Em: Global Voices
O morador de rua e catador Rafael Braga Vieira, do Rio de Janeiro, foi condenado a 5 anos de prisão por carregar um frasco de desinfetante Pinho Sol e outro de água sanitária enquanto decorria uma manifestação no dia 20 de junho.
A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi baseada no estatuto do desarmamento que proíbe carregar ou usar “artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (no inciso III do artigo 16 do referido estatuto, lei federal em vigor desde 2003).
Em junho deste ano o Brasil foi sacudido por uma onda de protestos que ficou conhecida como Revolta do Vinagre, em menção ao líquido amplamente usado por jornalistas e manifestantes na contenção dos efeitos do gás lacrimogênio, usado em abundância pela polícia. Em meio a centenas de prisões arbitrárias tanto em junho quanto nos meses posteriores, Rafael foi o primeiro a ser definitivamente condenado por um tribunal e forçado a cumprir pena.
Dois dias depois da condenação, no dia 5 de dezembro a premiada jornalista Ana Aranha escreveu no blog 3 por 4:
[Rafael] foi preso quando saia da loja abandonada [em junho] onde morava há um mês e onde pegara os dois frascos de limpeza. No laudo do esquadrão antibomba, a Polícia Civil apontou que os produtos tinham “ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”. Quando o caso chegou ao Ministério Público, as garrafas foram descritas pelo promotor responsável pela acusação como “material incendiário”. Até que o juiz Guilherem Schilling Pollo Duarte determinou que “uma das garrafas tinha mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov” e condenou Rafael a quase seis anos de prisão.
Ana comenta ainda do absurdo da situação de Rafael, de quem somente se sabe através de “fragmentos de registros oficiais”, não esquecendo que “abusos e ilegalidades cometidos pela Polícia Militar durante os protestos foram repetidamente flagrados, registrados e publicados”:
A repressão violenta a manifestações deveria ser, em si, algo inaceitável em um país democrático, mas o caso de Rafael tem um elemento ainda mais surreal: nós sequer sabemos se ele fazia parte do protesto.
Esta mesma polícia violenta, flagrada em truculência durante a manifestação no próprio dia em que Rafael foi preso,
não teve seu testemunho questionado pelo juiz que condenou Rafael, como denuncia o coletivo social Rio na Rua:
O juiz argumentou que “as testemunhas são pessoas idôneas, isentas e não têm qualquer interesse pessoal em incriminar o réu”, contrastando com a defesa de Rafael, que, segundo Duarte, “declarou uma versão pueril e inverosímil, no sentido de que teria encontrado as duas garrafas lacradas, ambas em uma loja abandonada, e resolveu tirá-las dali”.
Marcos Romão escreveu no blog Mamapress sobre a acusação que pairava sobre Rafael já no início de novembro:
O MP afirma que o preso “se prevaleceu de um momento de comoção nacional, de protestos legítimos da sociedade brasileira no exercício de sua cidadania, para de forma covarde espalhar o terror na cidade, visando incendiar prédios comerciais, cenas estas que presenciamos de forma exaustiva nos noticiários”
O jornalista Piero Locatelli, também ele preso em 13 de junho pouco antes de uma manifestação em São Paulo acusado de “portar vinagre”, foi o primeiro a denunciar a condenação de Rafael que veio a acontecer no dia 3 de dezembro em artigo para a Carta Capital.
Neste mesmo artigo, Locatelli aponta contradições no laudo como o fato de “não [haver] panos na boca das garrafas” e de os recipientes de plástico não poderem servir de bombas incendiárias, “já que não se estilhaçam ao quebrar no chão”:
Negro, morador de rua e catador de latinhas, Vieira é o primeiro condenado dos protestos de junho no Estado. Com 26 anos de idade, Vieira já havia sido preso duas vezes por roubo, em 2006 e 2008, e cumpriu as penas completas. Ainda cabem recursos a instâncias superiores, e a defesa não se pronunciou sobre o caso. O morador de rua deverá continuar preso no complexo presidiário de Japeri, município na região metropolitana do Rio, devido ao pedido de prisão cautelar feito pelo mesmo juiz.
Também o Anonymous Rio, que já desde o dia primeiro de novembro vinha a exigir a soltura de Rafael, preso sem julgamento desde junho, reagiu à condenaçãoapontando para a desigualdade social no Brasil, país com a quarta maior população carcerária do mundo:
Essa é a cara da desigualdade social e da (in)justiça brasileira. É essa a cara do sistema carcerário brasileiro, a cara da intensificação da desigualdade social, da falta de critério. [...]A população carcerária no Brasil é formada basicamente por jovens, pobres, negros, homens e com baixo nível de escolaridade. Os dados estatísticas de 2008 do Departamento penitenciário nacional indicam que mais da metade dos presos tem menos de trinta anos; 95% são pobres, 93,88% são do sexo masculino, dois terços não completaram o ensino fundamental e também dois terços são negros.
O Coletivo Ocupa Câmara Rio, no Facebook, repudiou a condenação:
Rafael não representa ameaça a segurança pública, como quiseram supor. Ele é, junto com tantos outros seres precarizados e excluídos, a imagem de um sistema que não dá certo, que faz com que pessoas vivam nas ruas, nômades marginalizados do submundo, do sub-urbano, do sub-humano. Rafael buscava sua dignidade catando latinhas e procurando um local limpo e seguro para passar as noites.
O coletivo Das Lutas recordou em post anterior à condenação de Rafael, que ele não era o único preso (ou preso político, como muitos o consideram), e que outros como “Baiano”, ou Jair Seixas Rodrigues, membro da Frente Internacionalista dos Sem Teto (FIST), também tiveram sua liberdade arbitrariamente suprimida durante as manifestações. Baiano ainda aguarda julgamento e pode seguir o mesmo destino de Rafael, o regime fechado.
[Baiano] foi preso no dia 15 de outubro (…) enquanto estava acompanhando a manifestação ao lado de advogados do DDH. Chamaram Jair pelo nome e lhe deram voz de prisão, sem flagrantes, sem motivos. Foi acusado de associação criminosa armada, sem que nada houvesse para configurar a acusação.
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