Cortes nos programas sociais para cumprir metas do FMI levam Fernando Henrique a enterrar promessas de investimentos feitas na campanha
GUILHERME EVELIN E RACHEL MELLO, na ISTO É, 1999
O Brasil engatou a marcha à ré. Quatro meses depois de conquistada a reeleição, o "Avança Brasil", programa de governo apresentado na campanha eleitoral pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, ameaça virar obra de ficção. Este ano, o País deve conhecer um recuo histórico, com queda do Produto Interno Bruto (PIB) de 3,5%, diminuição da renda per capita para os níveis de 1980 e índices de inflação e desemprego na casa dos dois dígitos, o que inviabiliza as promessas feitas pelo candidato FHC de manter a estabilidade do real e ainda tocar projetos capazes de gerar 7,8 milhões de novos postos de trabalho. Segundo o professor Márcio Pochmann, especialista em economia do trabalho da Universidade de Campinas, a renda per capita no Brasil deve cair 4,8% em 1999, representando a volta ao mesmo patamar de 1980. Com a decisão de dobrar a aposta na política de arrocho ditada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), outro passo atrás vai ser dado nos próximos dias. Até a quarta-feira 24, o presidente deverá tomar uma decisão sobre novos cortes no Orçamento e nos investimentos das empresas estatais. A tesourada de até R$ 4 bilhões vai atingir em cheio os programas do Brasil em Ação, um conjunto de obras consideradas prioritárias e apresentadas na campanha como o carro-chefe da retomada do desenvolvimento. Elas serão interrompidas ou adiadas. Pior: programas nas áreas sociais não serão poupados dos cortes. O candidato que pediu votos com o bordão de que o Brasil tem rumo iniciou, assim, o segundo mandato no Palácio do Planalto na trilha oposta da redução das desigualdades. "O presidente mudou de rumo. O eleitor percebeu isso e sua popularidade caiu como nunca. Junto à população, FHC ficou com a imagem potencial de mentiroso", analisa Fátima Jordão, especialista em opinião pública.
Trabalho infantil A primeira vítima desses descaminhos pode ser a pequena rede de proteção social no País, que funcionava de forma precária mesmo nos tempos de moeda estável. A luta pela erradicação do trabalho infantil é um bom exemplo. Segundo o IBGE, cerca de 3,8 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalham hoje no Brasil. Uma das vitrines do primeiro mandato de Fernando Henrique, o programa atendeu somente 74 mil crianças trabalhadoras no ano passado. Em agosto, o governo prometeu investir R$ 60 milhões para ampliá-lo. No Orçamento, metade da verba foi cortada. Na última semana, o Planalto voltou atrás, depois de protestos de entidades nacionais e internacionais de defesa dos direitos das crianças, e se comprometeu a colocar mais R$ 52 milhões no projeto. Mas não disse de onde viria o dinheiro. "Em quatro anos, erradicaremos o trabalho infantil. Se não houver recursos, vamos recorrer ao apoio de um mutirão de voluntários ", sonha a secretária de Assistência Social, Wanda Engel. A promessa não encontra respaldo nos números. Especialistas calculam que o País teria que gastar R$ 1 bilhão por ano para erradicar o câncer da mão-de-obra infantil.
Na Educação, outros projetos que enchiam os olhos do presidente Fernando Henrique já sofreram duros golpes orçamentários no final do ano passado. O Programa de Informática, que deveria equipar com mais de 100 mil computadores escolas públicas de todo o País até o ano 2000, perdeu 90% de seus recursos. Em 1998, o Ministério da Educação investiu R$ 170 milhões no programa e comprou apenas 35 mil computadores. Neste ano, estão disponíveis somente R$ 12 milhões. "Mal dá para financiar os gastos fixos do programa", reconhece o secretário-executivo do MEC, Luciano Patrício. As metas do projeto de Gestão Eficiente, que deveria melhorar as escolas públicas com compra de equipamentos e material, também ficam adiadas. O corte para este ano é de 67%. Na Saúde, ainda é difícil calcular as perdas porque o orçamento foi feito com a inclusão da CPMF ao longo de todo o ano. Como a contribuição só começa a ser recolhida em junho, projetos que vêm perdendo dinheiro nos últimos anos devem ser prejudicados. Entre eles, o de combate ao mosquito da dengue e o de infra-estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).
Antes mesmo de os novos cortes ajudarem a alimentar a fogueira social, o governo já está sob fogo cruzado. Na última quarta-feira, ao iniciar a Campanha da Fraternidade de 1999, que tem o desemprego como tema, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou uma cartilha recheada de críticas à política econômica. "Existem outras formas de fazer equilíbrio fiscal. O pagamento dos serviços da dívida priva o País dos recursos que deveriam ser destinados à educação e à saúde", atacou o secretário-geral da CNBB, dom Raymundo Damasceno. O quadro das contas públicas dá razão à Igreja. A redução dos gastos está sendo feita para compensar a elevação de despesas com a amortização da dívida pública. Com a política de juros altos, somente entre 1994 e 1998, essa dívida cresceu 424%, passando de R$ 61,7 bilhões para R$ 323,8 bilhões.
