Ao todo, 111 migrantes nordestinos
foram escravizados. Contratados para trabalhar na ampliação do aeroporto
mais movimentado da América Latina, eles passavam fome
Por Stefano Wrobleski Repórter Brasil
Quando o Aeroporto Internacional de
Guarulhos, na Grande São Paulo, começou a ser construído em 1980, a
população do distrito de Cumbica, onde ele fica, cresceu
vertiginosamente. Os novos habitantes, em sua maioria do Nordeste do
Brasil, ali se estabeleceram para trabalhar pelos cinco anos seguintes
nas obras do aeroporto. Mais de trinta anos depois, os bairros do
distrito agora abrigam grande parte dos 4,5 mil funcionários da OAS, uma
das maiores construtoras do país e a responsável pelas obras de
ampliação do aeroporto mais movimentado da América Latina. Segundo
fiscalização conduzida por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), são empregados dela também 111 homens resgatados de
condições análogas às de escravos. Para garantir o pagamento de verbas
rescisórias e indenizações, o MPT acionou a Justiça Trabalhista, que
determinou o bloqueio imediato de R$ 15 milhões da empresa*.
Aliciadas em quatro Estados do Nordeste – Maranhão, Sergipe, Bahia e
Pernambuco –, as vítimas aguardavam ser chamadas para trabalhar alojadas
em onze casas de Cumbica que estavam em condições degradantes. Além do
aliciamento e da situação das moradias, também pesou para a
caracterização de trabalho escravo o tráfico de pessoas e a servidão por
dívida.
Ficha de encaminhamento recebida pelas vítimas para contratação na OAS (Foto: Stefano Wrobleski) |
A primeira denúncia foi feita pelo Sindicato dos Trabalhadores na
Construção Civil em Guarulhos ao MTE, que resgatou os primeiros
trabalhadores no último dia 6 de setembro. Na ocasião, a fiscalização
visitou três casas com um total de 77 pessoas que chegaram de
Petrolândia, interior de Pernambuco, nos dias 13 de agosto e 1º de
setembro. Cada uma havia pago entre R$ 300 e R$ 400 ao aliciador
(“gato”) pela viagem e aluguel da casa, além de uma “taxa” de R$ 100 que
seria destinada a um funcionário da OAS para “agilizar” a contratação.
Eles iriam trabalhar como carpinteiros, pedreiros e armadores nas obras
de ampliação do aeroporto de Guarulhos, que prometem aumentar sua
capacidade de 32 para 44 milhões de passageiros por ano até a Copa do
Mundo de 2014.
Em um dos três alojamentos fiscalizados, 38 homens se espremiam na
casa de dois andares com quatro quartos e dois banheiros. Devido à falta
de espaço para todos, muitos dormiam na cozinha e até debaixo da
escada. Quando o segundo grupo chegou, em 1º de setembro, alguns tiveram
de passar duas noites em redes do lado de fora, na varanda, por falta
de espaço no interior. Só então outra casa foi providenciada, mas em
condições também degradantes. Os trabalhadores não tinham nenhum móvel à
disposição e já haviam sido orientados a trazer seus colchões. Quem não
trazia tinha de comprar um, dividir o espaço dos colchões dos demais ou
dormir no chão enrolado em lençóis. Já a cozinha não tinha fogão ou
geladeira e a comida era paga por eles mesmos com o pouco que haviam
trazido de Petrolândia. A água faltava quase todo dia.
Os empregados haviam recebido a promessa de bons salários, registro
em carteira e vales-refeição e transporte. Além disso, todos já tinham
feito o exame médico exigido pela empresa e haviam apresentado os
documentos necessários para contratação. Eles, no entanto, também
tiveram de trazer as ferramentas necessárias para trabalhar. Além disso,
ao chegar na empresa, ficaram sabendo que não poderiam apresentar os
comprovantes de residência das suas cidades de origem porque esses
deveriam ser de Guarulhos. Os migrantes, então, entregaram cópias de
comprovantes das casas alugadas pelo “gato”, o que garantiria à OAS o
não pagamento dos valores referentes ao alojamento, como o aluguel.
Banheiro improvisado de uma das casas, com divisória de lençol (Foto: SRTE-SP) |
A contratação de moradores do mesmo município é uma das exigências do “Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Indústria da Construção”,
do qual a OAS é signatária. Ele pode ser firmado voluntariamente pelas
construtoras com o Governo Federal e se refere a obras específicas,
escolhidas pelas empresas. Em caso de descumprimento, a única previsão
que existe é a expulsão da empresa do rol de signatários do compromisso.
