Por Álvaro Nunes Larangeira: Observatório da Imprensa
Em vez de rede, a rede. Ao invés da dúvida, a credulidade. Da prova, o
ilusório. O jornalismo de orelha e o historicismo circense têm
extrapolado em pretensão e petulância. Assoberbam-se às custas da
comodidade das telas e da maciez das cadeiras e poltronas.
Aproveitando-se da corriqueira relutância ao desgastante exercício da
certificação, satisfazem os incautos com releases cevados a louvamentos e
adulações ao compadrio e mecenato, divertem os ingênuos com o
ilusionismo dos guias do tipo politicamente incorretos e
majoritariamente falaciosos e agora pretendem engambelar o leitorado por
meio do ineditismo farsesco e da himenoplastia documental. Ah!, tenham
dó. Pelo menos dos nossos neurônios.
A última pérola da dupla diz respeito ao livro Getúlio 1882-1930 – Dos anos de formação à conquista do poder,
o primeiro volume da trilogia do jornalista Lira Neto sobre o
ex-presidente Getúlio Vargas, lançado pela Companhia das Letras agora em
maio. A apresentação do remake biográfico do paradigmático
personagem da história política brasileira parece tomada pela euforia
bipolar. “A biografia mais completa já escrita sobre um político
brasileiro”, anuncia o vídeo da editora.
A gana pela revelação teofânica, obsessão do ethos do jornalismo
auricular, é externada pelo colunista Lauro Jardim, da revista Veja: “Um Getúlio Vargas surpreendente emerge das páginas de Getúlio”.
O ineditismo esvaíra-se muito antes
E o paranoico afã pela originalidade legitimadora da investigação é
exposto sob forma intimidativa. “Desafio qualquer pessoa a mostrar onde
estão as citações ao inquérito original. Os documentos estavam intactos
nos arquivos, fui o primeiro a manuseá-los”, provoca o autor (ver aqui),
referindo-se ao pretendido caráter de inusitado pela publicação do
discurso proferido por Getúlio Vargas como orador da turma na formatura
na Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre e pelo manuseio dos
processos de Ouro Preto (MG) e Palmeira das Missões (RS), nos quais
haveria, de acordo com Carlos Lacerda, envolvimento do político gaúcho
em dois assassinatos, um em cada cidade.
Ora, então vejamos. O início do texto lido pelo bacharelando Getúlio em
25 de dezembro de 1907 diz o seguinte, na ortografia original: “Eis nos
chegados ao termo da jornada. Atomos perdidos no mundo dos phenomenos,
uniu-nos a transitoriedade d'um instante para a realisação d'um grande
ideal” (ver aqui). Na página 141 do capítulo “Orador dos estudantes e jornalista de O Debate”, do segundo volume de Getúlio Vargas e o seu tempo – um retrato com luz e sombra,
publicado em 1994, o biógrafo Fernando Jorge transcreve a primeira
parte da fala na solenidade da colação de grau: “Eis-nos chegados ao
termo da jornada. Átomos perdidos no mundo dos fenômenos, reuniu-nos a
transitoriedade de um instante para a realização de um grande ideal.”
Teria Fernando Jorge obtido fragmentos textuais idênticos aos da
formatura em algum centro espírita? Nada disso, foi naquele mesmo
arquivo intacto ao qual Lira Neto se referira. Até porque o ineditismo
do texto esvaíra-se muito tempo antes. “Um de seus biógrafos fora ao Rio
Grande do Sul em busca de dados. Entrevistara vários colegas e
contemporâneos, descobrira vários documentos ainda inéditos, entre eles o
discurso de formatura”, revelaria Alzira Vargas do Amaral Peixoto em
1960, na página 11 do livro Getúlio Vargas, meu pai. Quase duas
décadas depois Alzira entregaria a documentação ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação
Getulio Vargas.
“Nenhuma grande novidade”
Circunstância semelhante ocorre no caso Ouro Preto. O barbante da
almejada originalidade rompe-se à força da verificação. O jurista
Augusto de Lima Júnior redige todo o capítulo “Austeridade intrépida”,
em Serões e Vigílias: páginas avulsas, baseado no processo que o pai, o magistrado Augusto Lima, ajuizou. À página 42, na obra lançada em 1952, Lima Júnior comenta:
“Êsse processo famoso, desde que o Sr. Getulio Vargas assumiu o poder
no Brasil tem sido consultado com freqüência por interessados em
encontrar nêle material adequado a retaliações políticas”.
Permaneceriam virginais à espera do toque do midas Lira Neto os autos
do processo do assassinato do estudante paulista Carlos de Almeida Prado
em junho de 1897, envolvendo os irmãos Vargas – Viriato, Protásio e até
Getúlio, então com 15 anos? Talvez, em algum conto de fadas.
Boris Fausto, autor de Getúlio – o poder e o sorriso, da coleção Perfis brasileiros, organizada pela própria Companhia das Letras, e responsável pelo texto da contracapa do Getúlio 1882-1930 – Dos anos de formação à conquista do poder,foi mais sensato. Em comentário à Folha de S.Paulo,
o historiador elogiou a narrativa detalhista de Lira Neto e a fartura
de informações do volume e fez a ressalva derradeira: o livro não traz
“nenhuma grande novidade” (Ambivalência de Getúlio atraiu biógrafo,
ilustrada, E4, 17 maio 2012). Portanto, alcandorar-se pelo pioneirismo
do material documental, e deste modo ser propagado pelo jornalismo de
orelha, só é razoável se houver o suporte da prova. Senão, nem o Barão
de Munchausen levará fé.
***
[Álvaro Nunes Larangeira é jornalista, professor da Universidade Tuiuti
do Paraná e organizador, com o historiador Décio Freitas, de Getúlio Vargas – A Serpente e o Dragão: dissertações acadêmicas (Sulina, 2003)
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