia Federal para impedi-lo. Fora de si
(imagino eu), disse que orientará os médicos mineiros a não cooperarem
com os “sem Revalida” cubanos, caso haja algum pedido de ajuda técnica
por parte desses. No meu ponto de vista, caso essa afirmativa de seu
presidente seja confirmada, o CRM de Minas está sob suspeição para
julgar quaisquer transgressões éticas vindouras, posto que o seu
presidente está a instruir os médicos mineiros a discriminar colegas,
infringindo o Código de Ética Médica. Este,em seu capítulo I (princípios
fundamentais), reza que “A Medicina é uma profissão a serviço da saúde
do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de
nenhuma natureza” (grifo meu).
Os
representantes corporativos esbravejam: sem o Revalida, não dá! Digo eu:
se a banca examinadora não quiser, o Dr. Pitanguyou ou Dr. Jatene não
serão aprovados num exame para revalidação de diploma. Não é a toa que
apenas 10% dos que tentaram revalidar seus diplomas obtidos no exterior,
desde a instituição do teste, conseguiram a revalidação. Com o estado
de espírito que a maioria dos meus colegas têm apresentado com relação
ao “Mais Médicos”, seria uma carnificina.
No
dia 23 de agosto, um artigo na Folha de São Paulo dizia que médicos são
produzidos em série em Cuba, para exportação. O tom era discretamente
derrisório. É verdade, médicos são produzidos em série e esta é,há
décadas, a principal ferramenta para a projeção internacional de Cuba.
Qual o problema? Há quem exporte soldados e armas e guerras, há quem
exporte cocaína e por aí vai. Cuba exporta médicos. Nesse caso, trata-se
do que, em diplomacia, se chama soft power. Tão legítimo quanto, por
exemplo, a exportação de programas de ajuda realizada há décadas pela
agência estatal de cooperação norte-americana USAID.
Cuba
produz médicos “em série”, também porque, graças ao bloqueio econômico
imposto pelos Estados Unidos e, mais tarde, com o colapso
soviéticonecessita, para subsistir, de divisas. O exercício do soft
power médico contribui também para que entrem divisas em Cuba.
Pessoalmente, não me sinto confortável em apoiar que a remuneração de um
profissional seja, em parte, apropriada pelo Estado. Mas o meu
desconforto diminui quando me dou conta de quase 40% dos meus
rendimentos são religiosamente apropriados pelo Estado brasileiro na
forma de impostos variados. Parte desses, na fonte, como é o caso dos
médicos cubanos que um colunista hidrófobo da revista Veja denominou de
“escravos do Partido Comunista cubano”.
Outro
comentário lido sobre os médicos cubanos, “produzidos em série”, é que
eles não prestam. Sua formação é precária e eivada de ideologia. Não é o
que a opinião internacional informada sustenta ; ; (tomei como tal, o
American Journal of Public Health, o Lancet e uma carta publicada em
Science).A conclusão do artigo de Cooper et. al. sobre a prevenção e
controle das doenças cardiovasculares em Cuba vale a pena ser
transcrita: “Where as the social and political structure of societies
can under go rapid and dramatic change, such cultural norms as food,
music, and religion are sometimes more resilient. The goal of socialist
revolutions in poor undeveloped countries has been first and foremost to
catch up with the industrial economies of the world. In public health,
this has meant almost exclusively the elimination of infectious diseases
and the assurance of low death rates in childhood. Cuba stands as the
prime example of the unequaled success of the socialist project in
achieving that goal. Within that tradition, however, the need to
aggressively intervene against engrained cultural patterns, particularly
those related to consumption, was something of a foreign idea. A
fundamental rethinking of this strategy will be required to take full
advantage of the new knowledge in prevention science that could now make
an important contribution to the future health of the Cuban people. The
improvements in quality and duration of life in Cuba over the last 50
years have been astounding and set the standard for poor countries
around the world. These achievements—for example, eliminating polio in
1962, two decades ahead of the United States—are evidence of the
remarkable goals Cuba is capable of achieving. Similar leadership in CVD
prevention could make enormously valuable contributions to the
worldwide campaign to control what has already become the most severe
epidemic ever faced by humanity. The Cuban experience thus demonstrates
that control of CVD in non industrialized countries is by no means
impossible, and it highlights the critical importance of
population-based prevention strategies”.
