quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A subversão das caminhadas e silêncios urbanos


171031-Caminhada


Para antropólogo francês, desligar-se da corrente e refletir podem ser caminhos para a resistência, num mundo de hiperconectividade e produção obrigatórias
David Le Breton, entrevistado por Pablo Bujalance Málaga, com tradução de Sílvio Diogo, no Desenhares
Doutor em Sociologia pela Universidade Paris VII e professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Ciências Humanas Marc Bloch, de Estrasburgo, o antropólogo francês David Le Breton (Le Mans, 1953) encarna como poucos de seus contemporâneos a melhor tradição intelectual de seu país. Na Espanha, publicou com êxito livros como El silencioElogio del caminar e Desaparecer de sí: una tentación contemporánea, com os quais aposta em formas concretas de resistência diante da desumanização do presente. Nesta semana pronunciou uma conferência em La Térmica, o centro de cultura contemporânea da Assembleia Legislativa de Málaga, antes da qual concedeu esta entrevista.
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Permita-me uma pergunta um tanto primária para começar: você defende o silêncio como forma de resistência, mas de onde nasce o ruído?

Boa parte da nossa relação com o ruído procede do desenvolvimento tecnológico, especialmente em seu caráter mais portátil: sempre carregamos sobre nós dispositivos que nos recordam que estamos conectados, que nos avisam quando recebemos uma mensagem, que organizam os nossos horários com base no ruído. Esta circunstância veio incorporar-se às que já haviam tomado forma no século XX como hábitos contrários ao silêncio, especialmente nas grandes cidades, governadas pelo tráfego de veículos e por numerosas variedades de contaminação acústica. Neste contexto, o silêncio implica uma forma de resistência, uma maneira de manter a salvo uma dimensão interior frente às agressões externas. O silêncio permite-nos ser conscientes da conexão que mantemos com esse espaço interior, o silêncio a visibiliza, enquanto o ruído a esconde. Outra maneira de nos conectarmos com o nosso interior é o caminhar, que transcorre no mesmo silêncio. O maior problema, provavelmente, é que a comunicação eliminou os mecanismos próprios da conversação e se tornou altamente utilitarista com base nos dispositivos portáteis. E a pressão psicológica que suportamos para os armazenarmos é enorme.

É mais fácil cultivar e fomentar o silêncio no Oriente, em relação à Europa e aos Estados Unidos, por exemplo?

Sim, na tradição japonesa existe uma noção muito importante de disciplina interior, cristalizada em sistemas de pensamento como a filosofia zen. Digamos que no Oriente há muito caminho percorrido, mas as invasões contra as quais convém opor resistência já são as mesmas.

O que você responderia a quem sustentasse que o silêncio é uma confissão de ignorância?

O silêncio é a expressão mais verdadeira e efetiva das coisas inomináveis. E a tomada de consciência de que há determinadas experiências para as quais a linguagem não serve, ou que a linguagem não alcança, é um traço decisivo do conhecimento. Nesse sentido, tradições como a cristã, em que o silêncio é muito importante, tornam-se reveladoras: a sabedoria dirige-se a compreender o que não se pode dizer, o que transcende a linguagem. Nessa mesma tradição, o silêncio é uma via de aproximação de Deus, o que também se pode interpretar como um conhecimento. Podemos utilizar o silêncio para nos conhecer melhor, para nos distanciar do ruído. E este é um valor a reivindicar no presente.

Sobre o desaparecer de si, penso na psicologia construtivista e em autores como Jean Piaget. Seria possível formular uma psicologia da desconstrução para a personalidade?

Sim, é possível chegar a isso por meio de uma disciplina, de um exercitar-se no silêncio. Como disse antes, no Japão esta disciplina é algo muito comum. Podemos ir abrindo na nossa rotina diária espaços para o silêncio, para meditar, para nos encontrarmos com nós mesmos, e com a disciplina adequada esses espaços serão cada vez maiores. A minha melhor experiência nesse sentido, a definitiva, foi no Caminho de Santiago: quando cheguei enfim a Compostela, compreendi que eu havia me transformado completamente, depois de numerosos dias em marcha e em absoluto silêncio. Foi um renascimento.

Na França, vocês possuem uma grande tradição do caminhar com Balzac e a figura do flâneur.

