quinta-feira, 25 de outubro de 2012

"Francisco, um destino". Filme narra trajetória de São Francisco

Filme italiano narra trajetória de São Francisco de Assis e questiona a relação entre a genialidade e inspiração pessoal do homem; e as consequências disso na comunidade para a qual ele se dirigia

Em Revista de História

Marcello Scarron


Francesco – A Historia de São Francisco de Assis
Dir. Liliana Cavani, Itália, 1989
 
Que os nossos leitores que reclamam pelo fato desta seção não dar muito espaço a comentários sobre filmes brasileiros nos perdoem. Não trataremos de uma produção nacional outra vez. Mas aceitem nossos benevolentes leitores o conselho de dedicar seu tempo e sua atenção a um filmede ser europeu,a Idade Media. iferente sobre um periodo  que, apesar de ser europeu, oferece um olhar diferente sobre um período singular da assim chamada Idade Média, com sua cultura de inspiração cristã e com a visão de mundo que ela proporcionava.
Afinal, a história nacional começa a ser contada a partir da chegada de navegadores portugueses que deste imaginário, desta cultura, partilhavam muitos elementos: mesmo sendo homens que viviam o inicio da modernidade, estavam intimamente moldados por aquela visão e ela acaba sendo influenciada desde suas origens por esse clima de religiosidade. Mais um elemento reforça os motivos do espaço dedicado a esta produção: a oportunidade de oferecer uma abordagem diferente e, de certa forma complementar, a leituras cinematográficas do período medieval que andam mais populares entre nós, como O Nome da Rosa, filmagem (1986, Jean-Jacques Annaud) do livro homônimo de Umberto Eco, ou O Incrível Exercito de Brancaleone (1966, Mario Monicelli), comédia sobre desajeitadas aventuras de um grupo de cavaleiros na Baixa Idade Media, ou ainda as várias produções hollywoodianas retratando William Wallace, Robin Hood ou Joana D’Arc.
O filme de que vamos falar aqui é Francesco – A Historia de São Francisco de Assis, produção da diretora italiana Liliana Cavani, de 1989. Não se trata exatamente de uma cinebiografia do fundador da ordem franciscana, e sim de uma leitura original e historicamente bem documentada da vida daquele que, por muitos aspectos, é a personalidade mais interessante do cristianismo medieval. Uma leitura realizada por uma diretora laica e alheia a simpatias para o catolicismo: exatamente por isso, sua visão dos fatos se destaca pelo rigor na reconstituição de personagens e ambientes, evitando com habilidade a queda no sentimentalismo. O Francisco da Cavani é o homem real, desfrutador dos prazeres da existência no inicio de sua vida e teimoso seguidor das pegadas de Cristo até o extremo da solidão e do abandono quase desesperado no resto de sua caminhada. Nada a ver, para nos entendermos, com o Francisco, poeta da natureza e louco romântico, retratado por Zeffirelli em Irmão Sol, Irmã Lua (1972).
 
Preocupação com a reconstrução histórica
Narrado com a técnica do flash-back, com a vida de Francisco evocada pelas lembranças de alguns dos seus primeiros companheiros, reunidos, após sua morte, junto com Clara (a primeira mulher a se empenhar no caminho proposto pelo santo), o filme mostra os pontos mais significativos de sua existência sem uma preocupação excessiva com a cronologia e sim com a reconstituição histórica. É o mundo medieval de uma pequena cidade italiana, Assis, no começo do século XIII, que é retratado, com seus conflitos e suas crenças. Um mundo no qual a sensibilidade religiosa cristã perpassa todos os setores da sociedade, em parte moldando uma mentalidade, em parte se digladiando com costumes e práticas não cristãs. Um mundo no qual a proposta de radicalismo evangélico de Francisco encontra adesões e recusas fortes. Um mundo talvez bastante longínquo de nossos parâmetros de juízo, de nossos metros de valores, mas um mundo que é preciso conhecer e penetrar para poder avaliar sem anacronismos ou estereótipos.
Destaque no filme para três pontos emblemáticos. O primeiro é a chegada em Roma, junto à corte pontifícia, do primeiro grupo franciscano, em busca de aprovação para a sua proposta de vida e sua regra. A simplicidade e austeridade de Francisco e seus companheiros e sua vontade de viver o Evangelho ao pé da letra contrastam com as limitações e os compromissos dos quais a autoridade do catolicismo se declara refém. No diálogo entre o Papa, os cardeais e os franciscanos está uma chave para a compreensão da sociedade medieval, da influência nela do cristianismo e da Igreja, e ao mesmo tempo de quanto há, nesta influência, de temporal, de histórico, de herdado de uma mentalidade imperial romana. A inveja do pontífice e de alguns cardeais pela liberdade com que Francisco pode viver o seguimento de Jesus mostra os dois lados da mesma moeda.
Um segundo momento significativo é o registro das dimensões que o movimento franciscano toma desde seus primeiros anos, com entusiasmos e inevitáveis diferenciações e problemas: jovens da Europa toda confluem em Assis em ocasião de uma reunião da incipiente ordem, preocupando o fundador que, como os históricos lembram, tudo queria menos ‘fundar uma ordem’. Os contrastes entre as várias tendências do franciscanismo já se manifestam. Terceiro ponto a destacar é a parábola final da vida do santo, com a solidão procurada numa tentativa de entender melhor a voz de Deus e sua vontade, diante de tantas dificuldades e incompreensões. Um Francisco quase desesperado, angustiado, peregrino por bosques e pedras inacessíveis: uma imagem bastante distante das tradicionalmente transmitidas pela iconografia ou pela memória popular, mas uma imagem historicamente real. Até o misterioso momento da resposta divina, que encerra o filme.   
“Traçar a curva de um destino que foi simples, mas trágico; situar com precisão os poucos pontos realmente importantes por onde passou essa curva; mostrar de que maneira, sob a pressão de que circunstâncias, seu impulso inicial teve de esmorecer, e seu traçado original, inflectir-se; colocar assim, acerca de um homem de singular vitalidade, esse problema das relações entre o individuo e a coletividade, entre a iniciativa pessoal e a necessidade social, que é, talvez. o problema essencial da historia: tal foi nosso intuito.” Não seja visto como pretensão atribuir ao menos parte destas intenções - formuladas pelo historiador francês Lucien Febvre na abertura de seu livro de 1927, “Martinho Lutero, um destino” – à diretora Liliana Cavani. A dela não foi obra de historiadora, e sim de artista, e a arte tem outras leis que não as da historia. Mas sua tentativa parece mesmo a de traçar a curva do destino de Francisco, e de se interrogar sobre a relação entre a genialidade e inspiração pessoal do homem e o eco disso na comunidade à qual ele se dirigia.
Uma palavra sobre os atores: além de vários coadjuvantes, se destacam Helena Bonham Carter como Clara e, sobretudo, Mickey Rourke como o próprio Francisco, num desempenho muito interessante, capaz de liberar capacidades interpretativas surpreendentes. Afinal, uma obra válida, até como documento de um tempo e de uma sociedade, que por isso nos induz a perdoar uma duração talvez excessiva.

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