"Já ouvi um
cético falar de modo superior e desdenhoso?
Certamente. Às vezes
até escutei, para minha posterior consternação, esse tom desagradável na minha
própria voz. Há imperfeições humanas em ambos os lados dessa questão. Mesmo
quando é aplicado com sensibilidade, o ceticismo científico pode parecer arrogante,
dogmático, cruel, e sem consideração para com os sentimentos e as crenças
profundamente arraigadas dos outros. E deve-se dizer que alguns cientistas e
céticos diligentes aplicam essa ferramenta como se fosse um instrumento
grosseiro, com pouca finura. Às vezes é como se a conclusão cética viesse em
primeiro lugar, como se as afirmações fossem rejeitadas antes do exame da
evidência, e não depois. Todos nós acalentamos as nossas crenças. Em certo
grau, elas definem o nosso eu. Quando aparece alguém que desafia o nosso
sistema de crenças, declarando que sua base não é suficientemente boa - ou que,
como Sócrates, faz perguntas embaraçosas em que não tínhamos pensado, ou
demonstra que varremos para baixo do tapete pressupostos subjacentes de
importância capital -, tal fato se torna muito mais do que uma busca do
conhecimento. Nós o sentimos como um ataque pessoal.
O cientista que pela primeira vez propôs consagrar
a dúvida como uma virtude fundamental da inteligência indagadora deixou claro
que ela não era um fim em si mesmo, mas uma ferramenta. René Descarte escreveu:
"Não imitei os céticos que duvidam apenas por duvidar, e fingem estar
sempre indecisos; ao contrário, toda a minha intenção foi chegar a uma certeza,
afastar os sedimentos e a areia para chegar à pedra ou ao barro que está
embaixo."
Pela forma como o ceticismo é às vezes aplicado a
questões de interesse público, há uma tendência para apequenar os opositores,
tratá-los com ar de superioridade, ignorar o fato de que, iludidos ou não, os
adeptos da superstição e da pseudociência são seres humanos com sentimentos
reais que, como os céticos, tentam compreender como o mundo funciona e qual
poderia ser o nosso papel nele. Em muitos casos, seus motivos se harmonizam com
a ciência. Se a cultura não lhes deu toda as ferramentas necessárias para levar
adiante essa grande busca, vamos moderar as nossas críticas com bondade. Nenhum
de nós nasce plenamente equipado.
Há certamente limites para os usos do ceticismo.
Deve-se aplicar uma análise de custo/benefício, e se o alívio, o consolo e a
esperança fornecidos pelo misticismo e pela superstição são elevados, e os
perigos da crença relativamente baixos, por que não deveríamos guardar as
dúvidas para nós mesmos? Mas a questão é delicada. Imagine que você entra num
táxi numa grande cidade e, assim que se acomoda no carro, o motorista começa a
discursar sobre as supostas iniquidades e inferioridade de outro grupo étnico.
O melhor a fazer é ficar calado, tendo em mente que quem cala consente? Ou a
sua responsabilidade moral é discutir com o motorista, expressar sua
indignação, até mesmo sair do táxi - porque você sabe que cada consentimento
silencioso será um estímulo para os o próximo discurso, e que cada discordância
vigorosa o levará a pensar duas vezes na próxima vez? Da mesma forma, se
calamos demais sobre o misticismo e a superstição - mesmo quando parecem estar
fazendo algum bem -, favorecemos um clima geral em que o ceticismo passa a ser
considerado descortês, a ciência cansativa e o pensamento rigoroso algo
insípido e inapropriado. Encontrar um equilíbrio prudente exige
sabedoria."
Trecho de "O mundo assombrado pelos
demônios", de Carl Sagan
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