Sim, o caminhar nas cidades, o vagar sem uma meta concreta. Não apenas Balzac, também Flaubert o defendia. E para os situacionistas, isso se converteu num assunto fundamental. Caminhar é outra forma de tomar consciência de si, de reparar no próprio corpo, na respiração, no silêncio interior. Na Idade Média havia aqueles que se dispunham intensamente a caminhar no deserto. Porém, a prática do caminhar nas cidades encerra conotações relacionadas ao prazer. Trata-se de desfrutar daquilo que você percebe, de se deleitar com os atrativos que a cidade lhe oferece pelos sentidos. É uma atividade hedonista. Jean Baudrillard e os intelectuais de orientação sartriana também o definiram assim, como uma prática contrária ao puritanismo.

É por essa qualidade de resistência que se tacha de louco quem caminha sem rumo?

Sim, é o que acontece. E por isso o caminhar, como o silêncio, é uma forma de resistência política. No momento de sair de casa, de movimentar-se, você de imediato se vê diante da interferência de critérios utilitaristas que evidenciam perfeitamente aonde você deve ir, por qual caminho e por qual meio. Caminhar porque sim, eliminando da prática qualquer tipo de apreciação útil, com uma intenção decidida de contemplação, implica uma resistência contra esse utilitarismo e, ocasionalmente, também contra o racionalismo, que é o seu principal benfeitor. A marcha lhe permite advertir como é bonita a Catedral, como é brincalhão o gato que se esconde por ali, as cores do pôr-do-sol, sem qualquer finalidade, porque toda sua finalidade é esta: a contemplação do mundo. Frente a um utilitarismo que concebe o mundo como um meio para a produção, o caminhante assimila o mundo que as cidades contêm como um fim em si mesmo. E isso, claro, é contrário à lógica imperante. Daí a vinculação com a loucura.

Entretanto, com a sua transformação em centros comerciais, e penso no próprio coração de Málaga, as cidades não se tornaram os piores inimigos dos caminhantes?

Sim, você tem razão. De fato, todas as grandes cidades, seja Paris ou Tóquio, já se transformaram em superfícies comerciais. É muito importante que as cidades encontrem um equilíbrio entre os recursos que garantam a sua prosperidade e a qualidade de vida dos que nelas residem. De outra maneira, as cidades tornam-se entidades desumanizadoras. O fato de caminhar por suas ruas sem nenhum interesse em comprar ou em gastar dinheiro, somente em vagar sem rumo, daqui até ali, porque sim, também é uma forma de deixá-las mais humanas, de rebelar-se contra as ordens que convertem todas e cada uma das interações humanas num processo econômico.

De volta ao silêncio: a indústria cultural não foi um dos principais canais do ruído no último meio século?

Sim, é isso. Estou de acordo. Em meu livro El silencio me ocupava desse assunto. Porque, afinal de contas, a indústria cultural vem a ser uma forma do poder político. Uma atividade cultural teria de estar encaminhada para que cada um se encontrasse consigo mesmo, se reconhecesse em seu interior e iniciasse um diálogo íntimo sem sair de si, valendo-se dos instrumentos que a cultura deveria pôr ao seu alcance. Contudo, em vez disso, temos uma cultura que é cada vez mais de massas e menos de pessoas, na qual é impossível se reconhecer. Também é importante opor resistência às formas invasivas da cultura que permeiam o silêncio

domingo, 29 de outubro de 2017

Ladislau: e os bancos sugam a riqueza do mundo




Em vídeo-palestra, autor de “A Era do Capital Improdutivo” expõe os mecanismos que permitem à oligarquia financeira produzir desigualdade máxima, devastar a natureza e inviabilizar a democracia
Vídeo: Ladislau Dowbor | Texto: Ricardo Machado, no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

 A estranheza do tempo presente é tão grande que vivemos a época em que é o rabo que balança o cachorro. Quer entender como isso funciona em termos sociais e econômicos? O professor Ladislau Dowbor explica: “O sistema financeiro é de mediação, não produz nada. Então as áreas produtivas se tornam o meio para os especuladores ganharem dinheiro. Por isso eu digo, que é o rabo que balança o cachorro”, brinca Dowbor, ao fazer uma alegoria para demonstrar a centralidade do poder financeiro.
O professor Ladislau Dowbor apresentou seu livro A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta (São Paulo: Outras Palavras, Autonomia Literária e Fundação Perseu Abramo, 2017), na noite da quinta-feira (19) na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos –  IHU em Porto Alegre.
A intereferência do sistema financeiro nas relações sociais gera profundos desequilíbrios. “Na questão ambiental, estamos diante de um desastre porque não estamos acostumados a pensar em longo prazo. Nós temos uma tremendo gap entre nossas capacidades técnicas e nossas capacidades de governança”, pondera Dowbor. “No plano social é inadmissível que oito famílias tenham a metade de recursos financeiros do mundo, sendo que nenhuma delas produz nada, são todas donas de negócios intermediários”, complementa.

