Veio Zuza, personagem de Chico Anysio |
Além de lembrarmos a Proclamação da República, 15 de novembro também é o Dia Nacional da Umbanda. Achei ruim essa coindidência de datas. Aliás, é emblemático que a proclamação da república brasileira, que se pretende um estado laico coincida com o dia dedicado a uma religião. Mas...agora está feito. Há lugares do país em que o "Dia da Reforma (Protestante)" é feriado. Feriados católicos temos aos montes. Os judeus fazem seus próprios feriados e a gente tem que respeitar. Ao menos o Dia da Umbanda aproveitou um feriado já existente.
@s fiéis leitor@s deste modesto blog sabem que não curto religião nenhuma. Religião não é um fenômeno divino, mas um fenômeno cultural. É com essa perspectiva que reproduzo artigo publicado em Metafísica Anárquica. Se não me falha a memória, é uma reprodução sintética de artigo de Umberto Eco publicado no livro "Viagem à irrealidade cotidiana". O artigo trata de modo interessante (de acordo com a erudição do autor) sobre o caráter essencialmente brasileiro da crença e como ela se insere no universo sincrético brasileiro, além de seu papel na criação de uma imagem nacional.
Vale a pena ler um artigo da Revista de HIstória da Biblioteca Nacional fala sobre o "pai da umbanda", senhor Zélio de Moraes.
E, por fim, apesar de algumas imagens horríveis à venda nas lojas especializadas, a figura do "preto-velho" não deixa de ser simpática. O preto-velho é o guru brasileiro.
Candomblé, umbanda, escravos negros na visão de Umberto Eco
O erudito europeu Umberto Eco formulou respeitosas definições sobre sincretismo brasileiro, em seu livro O Pêndulo de Foucault (1988).
Nesta obra
ficcional, o personagem italiano Agliè (suposta reencarnação do mítico
Conde de São Germano, ou Saint Germain) vai desvendando os ritos
afro-brasileiros, assim como a identidade dos negros brasileiros que
tiveram sua memória cultural destruída.
Relembrando: o abolicionista Ruy Barbosa, quando Ministro da Fazenda (governo Deodoro da Fonseca), mandou queimar todos os registros de escravos negros do Brasil. Motivos alegados: apagar tristes lembranças do passado escravocrata, evitar a indenização aos proprietários de escravos, etc.
Relembrando: o abolicionista Ruy Barbosa, quando Ministro da Fazenda (governo Deodoro da Fonseca), mandou queimar todos os registros de escravos negros do Brasil. Motivos alegados: apagar tristes lembranças do passado escravocrata, evitar a indenização aos proprietários de escravos, etc.
“E vi Salvador, Salvador da Bahia de Todos os Santos, a Roma negra,
e suas trezentas e sessenta e cinco igrejas alcantiladas na linha das
colinas ou pousadas ao longo da baía, onde se cultuam os deuses do
panteão africano.”
Hesed, capítulo 26.
“... Mas de onde vêm estas divindades? É uma história complexa. Em
primeiro lugar trata-se de um ramo sudanês que se impôs no Norte do
Brasil desde os primórdios da escravidão, e desse cepo provém o
candomblé dos orixás, ou seja das divindades africanas. Nos estados do
Sul há influência de grupos bantos e a partir daí iniciam mesclas em
cadeia. Enquanto os cultos do Norte permanecem fiéis às religiões
africanas originárias, no Sul a macumba primitiva evolve em direção da
umbanda, por sua vez influenciada pelo catolicismo, o espiritismo e o
ocultismo europeus ...”
Hesed, capítulo 27.
“.... Mas o sincretismo tem uma mecânica muito sutil. Observaram do
lado de fora da porta, junto às comidas de santo, uma estatueta de
ferro, uma espécie de diabrete com o tridente, tendo algumas oferendas
votivas em torno? É Exu, poderosíssimo na umbanda, mas não no candomblé.
Contudo, também o candomblé o venera, considera-o um espírito
mensageiro, uma espécie de Mercúrio degenerado. Na umbanda as pessoas
são possuídas por Exu, aqui não. Todavia é sempre tratado com
benevolência, nunca se sabe. Veja lá ao fundo junto à parede ...
