Nos últimos anos, prostituição foi equiparada a tráfico humano e
ofício indesejável. Este erro brutal atinge, infelizmente, as feministas
ortodoxas
Por Marília Moschkovich | Imagem: Pan Yuliang
I. Porto Alegre, janeiro de 2002
Fórum Social Mundial. Eu devia ter uns quinze anos. Na vasta
programação, uma oficina me chamou a atenção: um debate organizado pela
“Liga Brasileira de Prostitutas” (se não me falha a memória, o nome era
esse na época). Era novidade pra mim que as prostitutas se organizassem –
eu que, menina de classe média, jamais havia conhecido prostituta
alguma, claro. Quem seriam aqueles seres praticamente de outro mundo?
Achando inconcebível a ideia de alguém se prostituir por escolha,
resolvi ir à atividade para conhecer “de perto” as mazelas das pobres,
coitadas e exploradas mulheres que eu escutava que eram tão oprimidas.
Foi um tapa na cara.
Escutando o que as debatedoras tinham a dizer, ficou claro para
mim que o estereótipo que eu tinha dessas mulheres era uma grande
bobagem, e uma bobagem extremamente estigmatizante. Em primeiro lugar,
porque ele não dava conta da diversidade de contextos e situações
vividos por elas. Quer dizer, ali na minha frente, microfone em punho,
havia três debatedoras. A primeira era uma travesti, formada em Direito,
advogada, com os documentos regularizados, mas que não conseguia
trabalho na área. Por isso, mantinha a prostituição como principal fonte
de renda. A segunda era uma mulher cisgênera, que havia trabalhado como
empregada doméstica, preferindo mais tarde a prostituição. A terceira
era também travesti, que desde sempre havia escolhido a prostituição
como trabalho.
Estavam presentes ali características diversas que desconstruíam o
mito perverso que confunde prostituição com tráfico de pessoas. Nenhuma
delas havia sido traficada, e nenhuma delas tinha a prostituição como
única escolha profissional. Ao longo da discussão, contaram suas
histórias, mostrando que, em dado momento na vida, definiram que o ritmo
de trabalho e a renda obtidas com a prostituição eram melhores do que
dezenas de outras possibilidades – atendente de loja, caixa de
supermercado, diarista, doméstica mensalista, garçonete e atendente de
telemarketing eram algumas das profissões que contavam ter descartado.
Foi ali que me caiu a ficha: desconsiderando que o trabalho das
prostitutas é um serviço quase sempre (mas nem sempre) sexual, o que o
diferenciava então de subempregos bem aceitos socialmente?
Corta. (e guardem a pergunta)
II. Paris, janeiro de 2010
O mandato do conservador Nicolas Sarkozy chegava a sua metade. Dentre
as medidas retrógradas adotadas, o movimento feminista francês (em
parte) esbravejava quando desembarquei no aeroporto Charles de Gaulle em
férias, preparando-me para ingressar no mestrado. Havia poucos dias ou
semanas as prostitutas haviam sido proibidas de trabalhar em público,
procurando clientes nas ruas. A medida fez com que muitas trabalhadoras
autônomas passassem a se submeter a regras de outrem (proprietários de
casas, donos de apartamentos e motéis/hotéis, etc), tampouco
regulamentadas no país.
Naquele mês, uma de minhas atividades favoritas era ir ao cinema.
Passei em frente a uma portinha na boca da praça Saint Michel, e um
cartaz anunciava em letras enormes o documentário “Travailleuses du sexe
et fières de l’être” (algo como “Trabalhadoras do sexo, com orgulho”).
Haveria um debate, após a exibição do documentário, com o documentarista
e uma antropóloga. “Cadê as putas?”, pensei logo, “Elas não têm nada a
dizer no debate?” – mas supus que estariam bem representadas no filme.
O filme… Ah, o filme.
Tentei encontrá-lo com legendas e não consegui. Para quem quiser
arriscar o francês, fazer legendagem ou tentar legendas automáticas no
youtube, o documentário completo pode ser acessado aqui.
O filme faz um panorama da situação dos direitos trabalhistas de
prostitutas e outras trabalhadoras e trabalhadores do sexo (alô, minha
gente, o mercado do sexo é bem amplo, viu?) em diferentes países da
Europa. Por meio das entrevistas, mostra o quanto a garantia de direitos
básicos afeta a vida dessas mulheres. No debate em seguida, lá estavam
elas, como eu, na plateia: desafiando o documentarista e a antropóloga
que defendiam (!) a lei assinada por Sarkozy. Com feministas de
diferentes grupos, deixavam claro que queriam que essa fosse uma escolha
profissional como outra qualquer.