Crise civilizacional
A crise financeira mundial instaurada a partir de 2008, não é somente no campo da econômico, mas o reflexo de uma crise civilizacional mais ampla. “A desigualdade não é somente um problema ético, é um problema político. E como respondemos a essa questão? Construindo muros? Colocando barcos no mediterrâneo para as pessoas não chegarem à Europa?”, questiona.
“Nosso problema não é falta de recursos. É um problema de governança. O ser humano é insuperável na capacidade de construir computadores, mas ainda temos pobreza e fome. Inclusive os custos indiretos de não resolver a pobreza são muito maiores do que os necessários para combater essas mazelas”, provoca.
Para Dowbor, a questão de recursos financeiros não é um problema frente os desafios atuais, porque há dividendos financeiros, o único ponto é destiná-los para reduzir o impacto ambiental e social. “A partir de 2008 não mudou nada em termos de estrutura, mas começamos a entender algumas coisas. Stiglitz é um dos que têm estudado os efeitos do desajuste financeiro, onde o capital improdutivo rende mais que o produtivo”, exemplifica.
Estamos, segundo o professor, diante de uma nova ordem de influência das corporações na política, em que elas incidem diretamente nos políticos por lobbies peer-to-peer, entre empresários e ocupantes de cargos eletivos. É esse fenômeno que Stiglitz analisa nos EUA, mas que ocorre de maneira similar no Brasil. “O sistema financeiro está comprando universidades pelo mundo todo, sem falar no Brasil. Há revistas acadêmicas compradas com dinheiro desses grupos. Há compra da mídia do modo clássico e as invasões de privacidade no nível das mídias digitais. Hoje em dia, laboratórios vendem informações de pacientes para seguradoras. As transformações nos regimes de poder são absolutamente radicais”, destaca o conferencista.

O fim do capitalismo democrático
Para o professor, o capitalismo tardio não está perto de fim; o que mostra sinais de esgotamento frente o avanço dos processos de financeirização é o capitalismo democrático. “Não é o fim do capitalismo, mas o fim do capitalismo democrático. Antes eles precisavam de milhares de pessoas, hoje a regra mudou e são as próprias corporações quem decidem o que pode e o que não. Isso porque o sistema financeiro é global e o controle dos bancos centrais são nacionais”, frisa.
Ao refletir sobre os quatro motores que colocam em marcha a economia, Dowbor demonstra porque  nossa engrenagem social emperrou. “O primeiro motor é o da exportação, mas é muito instável porque não controlamos os preços e dependemos do mercado externo. O segundo motor, é o consumo das famílias, que com o desemprego e a instabilidade econômica está travado. Quebrando o segundo motor, que são as famílias, o terceiro, o do mercado produtivo, entra em colapso porque não tem consumo e o juro é muito alto. O quarto motor, o investimento estatal, que deveria ser utilizado para o investimento em estruturas, é usado para o pagamento de juros da dívida para bancos”, pontua Dowbor.
Além disso, o professor lembrou que os juros no Brasil são pornográficos, fruto de agiotagem pura. “Há um mecanismo muito simples, mas eficaz, de desvio dos recursos públicos para os bancos. Isso drena a capacidade financeira do estado. O sistema tributário não corrige, agrava o problema. Ainda tem todo o valor que vai para paraísos fiscais. Esses especuladores não só não investem, como deixam o dinheiro parasitar”, critica.
Por fim, para fugir de um binarismo que em nada contribui com o debate, Dowbor descarta qualquer possibilidade de um debate radicalizado e polarizado. “Nós somos muito grandes e complexos para ficarmos num esquemão ideológico estatal ou privado. Precisamos pensar de maneira diversificada”, sugere e finaliza.