Acredito
que os médicos cubanos talvez não sejam peritos em “procedimentos” de
última geração - nem os realmente úteis, nem os inúteis ou francamente
prejudiciais. Entretanto, desconfio que a maior parte dos médicos
brasileiros também não seja, embora atualmente talvez almejem sê-lo. Mas
os médicos cubanos não estão entre nós como “procedimentólogos”, mas
como profissionais no campo da atenção primária (promoção, prevenção e
cuidados básicos de saúde). E, nesse terreno, creio que eles têm muito a
nos ensinar. Aliás, de acordo com o presidente Barack Obama, têm a
ensinar também aos médicos norte-americanos -“U.S. President Barack
Obama hasacknowledgedthatthe United Statescouldlearn from Cuba's medical
foreign aidprogram” .
A fonte de uma das
maiores frustrações (e de aprendizado) dos especialistas brasileiros no
terreno da educação e do trabalho em saúde foi a evidência de que
reformas curriculares não mudam o mercado de trabalho e que o caminho de
ajustar a formação médica às necessidades de saúde é o inverso. É a
mudança do mercado que será capaz de ajustar os currículos. Se tomarmos a
atual conformação do mercado médico brasileiro, com a deterioração
paulatina e consentida do SUS e a expansão selvagem do sistema
suplementar, concluiremos que a formação médica entre nós decididamente
não vai ao encontro das necessidades de saúde, muito pelo contrário. Não
foi por outra razão que os médicos brasileiros não atenderam ao chamado
do “Mais Médicos”. A campanha dos líderes corporativos contra o
programa, nesse sentido, interpreta corretamente os desejos da maioria
dos nossos médicos, em particular os mais jovens.
Esta
é a razão da convocação dos médicos estrangeiros e, em particular, dos
cubanos que, pelas razões que expressei no início desse texto, parecem
estar dispostos a enfrentar os desafios médico-sanitários do Brasil
profundo. Pode vir a ser um bom exemplo ao mercado.
Em
1997, uma equipe liderada por Maria Helena Machado concluiu e publicou
uma pesquisa sobre os médicos brasileiros. O panorama que nela se
vislumbra permanece atual, a despeito de terem se passado 16 anos. A
rigor, as tintas com que Machado e sua equipe descrevem a categoria
médica brasileira de então devem ser hoje bastante mais carregadas. Uma
cópia do livro pode ser encontrada em
http://static.scielo.org/scielobooks/bm9qp/pdf/machado-9788575412695.pdf.
A leitura desse clássico me parece indispensável para compreender os
dilemas dos médicos e seus representantes corporativos frente ao “Mais
Médicos”.
Julie Feinsilver é uma socióloga
atualmente na American University. Esteve no Brasil como consultora da
presidência da Fiocruz em 1996. Nos últimos 20 anos vem estudando a
diplomacia médica cubana. Em 2010, publicou um artigo na revista
CubanStudies que fornece uma visão abrangente sobre a ação de Cuba
nesse terreno durante os primeiros 50 anos da revolução cubana. O centro
de sua argumentação se localiza no balanço entre a solidariedade e o
pragmatismo como vetores da atuação internacional de Cuba no campo da
saúde. Creio ser uma leitura essencial para compreender esse tema e uma
cópia de seu trabalho pode ser encontrada em:
http://www.academia.edu/1139326/Fifty_Years_of_Cubas_Medical_Diplomacy_From_Idealism_to_Pragmatism
.
* - Médico Sanitarista
Notas
(1)
Manuel Franco, Richard Cooper, Pedro Orduñez - Making Sure Public
Health Policies Work. SCIENCE, Vol 311 www.sciencemag.org. 24 February
2006, p. 1098 (letters).
(2)R. S. Cooper, P. Orduñez, M. D. I.
Ferrer, J. L. B. Munoz, A., Espinosa-Brito - Cardiovascular Disease and
Associated Risk Factors in Cuba: Prospects for Prevention and Control
http://ajph.aphapublications.org/doi/abs/10.2105/AJPH.2004.051417, Am. J. Public Health 96, 94 (2006).
(3)Wakai S. - Mobilization of Cuban doctors in developing countries. Lancet 2002: 360;92
(4)http://www.worldpoliticsreview.com/articles/12840/the-danger-of-dependence-cubas-foreign-policy-after-chavez
(5)Julie M. Feinsilver -Fifty Years of Cuba's Medical Diplomacy: From Idealism to Pragmatism.
Cuban Studies, Volume 41, 2010, pp. 85-104
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