Carlos Alexandre, suicidou-se no início de fevereiro.
Reproduzo a matéria da Revista Isto É, que ajuda a entender o tamanho da tragédia desse e de outros atingidos pela ditadura e seus requintes de crueldade.
"A ditadura não acabou"
Filho de militantes de esquerda, Carlos Alexandre foi preso e torturado quando era bebê. Cresceu agressivo e isolado. Aos 37 anos, ele ainda sente os efeitos dos anos de chumbo: vive recluso, sem trabalho nem amigos - sofre de fobia social
Solange Azevedo
No vídeo você confere os depoimentos de Dermi Azevedo, pai de Carlos Alexandre
Carlos Alexandre Azevedo, 37 anos, torturado quando era bebê. |
Ele tem olhos de aflição e feições de dor.
Suas palavras saem cadenciadas, são quase sussurros. “Minha família
nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a
ditadura”, diz. “Os meus pais foram presos e eu fui usado para
pressioná-los.” Carlos Alexandre Azevedo tinha 1 ano e 8 meses quando
policiais invadiram a casa da família, na zona sul de São Paulo, e o
levaram para a sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social
(Deops). Era 15 de janeiro de 1974. Bem armados e truculentos, os
agentes da repressão o encontraram na companhia da babá – uma moça de
origem nordestina conhecida como Joana. Chegaram dando ordens. Exigiram
que os dois permanecessem imóveis no sofá. Apenas Joana obedeceu. Como
castigo pelo choro persistente, Carlos Alexandre levou uma bofetada tão
forte que acabou com os lábios cortados. Foram mais de 15 horas de
agonia. O drama de Carlos Alexandre – um dos mais surpreendentes dos
anos de chumbo – veio à tona no momento em que o governo brasileiro
discute a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar casos de
tortura, sequestros, desaparecimentos e violações de direitos humanos
durante a ditadura militar (1964-1985). Carlos Alexandre decidiu revelar
sua história, com exclusividade, à ISTOÉ depois que o seu processo de
anistia foi julgado pelo Ministério da Justiça. No dia 13 de janeiro,
ele foi declarado “anistiado político”. Deve receber uma indenização de
R$ 100 mil por ter sido vítima dos militares. “Muita gente ainda acha
que não houve ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em
Brasília, me senti compreendido.
Carlos aos 3 anos, com os pais |
As pessoas sabiam que o que eu vivi foi
verdade”, alega. “A indenização não vai apagar nada do que aconteceu na
minha vida. Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado
falhou comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus
efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social.”
Fragmentos da vida de Carlos Alexandre, hoje com 37 anos, estão
guardados na memória do pai, o jornalistae cientista político Dermi
Azevedo. Outros ficaram entre as lembranças da mãe, a pedagoga Darcy
Andozia. “Minha família sempre foi muito retraída, sem diálogo. Não
costumávamos falar sobre tortura. Esse assunto sempre foi tabu entre
nós”, conta Carlos Alexandre. Ele descobriu o próprio passado ao remexer
em gavetas, aos 10 ou 11 anos de idade. Misturado a fotografias antigas
e a uma porção de papéis, encontrou o desenho de uma vaquinha,
conhecida na época por simbolizar a “esperança”, com o seguinte recado:
“Deops 1974: Quando você ficar mais velho, seus pais vão te contar a sua
história.” Parte do sofrimento da infância lhe foi revelada pela mãe.
“Cacá apanhou porque estava chorando de fome. Os policiais falavam que,
naquela idade, ele já era doutrinado e perigoso”, lamenta Darcy. Presas
políticas disseram ao pai que o menino fora torturado no Deops. “Meses
depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vítima de
choques elétricos e outras sevícias. Ele foi jogado no chão e bateu a
cabeça”, afirma Dermi. “Maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade.”
Quando os agentes levaram Carlos Alexandre e a babá, Darcy não estava em
casa – seria trancafiada no Deops horas depois.
“Até hoje sofro os efeitos da ditadura. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social”
Ela havia saído cedo em busca de ajuda para o
marido preso. Aquela era a segunda invasão à residência dos Azevedo. Na
noite anterior, policiais vasculharam todos os cômodos em busca de
“material subversivo”. Encontraram um livro intitulado “Educação Moral e
Cívica & Escalada Fascista no Brasil” e o consideraram uma injúria
às autoridades. Dermi, Darcy e a educadora Maria Nilde Mascellani foram
processados – e absolvidos – sob a acusação de tentar difamar o Estado
brasileiro. Dermi e Darcy eram ligados aos padres dominicanos e a uma
das principais vozes que lutavam contra a ditadura, o então cardeal de
São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Faziam parte da retaguarda do
movimento de resistência – abrigavam militantes que se preparavam para
embarcar para o Exterior. O período de cárcere foi tenso e doloroso.
