quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Dia da umbanda

Veio Zuza, personagem de Chico Anysio

Além de lembrarmos a Proclamação da República, 15 de novembro também é o Dia Nacional da Umbanda. Achei ruim essa coindidência de datas. Aliás, é emblemático que a proclamação da república brasileira, que se pretende um estado laico coincida com o dia dedicado a uma religião. Mas...agora está feito. Há lugares do país em que o "Dia da Reforma (Protestante)" é feriado. Feriados católicos temos aos montes. Os judeus fazem seus próprios feriados e a gente tem que respeitar. Ao menos o Dia da Umbanda aproveitou um feriado já existente.
@s fiéis leitor@s deste modesto blog sabem que não curto religião nenhuma. Religião não é um fenômeno divino, mas um fenômeno cultural. É com essa perspectiva que reproduzo artigo publicado em  Metafísica Anárquica. Se não me falha a memória, é uma reprodução sintética de artigo de Umberto Eco publicado no livro "Viagem à irrealidade cotidiana". O artigo trata de modo interessante (de acordo com a erudição do autor) sobre o caráter essencialmente brasileiro da crença e como ela se insere no universo sincrético brasileiro, além de seu papel na criação de uma imagem nacional. 
Vale a pena ler um artigo da Revista de HIstória da Biblioteca Nacional fala sobre o "pai da umbanda", senhor Zélio de Moraes. 

E, por fim, apesar de algumas imagens horríveis à venda nas lojas especializadas,  a figura do "preto-velho" não deixa de ser simpática. O preto-velho é o guru brasileiro.


Candomblé, umbanda, escravos negros na visão de Umberto Eco 


O erudito europeu Umberto Eco formulou respeitosas definições sobre sincretismo brasileiro, em seu livro O Pêndulo de Foucault (1988).
Nesta obra ficcional, o personagem italiano Agliè (suposta reencarnação do mítico Conde de São Germano, ou Saint Germain) vai desvendando os ritos afro-brasileiros, assim como a identidade dos negros brasileiros que tiveram sua memória cultural destruída.
Relembrando: o abolicionista Ruy Barbosa, quando Ministro da Fazenda (governo Deodoro da Fonseca), mandou queimar todos os registros de escravos negros do Brasil. Motivos alegados: apagar tristes lembranças do passado escravocrata, evitar a indenização aos proprietários de escravos, etc.

“E vi Salvador, Salvador da Bahia de Todos os Santos, a Roma negra, e suas trezentas e sessenta e cinco igrejas alcantiladas na linha das colinas ou pousadas ao longo da baía, onde se cultuam os deuses do panteão africano.”
Hesed, capítulo 26.

“... Mas de onde vêm estas divindades? É uma história complexa. Em primeiro lugar trata-se de um ramo sudanês que se impôs no Norte do Brasil desde os primórdios da escravidão, e desse cepo provém o candomblé dos orixás, ou seja das divindades africanas. Nos estados do Sul há influência de grupos bantos e a partir daí iniciam mesclas em cadeia. Enquanto os cultos do Norte permanecem fiéis às religiões africanas originárias, no Sul a macumba primitiva evolve em direção da umbanda, por sua vez influenciada pelo catolicismo, o espiritismo e o ocultismo europeus ...”
Hesed, capítulo 27.

“.... Mas o sincretismo tem uma mecânica muito sutil. Observaram do lado de fora da porta, junto às comidas de santo, uma estatueta de ferro, uma espécie de diabrete com o tridente, tendo algumas oferendas votivas em torno? É Exu, poderosíssimo na umbanda, mas não no candomblé. Contudo, também o candomblé o venera, considera-o um espírito mensageiro, uma espécie de Mercúrio degenerado. Na umbanda as pessoas são possuídas por Exu, aqui não. Todavia é sempre tratado com benevolência, nunca se sabe. Veja lá ao fundo junto à parede ... Indicou-me a estátua policroma de um índio nu e a de um velho escravo negro vestido de branco, sentado a fumar cachimbo: são um caboclo e um preto velho, espíritos de mortos que nos ritos de umbanda têm muito valor. Que fazem ali? Recebem homenagem e não são utilizados porque o candomblé só estabelece relações com os orixás africanos, mas nem por isso são renegados aqui."
Hesed, capítulo 27.