José Lopez Feijóo, um dos principais articuladores do compromisso, disse à Repórter Brasil em 2012
acreditar que, com o acordo, “serão cumpridos direitos constitucionais
que hoje praticamente ninguém exerce”. Uma das regras é que os
empregadores devem “contratar, preferencialmente, trabalhadores oriundos
do local de execução dos serviços ou do seu entorno”. Quando isso não é
possível, a construtora deve informar ao Sistema Nacional de Emprego (Sine)
detalhes sobre a obra e as vagas disponíveis para que o órgão federal
supervisione a contratação. De acordo com um funcionário administrativo
das obras da OAS no aeroporto de Guarulhos, o compromisso lá está “em
fase de implantação”. No entanto, os trabalhadores declararam aos
auditores do MTE não terem sido orientados pela empresa a buscar o Sine.
Fogareiro improvisado na varanda de uma das casas para preparo das refeições (Foto: Stefano Wrobleski) |
Grande parte das vítimas ouvidas pela reportagem já havia feito
diversas viagens do tipo: em busca de dinheiro para completar a renda
familiar, eles saem de suas cidades no Nordeste atraídos por ofertas de
empregos temporários, em geral em grandes construções. Um jovem de 21
anos resgatado pelo MTE nessa fiscalização disse que já havia ido
trabalhar em outras quatro obras em diferentes Estados. Em uma delas,
ele ficou impressionado com as condições de trabalho e com a qualidade
dos alojamentos, que tinham “até quadra de futebol”. Apesar disso, a
construtora informou antes da viagem que o funcionário teria de pagar
pelo translado e que a carteira de trabalho seria assinada só quando ele
chegasse: “Pelo menos eles [a empresa] foram sinceros”, conformou-se.
De acordo com a legislação trabalhista, as empresas que contratarem
pessoas de cidades diferentes do local de trabalho são responsáveis pelo
transporte e, além de garantir as condições do veículo e a integridade
dos migrantes, devem também pagar pelo translado. Tudo isso deve ser
registrado e informado ao MTE, o que nem sempre acontece.
O primeiro grupo de trabalhadores da OAS que chegou de Petrolândia, em
13 de agosto, fez a viagem em ônibus precário: a chegada a Guarulhos foi
atrasada em um dia porque o veículo quebrou quatro vezes. Em uma delas,
o motorista teve de parar depois de ter sido alertado por um
caminhoneiro que o motor do ônibus estava em chamas. Uma das vítimas
contou à reportagem que o veículo estava com o câmbio quebrado e não
engatava duas das marchas, o que não o impediu, contudo, de seguir
viagem.
Outras casas
Depois do primeiro resgate, a notícia foi se espalhando por Cumbica. Denúncias chegaram ao sindicato, que informou ao MTE. Os auditores retornaram ao distrito nos dias 10 e 16 de setembro, quando fiscalizaram as condições dos empregados em outras oito casas. Todos se encontravam em condições semelhantes aos primeiros, de Petrolândia, e também esperavam o início dos trabalhos com documentos de contratação da OAS.
Depois do primeiro resgate, a notícia foi se espalhando por Cumbica. Denúncias chegaram ao sindicato, que informou ao MTE. Os auditores retornaram ao distrito nos dias 10 e 16 de setembro, quando fiscalizaram as condições dos empregados em outras oito casas. Todos se encontravam em condições semelhantes aos primeiros, de Petrolândia, e também esperavam o início dos trabalhos com documentos de contratação da OAS.
As 111 vítimas foram divididas em dois grupos que, em dias
diferentes, foram à sede da Superintendência Regional do Trabalho (SRTE)
em São Paulo para receber as verbas rescisórias e as guias de
seguro-desemprego. A construtora concordou em pagar todas as verbas, mas
não em firmar o Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério
Público do Trabalho (MPT). Além do TAC, o órgão entrou com um pedido de
liminar (ordem provisória) para assegurar o pagamento de verbas
rescisórias e conseguiu que a Justiça determinasse o bloqueio imediato
de R$ 15 milhões da empresa.