Darcy permaneceu mais de 40 dias na cadeia. Foi pressionada
psicologicamente, mas não sofreu violência física. Dermi ficou cerca de
quatro meses no xadrez. Apanhou muito. Quando já não suportava mais a
dor, invocava o nome d’Ele: “Ai, meu Deus. Meu Deus.” Enquanto Darcy
esteve atrás das grades, Carlos Alexandre foi cuidado pelos avós – e
continuou a sofrer as consequências de escolhas que não foram suas. “Em
certos momentos, tive raiva porque meus pais expuseram os filhos. Mas
depois senti orgulho porque eles lutaram contra os abusos dos militares e
fazem parte da história do Brasil”, diz. Carlos Alexandre padece de um
transtorno chamado pela ciência de fobia social: um medo excessivo e
persistente de se expor à avaliação alheia. Quem tem esse distúrbio se
esquiva sistematicamente de contatos interpessoais – principalmente com
pessoas do sexo oposto, desconhecidas ou autoridades – porque teme ser
humilhado ou rejeitado.
Dermi Azevedo, jornalista, pai de Carlos Alexandre, em frente ao prédio onde funcionava o Deops |
O diagnóstico foi mencionado pela psicóloga
Ana Maria Falvino, que tratou de Carlos Alexandre, num documento
encaminhado à Comissão de Anistia. No texto, a psicóloga detalha a
evolução do transtorno no paciente e situações relatadas pela família
Azevedo. Mas não afirma categoricamente que o problema dele é
consequência direta de tortura. As situações vividas por
CarlosAlexandre, no entanto, o inserem no grupo de risco descrito pela
medicina. De acordo com o médico Márcio Bernik, coordenador do
Ambulatório de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da
Universidade de São Paulo, cerca de 30% dos casos de fobia social têm
origem genética. Os outros 70% se devem a vivências complexas.Os pais
são o primeiro modelo para a criança. Observar como eles lidam com as
adversidades, se enxergam o ambiente social como fonte de prazer e
alegria ou como algo desconfortável e ameaçador, se são tímidos ou têm
muitos amigos, é de extrema importância para o bom desenvolvimento
infantil. Bernik afirma que crianças provocadas e maltratadas por
colegas e que vivem experiências marcantes de rejeição e de sofrimento
são mais suscetíveis à fobia social na vida adulta. Logo que Dermi
deixou a prisão, em maio de 1974, a família toda se mudou para a sua
terra natal, o Rio Grande do Norte. Primeiro foi para Currais Novos, no
interior do Estado. Em seguida para a capital, Natal. A violência
psicológica e as agressões físicas – como as intermináveis sessões no
pau de arara e os repetidos golpes na cabeça, chamados nos porões da
ditadura de “telefone” – derrubaram Dermi. Durante um bom período, ele
não foi capaz sequer de sair da cama. Passava o tempo todo coberto. Teve
crises de paranoia e medo de tudo. Não podia trabalhar. O aperto
financeiro desestabilizava ainda mais a família. Ele foi recuperando
devagar a coragem de se levantar, ir à esquina, andar sozinho.
“Meses
depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vÍtima de
choques elétricos e outras sevÍcias. ele foi jogado no chão e bateu a
cabeça. maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade”
“Dermi não se destruiu. Transformou o trauma
numa batalha pela vida e continua lutando pela dignidade humana”,
avalia a psicanalista Miriam Schnaiderman, codiretora do documentário
“Sobreviventes”, que narra experiências de pessoas que passaram por
situações-limite. Enquanto Dermi tentava se recuperar, Darcy tinha de se
desdobrar para dar conta da casa e dos filhos – do primogênito e de
dois meninos que vieram depois. Carlos Alexandre demonstrou os primeiros
sinais de isolamento já em Currais Novos. Não interagia comoutras
crianças, tornou-se agressivo e andava sempre triste. Às vezes, acordava
agitado procurando pela mãe: “Mamãe, onde é o barulho do trem?” A sede
do Deops, onde ele esteve detido durante algumas horas, era na região da
Estação da Luz. De lá, dava para ouvir o som do vai e vem das
composições. Apesar de a família estar longe de São Paulo, onde a
perseguição seria mais severa, os Azevedo eram constantemente vigiados
pelos militares locais e discriminados pela vizinhança. Viviam sendo
apontados como “bandidos”, “terroristas” e tratados como se tivessem
alguma doença contagiosa. Carlos Alexandre cresceu sob intensa pressão,
testemunhando as crises do pai e a inquietude da mãe. Chorava para não
ir à escola. Não suportava ficar distante dos pais. A instabilidade e a
dinâmica familiar contribuíram para aumentar o afastamento de Carlos
Alexandre. “A perseguição afetou os outros filhos, mas não de maneira
tão intensa quanto ele”, relata Dermi. As mudanças de casa e de cidade
eram constantes a ponto de os meninos não serem capazes de criar laços
de amizade ou se adaptar completamente à escola.
