Filme italiano narra trajetória de São Francisco de Assis e questiona a relação entre a genialidade e inspiração pessoal do homem; e as consequências disso na comunidade para a qual ele se dirigia
Em Revista de História
Marcello Scarron
Francesco – A Historia de São Francisco de Assis
Dir. Liliana Cavani, Itália, 1989
Que
os nossos leitores que reclamam pelo fato desta seção não dar muito
espaço a comentários sobre filmes brasileiros nos perdoem. Não
trataremos de uma produção nacional outra vez. Mas aceitem nossos
benevolentes leitores o conselho de dedicar seu tempo e sua atenção a um
filmede ser europeu,a Idade Media. iferente sobre um periodo que,
apesar de ser europeu, oferece um olhar diferente sobre um período
singular da assim chamada Idade Média, com sua cultura de inspiração
cristã e com a visão de mundo que ela proporcionava.
Afinal, a história nacional começa a ser contada a partir da chegada de
navegadores portugueses que deste imaginário, desta cultura,
partilhavam muitos elementos: mesmo sendo homens que viviam o inicio da
modernidade, estavam intimamente moldados por aquela visão e ela acaba
sendo influenciada desde suas origens por esse clima de religiosidade.
Mais um elemento reforça os motivos do espaço dedicado a esta produção: a
oportunidade de oferecer uma abordagem diferente e, de certa forma
complementar, a leituras cinematográficas do período medieval que andam
mais populares entre nós, como O Nome da Rosa, filmagem (1986, Jean-Jacques Annaud) do livro homônimo de Umberto Eco, ou O Incrível Exercito de Brancaleone
(1966, Mario Monicelli), comédia sobre desajeitadas aventuras de um
grupo de cavaleiros na Baixa Idade Media, ou ainda as várias produções
hollywoodianas retratando William Wallace, Robin Hood ou Joana D’Arc.
O filme de que vamos falar aqui é Francesco – A Historia de São Francisco de Assis,
produção da diretora italiana Liliana Cavani, de 1989. Não se trata
exatamente de uma cinebiografia do fundador da ordem franciscana, e sim
de uma leitura original e historicamente bem documentada da vida daquele
que, por muitos aspectos, é a personalidade mais interessante do
cristianismo medieval. Uma leitura realizada por uma diretora laica e
alheia a simpatias para o catolicismo: exatamente por isso, sua visão
dos fatos se destaca pelo rigor na reconstituição de personagens e
ambientes, evitando com habilidade a queda no sentimentalismo. O
Francisco da Cavani é o homem real, desfrutador dos prazeres da
existência no inicio de sua vida e teimoso seguidor das pegadas de
Cristo até o extremo da solidão e do abandono quase desesperado no resto
de sua caminhada. Nada a ver, para nos entendermos, com o Francisco,
poeta da natureza e louco romântico, retratado por Zeffirelli em Irmão Sol, Irmã Lua (1972).
Preocupação com a reconstrução histórica
Narrado com a técnica do flash-back, com a vida de Francisco evocada
pelas lembranças de alguns dos seus primeiros companheiros, reunidos,
após sua morte, junto com Clara (a primeira mulher a se empenhar no
caminho proposto pelo santo), o filme mostra os pontos mais
significativos de sua existência sem uma preocupação excessiva com a
cronologia e sim com a reconstituição histórica. É o mundo medieval de
uma pequena cidade italiana, Assis, no começo do século XIII, que é
retratado, com seus conflitos e suas crenças. Um mundo no qual a
sensibilidade religiosa cristã perpassa todos os setores da sociedade,
em parte moldando uma mentalidade, em parte se digladiando com costumes e
práticas não cristãs. Um mundo no qual a proposta de radicalismo
evangélico de Francisco encontra adesões e recusas fortes. Um mundo
talvez bastante longínquo de nossos parâmetros de juízo, de nossos
metros de valores, mas um mundo que é preciso conhecer e penetrar para
poder avaliar sem anacronismos ou estereótipos.
Destaque no filme para três pontos emblemáticos. O primeiro é a chegada
em Roma, junto à corte pontifícia, do primeiro grupo franciscano, em
busca de aprovação para a sua proposta de vida e sua regra. A
simplicidade e austeridade de Francisco e seus companheiros e sua
vontade de viver o Evangelho ao pé da letra contrastam com as limitações
e os compromissos dos quais a autoridade do catolicismo se declara
refém. No diálogo entre o Papa, os cardeais e os franciscanos está uma
chave para a compreensão da sociedade medieval, da influência nela do
cristianismo e da Igreja, e ao mesmo tempo de quanto há, nesta
influência, de temporal, de histórico, de herdado de uma mentalidade
imperial romana. A inveja do pontífice e de alguns cardeais pela
liberdade com que Francisco pode viver o seguimento de Jesus mostra os
dois lados da mesma moeda.
Um
segundo momento significativo é o registro das dimensões que o
movimento franciscano toma desde seus primeiros anos, com entusiasmos e
inevitáveis diferenciações e problemas: jovens da Europa toda confluem
em Assis em ocasião de uma reunião da incipiente ordem, preocupando o
fundador que, como os históricos lembram, tudo queria menos ‘fundar uma
ordem’. Os contrastes entre as várias tendências do franciscanismo já se
manifestam. Terceiro ponto a destacar é a parábola final da vida do
santo, com a solidão procurada numa tentativa de entender melhor a voz
de Deus e sua vontade, diante de tantas dificuldades e incompreensões.
Um Francisco quase desesperado, angustiado, peregrino por bosques e
pedras inacessíveis: uma imagem bastante distante das tradicionalmente
transmitidas pela iconografia ou pela memória popular, mas uma imagem
historicamente real. Até o misterioso momento da resposta divina, que
encerra o filme.
“Traçar a curva de um destino que foi simples, mas trágico; situar com
precisão os poucos pontos realmente importantes por onde passou essa
curva; mostrar de que maneira, sob a pressão de que circunstâncias, seu
impulso inicial teve de esmorecer, e seu traçado original, inflectir-se;
colocar assim, acerca de um homem de singular vitalidade, esse problema
das relações entre o individuo e a coletividade, entre a iniciativa
pessoal e a necessidade social, que é, talvez. o problema essencial da
historia: tal foi nosso intuito.” Não seja visto como pretensão atribuir
ao menos parte destas intenções - formuladas pelo historiador francês
Lucien Febvre na abertura de seu livro de 1927, “Martinho Lutero, um
destino” – à diretora Liliana Cavani. A dela não foi obra de
historiadora, e sim de artista, e a arte tem outras leis que não as da
historia. Mas sua tentativa parece mesmo a de traçar a curva do destino
de Francisco, e de se interrogar sobre a relação entre a genialidade e
inspiração pessoal do homem e o eco disso na comunidade à qual ele se
dirigia.
Uma palavra sobre os atores: além de vários coadjuvantes, se destacam Helena Bonham Carter como Clara e, sobretudo, Mickey Rourke
como o próprio Francisco, num desempenho muito interessante, capaz de
liberar capacidades interpretativas surpreendentes. Afinal, uma obra
válida, até como documento de um tempo e de uma sociedade, que por isso
nos induz a perdoar uma duração talvez excessiva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por sua opinião