Ao que tudo indica, o número de trabalhadores nessa condição pode ser
ainda maior: durante os trabalhos do MTE para registrar o segundo grupo
de trabalhadores, um representante do sindicato presente recebeu
ligações denunciando pessoas na mesma condição dos 111 resgatados em ao
menos outras duas casas de Cumbica. A OAS também deve responder por
trabalho escravo na Justiça, em uma ação que será aberta pelo MPT em até
20 dias, segundo Christiane Vieira Nogueira, Procuradora do Trabalho
que acompanha o caso. Uma das intenções do processo é assegurar os
direitos de outras possíveis vítimas ainda não identificadas.
Em nota, a OAS
declarou que “vem apurando e tomando todas as providências necessárias
para atender às solicitações” do MTE. A construtora nega que as vítimas
sejam seus empregados e que “a empresa, nas pessoas dos seus
representantes, não teve qualquer participação no incidente relatado”.
Organograma com a participação das empresas responsáveis pela gestão do aeroporto de Guarulhos (Imagem: Reprodução) |
A construtora
Além de ser uma das maiores construtoras do Brasil, a OAS é também a terceira empresa que mais faz doações a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo. Entre 2002 e 2012, a empreiteira doou R$ 146,6 milhões (valor corrigido pela inflação). A OAS é uma das quatro empresas que formam o consórcio Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos através da GRU Airport. Para as obras de ampliação do aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, o BNDES fez um empréstimo-ponte de R$1,2 bilhões.
Além de ser uma das maiores construtoras do Brasil, a OAS é também a terceira empresa que mais faz doações a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo. Entre 2002 e 2012, a empreiteira doou R$ 146,6 milhões (valor corrigido pela inflação). A OAS é uma das quatro empresas que formam o consórcio Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos através da GRU Airport. Para as obras de ampliação do aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, o BNDES fez um empréstimo-ponte de R$1,2 bilhões.
Entre as vítimas, seis índios
Dos trabalhadores resgatados pelo MTE em
Guarulhos, seis são indígenas da etnia Pankararu. O mais velho deles,
de 43 anos, contou à Repórter Brasil que aceitou o emprego para
complementar a renda de sua família, como faz há 23 anos, trabalhando
provisoriamente como carpinteiro em obras pelo país, sempre voltando à
sua aldeia ao final. Segundo ele, um dos contatos do aliciador dos
migrantes de Pernambuco dentro da OAS também é Pankararu.
O MTE argumenta que o uso de mão de obra
indígena resulta no desfavorecimento da relação de trabalho em razão de
etnia, conforme a lei nº 9.029/95. Os auditores fiscais concordam com a visão
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de que os índios “são
mais afetados pela pobreza severa e são, portanto, mais suscetíveis a
serem vítimas do trabalho infantil, trabalho forçado, tráfico e outras
violações de direitos humanos”.
Os Pankararu são bastante conhecidos em
Petrolândia (PE), onde ficam suas aldeias. Como acontece com a maioria
dos povos indígenas do nordeste brasileiro, o contato com brancos se dá
desde os tempos da colônia, o que leva os índios a defender a
delimitação legal de suas terras já no século XIX, trazendo uma relação
diferente da que tinham anteriormente, baseada na ancestralidade. Em
1940, o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) fez a demarcação das
terras sem, no entanto, homologá-las, o que só foi feito 47 anos depois,
em 1987. Nesse período, os conflitos entre índios e posseiros, que já
existiam, são intensificados nas regiões com solo mais fértil próximas
às aldeias. Parte de uma reivindicação histórica, a terra indígena passa
por um novo processo de demarcação em 1999, que aumenta sua área de 8
para 14 hectares. A área é homologada só em 2007.
Igreja de Petrolândia (PE) em área alagada nos anos 1980 pela construção da usina hidrelétrica Luiz Gonzaga, no Rio São Francisco. (Foto: Bruno Capelii – CC BY-SA 3.0) |
Além dos conflitos fundiários, os
Pankararu também foram vítimas da política energética nos anos 1950: a
construção do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso, no Rio São
Francisco, alagou a cachoeira de mesmo nome, que os índios consideravam
sagrada.
Na mesma década, iniciou-se um fluxo
intenso de saída dos Pankararu, que perdurou até os anos 60. Eles
viajavam para São Paulo aliciados por outros índios do mesmo povo para
trabalhar em obras na cidade por curtos períodos nos anos de seca em
Pernambuco ou em situações emergenciais. A partir da segunda geração de
índios migrantes, os primeiros núcleos familiares começaram a se
estabelecer na capital paulista, dando origem à favela do Real
Parque, na zona sul, que conta hoje com aproximadamente 1,5 mil índios
Pankararu, de acordo com o Instituto Socioambiental.
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