Além da cúpula da Igreja Católica, o governo está sob pressão também do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O BID condiciona a liberação de US$ 4,5 bilhões, parte do socorro externo de US$ 41 bilhões coordenado pelo FMI, à garantia de que 21 programas sociais – seguro-desemprego, merenda escolar e agentes comunitários de saúde, entre outros – serão poupados do arrocho. "Nossa experiência em outros países da América Latina mostra que a população mais pobre é sempre a mais atingida nos choques econômicos. Por isso, queremos assegurar que esses projetos vão ser preservados", diz Ricardo Santiago, gerente operacional do BID para os países do Cone Sul.
120 anos Ainda que programas sociais venham a ser incluídos nesse cordão de proteção exigido pelo BID, é certo que o Brasil está perdendo, no mínimo, tempo. Estudos do próprio Banco Interamericano mostram que o País levaria 120 anos para eliminar a miséria se sua economia crescesse 2% ao ano. "O quadro social é grave. E a tendência é piorar porque não se tomam providências", diz o sociólogo Carlos Estevam Martins, professor da Universidade de São Paulo e co-autor do livro Política e sociedade em parceira com Fernando Henrique Cardoso. "Ainda é cedo para dizer que as metas do Avança Brasil são inviáveis. Trabalhamos com um horizonte de quatro anos. A partir do ano 2000, vamos modernizar o gerenciamento dos recursos, trabalhar com mais parcerias e aprender a fazer mais com menos dinheiro", rebate José Silveira, secretário de Planejamento e Avaliação do Ministério de Orçamento e Gestão. O problema é que o médio prazo pode ser um tempo longo demais. A história recente do Brasil mostra que vendavais econômicos geram movimentos sociais e instabilidade política.
"Quem acabou com a inflação vai acabar com o desemprego"
Fernando Henrique prometeu criar 7,8 milhões de empregos. A inflação está de volta. O desemprego este ano deve bater o recorde histórico.
A intenção do governo FHC era capacitar 17 milhões de trabalhadores até 2002. Em agosto anunciou para 1999 gastos de R$ 662 milhões no Plano de Qualificação Profissional (Planfor). Com a crise, o orçamento do plano foi reduzido em 50%. A meta de treinar 12 milhões de trabalhadores até o ano 2000 foi adiada por pelo menos dois anos.
"Avança Brasil"
O candidato FHC se comprometeu a aumentar o número de bolsas-escola e acabar o trabalho infantil, que hoje emprega 3,8 milhões de crianças de cinco a 14 anos. No atual ritmo, a meta é inviável.
O governo Fernando Henrique atendeu no ano passado 74 mil crianças trabalhadoras. Prometeu elevar os gastos do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) de R$ 28 milhões para R$ 60 milhões. Mas o orçamento do PETI ficou em R$ 30 milhões. O governo comprometeu-se, na semana passada, a garantir mais R$ 52 milhões, sem dizer de onde viriam os recursos. Mesmo com o suplemento, as verbas são suficientes apenas para atender 117 mil crianças.
O Programa de Garantia de Renda Mínima para crianças seria implementado este ano. A meta inicial era investir R$ 320 milhões para pagamento de bolsas-escola em cerca de 300 municípios. O corte foi de 83%. O PGRM foi transformado em programa-piloto e deve atender menos de 30 municípios.
"O Brasil tem rumo"
Menina dos olhos do candidato FHC, o programa Toda Criança na Escola pretende colocar 98% das crianças na escola até 2002. A meta ficou mais distante depois que dois projetos de apoio do programa sofreram cortes drásticos.
O projeto de transporte escolar perdeu 83% de suas verbas. Em 1998, foram gastos R$ 74 milhões para compra de ônibus para transporte de estudantes. Para este ano, apenas R$ 13 milhões estão disponíveis. Na zona rural, a falta de transporte mantém as crianças afastadas da escola.
Para manter as crianças na escola, o projeto de Assistência Integral à Criança e ao Adolescente financia atividades de esporte e reforço escolar como complemento aos estudos. Em 1998, o projeto atendeu 430 mil crianças com gastos de R$ 85 milhões. Para 1999, só estão disponíveis R$ 30 milhões.
"Marcha à ré, não"
FHC prometeu mobilizar R$ 55 bilhões em investimentos para melhorar a infra-estrutura e acabar com os gargalos que atrapalham o crescimento do País. Este ano, o PIB pode cair até 3,5%. Obras prioritárias estão sendo interrompidas e adiadas.
A duplicação da rodovia Fernão Dias, que liga São Paulo a Minas Gerais, deveria ficar pronta em 1999. Com os cortes no orçamento, a obra ficará para depois do ano 2000.
Planejado para aliviar o tráfego na região metropolitana de São Paulo, o Rodoanel teria o seu primeiro trecho de 32 quilômetros finalizado no ano 2000. Para 1999, a obra sofreu um corte de 53%. O término da obra inteira ficou para além de 2004.
A rodovia BR-230, que liga a região Norte ao Centro do País, começaria a ser pavimentada em 1999 no trecho entre as cidades de Altamira e Marabá (PA). Os R$ 40 milhões, porém, foram totalmente cortados. A obra não será sequer iniciada neste ano.
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