“As forças do sincretismo são infinitas, minha cara. Se quiser, poderei oferecer-lhe a versão política de toda essa história. As leis do século XIX restituíram a liberdade aos escravos, mas na tentativa de extinguir os estigmas da escravidão queimaram todos os arquivos do mercado escravagista. Os escravos se tornam formalmente livres, mas sem passado. E procuram então reconstruir uma identidade coletiva, à falta daquela familiar. Voltam às raízes. É seu modo de opor-se, como vocês jovens dizem, às forças dominantes."
Hessed, capítulo 27.

"Mas o senhor acabou de dizer que houve interferência das seitas européias ... , disse Amparo.
Minha cara, a pureza é um luxo, e os escravos pegam o que têm à mão. Mas se vingam. Hoje já cativaram mais brancos do que pensa. Os cultos africanos originários tinham a fraqueza de todas religiões, eram locais, étnicos, míopes. Em contato com os mitos dos colonizadores reproduziram um antigo milagre: ressuscitaram os cultos misteriosos do segundo e terceiro séculos de nossa era, no Mediterrâneo, entre a Roma que se desfazia aos poucos e os fermentos que vinhamda Pérsia, do Egito, da Palestina pré-judaica... Nos séculos do baixo Império a África recebe os influxos de toda a religiosidade mediterrânea e se torna escrínio para eles, condensando-os. A Europa torna-se corrompida pelo cristianismo da razão de estado, a África conserva os tesouros do saber, como já os havia conservado e difundido no tempo dos egípcios, doando-os aos gregos, que dele fizeram tábula rasa."
Hessed, capítulo 27.


“Mas aí vem chegando a mãe-de-santo, a Ialorixá.
O encontro com a guia do terreiro foi calmo, cordial, popularesco e culto. Era uma preta imensa, de sorriso deslumbrante. À primeira vista dir-se-ia tratar-se de uma dona de casa, mas quando começamos a falar compreendi por que as mulheres do gênero podiam dominar a vida cultural de Salvador.
Esses orixás são pessoas ou forças? perguntei-lhe. A mãe-de-santo respondeu-me sim, que eram forças, água, vento, folhas, arco-íris. Mas como impedir que os simples os vissem como guerreiros, mulheres, santos da igreja católica? A igreja também não adora talvez uma força cósmica sob a forma de várias virgens? O importante é venerar a força, o aspecto deve adequar-se às possibilidades de compreensão de cada um.”
Hessed, capítulo 28.

“Depois convidou-nos a entrar no jardim dos fundos, para visitar as capelas, antes de ter início o rito. No jardim estavam as casas dos orixás. Um grupo de moças negras, vestidas de baianas, agitavam-se alegremente nos últimos preparativos.
As casas dos orixás estavam dispostas no jardim como as capelas de uma Via Sacra, e mostravam no exterior a imagem do santo correspondente. No interior gritavam as cores cruas das flores, das estátuas, das comidas preparadas há pouco e oferecidas aos deuses. 
... Contudo não nos queria deixar antes de nos oferecer uma prova das comidas de santo, não daquelas que estavam na corbelha, porque deviam permanecer intactas, mas diretamente de sua cozinha. Levou-nos para os fundos do terreiro, e foi um festim policromo de mandiocas, pimentas, cocos, amendoim, gengibre, muqueca de siri-mole, vatapá, efó, caruru, feijão-preto com farofa, entre um odor macio de especiarias africanas, sabores tropicais adocicados e fortes, que degustamos com compunção, sabendo que participávamos dos manjares de antigos deuses sudaneses.”
Hessed, capítulo 28.

1ª foto: Ialorixá de Cachoeira, BA - Ialorixá Eugênia Ana dos Santos - Ialorixá Maria Bibiana do Espírito Santo.
2ª foto: pinturas de Debret e Rugendas.
3ª foto: efó - abará - caruru.

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