Indicou-me a estátua policroma de um índio nu e a de um velho escravo
negro vestido de branco, sentado a fumar cachimbo: são um caboclo e um
preto velho, espíritos de mortos que nos ritos de umbanda têm muito
valor. Que fazem ali? Recebem homenagem e não são utilizados porque o
candomblé só estabelece relações com os orixás africanos, mas nem por
isso são renegados aqui."
Hesed, capítulo 27.
“As forças do sincretismo são infinitas, minha cara. Se quiser,
poderei oferecer-lhe a versão política de toda essa história. As leis do
século XIX restituíram a liberdade aos escravos, mas na tentativa de
extinguir os estigmas da escravidão queimaram todos os arquivos do
mercado escravagista. Os escravos se tornam formalmente livres, mas sem
passado. E procuram então reconstruir uma identidade coletiva, à falta
daquela familiar. Voltam às raízes. É seu modo de opor-se, como vocês
jovens dizem, às forças dominantes."
Hessed, capítulo 27.
"Mas o senhor acabou de dizer que houve interferência das seitas européias ... , disse Amparo.
Minha cara, a pureza é um luxo, e os escravos pegam o que têm à mão.
Mas se vingam. Hoje já cativaram mais brancos do que pensa. Os cultos
africanos originários tinham a fraqueza de todas religiões, eram locais,
étnicos, míopes. Em contato com os mitos dos colonizadores reproduziram
um antigo milagre: ressuscitaram os cultos misteriosos do segundo e
terceiro séculos de nossa era, no Mediterrâneo, entre a Roma que se
desfazia aos poucos e os fermentos que vinhamda Pérsia, do Egito, da
Palestina pré-judaica... Nos séculos do baixo Império a África recebe os
influxos de toda a religiosidade mediterrânea e se torna escrínio para
eles, condensando-os. A Europa torna-se corrompida pelo cristianismo da
razão de estado, a África conserva os tesouros do saber, como já os
havia conservado e difundido no tempo dos egípcios, doando-os aos
gregos, que dele fizeram tábula rasa."
Hessed, capítulo 27.
“Mas aí vem chegando a mãe-de-santo, a Ialorixá.
O encontro com a guia do terreiro foi calmo, cordial, popularesco e
culto. Era uma preta imensa, de sorriso deslumbrante. À primeira vista
dir-se-ia tratar-se de uma dona de casa, mas quando começamos a falar
compreendi por que as mulheres do gênero podiam dominar a vida cultural
de Salvador.
Esses orixás são pessoas ou forças? perguntei-lhe. A mãe-de-santo
respondeu-me sim, que eram forças, água, vento, folhas, arco-íris. Mas
como impedir que os simples os vissem como guerreiros, mulheres, santos
da igreja católica? A igreja também não adora talvez uma força cósmica
sob a forma de várias virgens? O importante é venerar a força, o aspecto
deve adequar-se às possibilidades de compreensão de cada um.”
Hessed, capítulo 28.
“Depois convidou-nos a entrar no jardim dos fundos, para visitar as
capelas, antes de ter início o rito. No jardim estavam as casas dos
orixás. Um grupo de moças negras, vestidas de baianas, agitavam-se
alegremente nos últimos preparativos.
As casas dos orixás estavam dispostas no jardim como as capelas de
uma Via Sacra, e mostravam no exterior a imagem do santo correspondente.
No interior gritavam as cores cruas das flores, das estátuas, das
comidas preparadas há pouco e oferecidas aos deuses.
... Contudo não nos queria deixar antes de nos oferecer uma prova das
comidas de santo, não daquelas que estavam na corbelha, porque deviam
permanecer intactas, mas diretamente de sua cozinha. Levou-nos para os
fundos do terreiro, e foi um festim policromo de mandiocas, pimentas,
cocos, amendoim, gengibre, muqueca de siri-mole, vatapá, efó, caruru,
feijão-preto com farofa, entre um odor macio de especiarias africanas,
sabores tropicais adocicados e fortes, que degustamos com compunção,
sabendo que participávamos dos manjares de antigos deuses sudaneses.”
Hessed, capítulo 28.
1ª foto: Ialorixá de Cachoeira, BA - Ialorixá Eugênia Ana dos Santos - Ialorixá Maria Bibiana do Espírito Santo.
2ª foto: pinturas de Debret e Rugendas.
3ª foto: efó - abará - caruru.
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