Algum tempo mais tarde assisti também o incrível 69 – Praça da Luz (veja aqui),
documentário de Carolina Markowicz e Joana Galvão, sobre a vida de
prostitutas que trabalham no centro de São Paulo. Quem assistir por
último é a mulher do padre!
Corta de novo.
III. Quase-janeiro de 2014
O debate volta à tona. O PL 4211/2012 (clique para ler na íntegra),
chamado de Lei Gabriela Leite, é defendido pelo deputado federal Jean
Willys, por alguns grupos feministas e por prostitutas politicamente
organizadas no Brasil. Ao mesmo tempo, é atacado por ativistas
feministas mais ortodoxas e suas organizações (como a Marcha Mundial das
Mulheres, ou a organização de mulheres da CUT). Embora esteja na crista
da onda, o debate sobre essa lei específica começou tão logo ela
surgiu. Em pouco mais de um ano já vimos militantes feministas atacando a
proposta, outras divergindo da posição oficial do grupo ao qual pertenciam e defendendo o projeto, e eu dei meu pitaco aqui.
Para animar o debate corrente (que se acirra com a proximidade da
Copa do Mundo, evento que além de movimentar bilhões no mercado do
esporte também aquece o mercado do sexo), na semana passada o governo
francês aprovou uma lei criminalizando os clientes de prostitutas. O
presidente já não é Nicolas Sarkozy, ultra-conservador, mas um
representante do Partido Socialista! A medida, porém, bem poderia ter
sido assinada por Sarkô, dado o teor da proposta. Em vez de
criminalizar a prostituição, o Estado criminaliza sua clientela,
tornando a prostituição oficialmente parte de um “mercado negro”. A
divisão em terras francesas está parecida com a nossa: de um lado
setores ortodoxos da esquerda e do movimento feminista ignorando os
movimentos organizados dessa parte da classe trabalhadora, e de outro as
trabalhadoras do sexo organizadas politicamente e setores menos
ortodoxos do feminismo e da esquerda.
Mas afinal de contas, como lidar com a questão da prostituição dentro do feminismo?
IV. Três questões fundamentais
Para começar esse debate – que já mencionei
e retomarei aqui em breve – é preciso atenção a três pontos
fundamentalíssimos. Não são os únicos três pontos importantes da
discussão, e prometo abordar outros mais adiante (inclusive alguns
ligados mais diretamente aos argumentos das feministas radicais e
ortodoxas sobre o assunto, que estão sendo propositalmente deixados de
lado aqui, por merecerem uma análise mais fina).
1. É preciso distinguir: prostituição não é tráfico de pessoas.
Parece uma coisa boba, mas não é. A prostituição é uma das atividades
econômicas associadas ao tráfico de pessoas, em especial de mulheres,
nos dias de hoje. No entanto, é preciso compreender que, sendo muito
mais antiga do que o tráfico de pessoas, não é a prostituição que o
causa. É o capitalismo. O capitalismo causa trabalho análogo ao escravo e
tráfico de pessoas em dezenas de indústrias e mercados (o que dizer
daquela sua roupinha linda comprada na Marisa ou na Zara?), e não apenas
no mercado do sexo. Fazer uma associação direta e necessária entre
prostituição e tráfico de pessoas é uma ilusão – ilusão essa que,
inclusive, apaga a realidade do tráfico de pessoas em diversas outras
atividades social e moralmente “mais aceitas”.
Durante o século XX, foi criado o mito do “tráfico de
mulheres”. ”Mito”, aqui, não quer dizer que ele não exista — mas que os
fatos são costumeiramente distorcidos, para reforçar a ideia de que as
mulheres, se não fossem forçadas, jamais aceitariam ser prostitutas.
Para quem duvida ou quer se informar melhor, dois bons artigos sobre
isso estão aqui e aqui. Pra quem tiver tempo, recomendo ainda o ensaio de Emma Goldman sobre o assunto , assim como sua apresentação escrita pela Profª Margareth Rago , e o ensaio-comentário da antropóloga Gayle Rubin (“The trouble with trafficking”) [livro completo, em inglês] .