Darcy Andozia, pedagoga aposentada, mãe de Carlos Alexandre |
O único período de relativa calmaria e
imobilidade durou cerca de quatro anos – entre 1981 e o início de 1985,
quando os Azevedo moraram em Piracicaba, no interior paulista. A filha
mais nova nasceu lá. Todos eram respeitados. Darcy e Dermi tinham
vínculo com uma universidade do município – já não eram encarados como
“bandidos” ou “terroristas”, mas como intelectuais. E a ditadura militar
caminhava para o fim. A saída de Piracicaba foi traumática para Carlos
Alexandre. “Era o único lugar em que eu tinha amigos. Foi aí que me
isolei de vez. Parei de estudar e me tranquei em casa”, lembra. Carlos
Alexandre tinha acabado de entrar na adolescência. No interior paulista,
costumava brincar na rua, jogar bola e frequentar festinhas vestindo
short e camiseta. Não se importava muito com o figurino. Os novos
desafios da cidade grande o fizeram submergir no medo. Ele já não era
mais convidado para festas, se sentia incapaz de dançar com as meninas e
apanhava dos garotos cotidianamente. Quando tentava revidar, era pior.
Apanhava mais. “Por ser introvertido, não ser muito bonito nem me vestir
como eles, eu era humilhado e vivia sendo alvo de chacotas”, afirma.
Carlos Alexandre sucumbiu à crueldade adolescente e se enterrou nas
próprias fragilidades. Afirma ter passado cerca de sete anos (dos 13 aos
20) praticamente sem sair de casa. Tentou frequentar a escola. Não
conseguiu. Nos momentos de nervosismo intenso, quebrava tudo o que
encontrasse pela frente. Engordou 40 quilos em seis meses. Tentou o
suicídio “algumas vezes”. Quando decidiu enfrentar o medo da rua,
trabalhou como auxiliar de escritório.
“O meu filho apanhou dos policiais do deops porque estava chorando de fome. levou um tapa tão forte que cortou os lábios"
Ficou um ano no emprego – seu recorde com
carteira assinada. Depois atuou como operador de microcomputador e
diagramador. Interagir era tão penoso que Carlos Alexandre pediu
demissão e foi demitido diversas vezes porque não suportava conviver com
os colegas de trabalho. “As pessoas começavam a perguntar da minha
vida: o que eu fazia, se tinha estudado, se tinha namorada, quem eu era,
aonde eu ia. Acabava ficando um clima ruim”, conta. “Estar no meio de
muitas pessoas é muito cansativo para mim. Falar também. Sair de casa e
sentar num bar é um incômodo muito grande. Mas hoje já não entro em
pânico porque estou em tratamento.” Um ou dois amigos visitam Carlos
Alexandre esporadicamente. Vão ao apartamento que ele divide com a mãe
na região central de São Paulo. Seus outros – raros – amigos são todos
virtuais. Ao optar pela rede, ele se protege da sociedade. “Quando rompo
o ciclo vicioso, consigo até ter uma vida. Mas tenho muito medo de
recaídas”, diz. Atualmente, ele costuma sair três vezes por semana para
ir à academia. De vez em quando, vai à banca comprar gibis japoneses.
Sua rotina é singela. Mas Carlos Alexandre quer mais. “Não sou feliz.
Sinto vergonha de não trabalhar. Também gostaria de ter uma família
minha, com mulher e filhos. Mas tenho consciência de que devo dar um
passo de cada vez. Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga recomeçar.
Mesmo estando com 37 anos.”
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