2. Todo cuidado é pouco com a arrogância militante e atitudes “colonizadoras”
Uma das atitudes mais estratégicas dos grupos conservadores que
associam prostituição a tráfico de pessoas é, precisamente, não escutar a
classe oprimida em questão. Quer dizer: quem sabe o que é melhor para
as trabalhadoras do sexo? Elas mesmas, ou as militantes, padres e
pastores iluminados moral e politicamente? Falei uma vez sobre “síndrome da militância arrogante“,
que é mais ou menos isso. Consideramos as ideologias como verdades
absolutas e nos esquecemos de ouvir quem importa. Afinal de contas, será
que acharíamos aceitável que apenas homens definissem a legislação
sobre o corpo das mulheres (como o aborto)? Acharíamos aceitável que
apenas brancos discutissem e fechassem leis sobre cotas raciais,
ignorando a existência do movimento negro? Então por que parece
tranquilo, para tanta gente, que não-prostitutas definam os direitos
trabalhistas das prostitutas, ignorando completamente seu movimento
politicamente organizado e suas reivindicações?
No feminismo intersecional, chamamos essas atitudes de
“colonizatórias” ou “colonizadoras”. Quer dizer: pessoas em situação de
privilégio utilizam esse privilégio para destituírem o “outro”,
desprivilegiado de agência. Agência é a capacidade – o poder – de agir,
tomar decisões por si próprio, considerar os fatores e consequências
envolvidos em seus próprios atos.
3. Em nossa sociedade, todo moralismo é machista.
Se considerarmos que a prostituição e o tráfico de pessoas são duas
coisas distintas, fica realmente difícil entender por que a prostituição
deveria ser proibida e fabricar e usar roupas, não (já que na realidade
há associação entre tráfico de pessoas – especialmente mulheres – e
confecções, em grandes cidades brasileiras). Eliane Brum escreveu
lindamente sobre isso aqui e eu reforço a mesma posição: por que achamos que uma mulher adulta, consciente, dotada de agência,
não pode escolher viver prestando serviços sexuais? Não vou nem entrar
no mérito de questionar a prostituição como serviço exclusivamente
sexual. Deixo isso para outra hora.
Há três grandes diferenças entre prostituição e confecção de roupas,
agricultura e outras profissões também permeadas pelo tráfico de
pessoas. A profissão não é regulamentada (o que torna suas trabalhadoras
ainda mais vulneráveis, pois não possuem nenhuma ferramenta de proteção
legal como outras categorias). O serviço está ligado, pelo menos em
grande parte das vezes, à prática sexual. Disso decorre que, ao tratar o
sexo como serviço pelo qual se pode pagar, a prostituição desafia uma
crença moral muito forte — a de que sexo deve sempre ser feito por amor,
afeto e tesão “espontâneos”.
Questões morais legítimas convertem-se em moralismo quando tenta-se
utilizá-las como régua única, generalizadora e brutal sobre todas as
realidades de todas as pessoas. É o que acontece quando uma militante
feminista diz que a prostituição é necessariamente um mal, e que nenhuma
mulher faria isso se não fosse forçada por condições econômicas ou pelo
“patriarcado”. Na régua de valores dessas militantes o sexo não pode
ser vendido (isso quando não trocam alhos com bugalhos e dizem que o que
está sendo vendido é o corpo — uma grande mentira combatida pelos
movimentos de trabalhadoras do sexo do mundo todo).
Somem a tudo isso a tal síndrome da militância arrogante – o assalto à
agência dessas mulheres todas que trabalham no mercado do sexo – e, voilà,
o estrago está feito. Temos então feministas que, em vez de defenderem a
liberdade de as mulheres fazerem o que quiserem com os próprios corpos,
defendem pautas que as proíbem de escolherem por si mesmas. Roubam-nas
de sua agência. Fingem que não escutam. Invisibilizam. Ora, o raciocínio
é o mesmo em relação ao aborto, minhas amigas: quem o pratica deve
sofrer violências e ser abandonada pelo Estado, pelo simples fato de
você estar decidida a não abortar?
Em 17 de dezembro, celebra-se o dia internacional de luta pelo fim da
violência contra as trabalhadoras do sexo. Até lá, espero sinceramente
que a discussão se aprofunde. Vamos trocar os discursos prontos pela
informação, reflexão e debate. Acima de tudo, como sempre, meu melhor
conselho para as que estamos do lado privilegiado da história (no caso,
quem não trabalha no mercado do sexo) é: ouçamos.
PS.: o debate feminista sobre práticas sexuais (prostituição,
BDSM, pornografia, etc) vai muito, muito longe e é delicioso; prometo
voltar a ele em breve!
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