'O teor do projeto em discussão vai produzir uma casta cartorial e tecnocrática para controlar a produção livre do conhecimento'
Heródoto, o pai da História, em relevo esculpido por Jean-Guillaume Moitte em uma das
paredes do Museu do Louvre
Foto:
Marie-Lan Nguyen / Wikimedia Commons
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Ora tramita em regime de urgência no Congresso Nacional o PL 4.699/2012,
do senador Paulo Paim (PT), que trata da profissionalização do
historiador. O projeto assegura aos historiadores diplomados
prerrogativas exclusivas e interdições que atingirão a pesquisa e a
difusão do conhecimento histórico. O privilégio pretendido encaminha
conflitos com os historiadores temáticos, que tratam da História da
Arte, das Ciências ou da Literatura, entre muitas especialidades de
consistente tradição e relevância. Estes conflitos, decorrentes da luta
corporativa por reserva de mercado, já motivaram protestos até da
Academia Brasileira de Ciências e da SBPC, e abrem questões de interesse
amplo e grave: há benefício social na regulamentação da profissão de
historiador, e riscos reais em sua inexistência? Caso existam, estes
riscos são tais que justifiquem os transtornos prometidos pelo
exclusivismo? Deve a memória histórica ser atribuição exclusiva de certo
segmento técnico? Com que vantagens e desvantagens? Qual a
cientificidade da História, e quais os usos deste saber? Eis, portanto,
ocasião para discutirmos a relação entre História, historiador e
sociedade, e para pensarmos algo sobre trabalho, ciência e liberdade.
A questão central é sobre a natureza e a potência do conhecimento histórico. Há um método que se aprende apenas tirando diploma? A posse deste método assegura grau superior e exclusivo para o exame do passado? Esta exclusividade resulta em bem social? Pode o desenvolvimento da investigação histórica ser tolhido de toda a parcela da sociedade não diplomada, e confiada a uma guilda de fornecedores do conhecimento?
Os gregos inventaram a História e logo suas pretensões de cientificidade e de utilidade. Heródoto (484 a.C.? – 425 a.C.) usou o termo historíe (história) para designar as enquetes que fez junto aos povos que visitou, sobre mito, memória, fatos e costumes. Uma geração após, Tucídides (460 a.C.? – 395 a.C.) descreveu metodologia rigorosa para a obtenção do conhecimento sobre os eventos recentes e as causas da guerra; reagindo a Heródoto, Tucídides não adotou a palavra “história”, mas foi neste gênero de pesquisa e narrativa que se situou; o historiador quis legar à humanidade um “tesouro para sempre” (ktêma eis aei): o conhecimento das razões que levam à guerra e, logo, referências para que a prudência política evite este flagelo. A humanidade, porém, seguiu guerreando, pois, como anotou G.W.F. Hegel (1770 – 1831) no prefácio à Filosofia do Direito (1820), “a coruja de Minerva começa a voar apenas quando cai o crepúsculo”, e a História segue tão inútil quanto o voo tardio da coruja. Sofisticada, apurada, pretensiosa e inútil.
A escrita da História aprimorou-se na erudição de autores como Giambattista Vico (1668 – 1744) e Edward Gibbon (1737 – 1794), e no rigorismo cientificista do século 19. Leitor de Hegel, Karl Marx (1818 – 1883) quis converter a História em ciência prospectiva e identificou nas tensões das relações de produção a real causa da dialética; esta ciência até hoje ilumina a compreensão histórica, mas sua principal utilidade foi justificar dezenas de milhões de assassinatos, obra dos regimes totalitários socialistas que, nutridos por “ciência” histórica, aceitavam quaisquer meios pelo fim maior de redimir o proletariado rumo ao comunismo e, sobretudo, preservar o poder. Pouco antes, um tirano austríaco quase destruiu a Europa, nutrido por várias ciências, entre as quais a História, alma do nacionalismo suprematista. Quando a História vira autoridade, com o nome usurpado de ciência, a opinião torna-se verdade, cegueira e violência. Não pode um indivíduo, partido ou corporação deter o monopólio da verdade, da memória ou da narrativa histórica, sob risco de perder-se a liberdade e a ciência da complexidade do mundo.
No século 20, com os aportes da Antropologia, da Arqueologia, das Ciências Econômicas, da Ciência Política, da Filosofia, da História da Arte, da Linguística, da Psicologia, da Semiótica, da Sociologia, e de outras disciplinas, a História transformou-se e por fim superou a pretensão de hegemonia de um certo tipo de explicação histórica, materialista. Hoje, o historiador tem ao seu dispor um bom repertório de teorias e vocabulários; não há o menor consenso metodológico, e é bom que assim seja. Talvez o núcleo metodológico da disciplina siga sendo aquele herdado de Tucídides e aperfeiçoado em 1898 por Langlois e Seignobos: a crítica documental rigorosa e a determinação das fontes e fatos, princípios compartilhados com o Jornalismo e outras ciências, pouco ensinados nos cursos de História atuais. A História é uma expressão das Ciências Humanas, em diálogo com áreas correlatas e aberta à sociedade, que deve ser capaz de historiar, como cada um de nós deve ter memória; a pretensão de monopólio é um insulto à sua natureza interdisciplinar, bem como ao convívio harmônico com as demais disciplinas e a sociedade.
Chegamos, pois, ao ponto: a quem e para que serve a pretensão de monopólio corporativo que pauta esta regulamentação profissional? Além da finalidade medíocre e insustentável de garantir reserva de mercado, vai-se produzir outra casta cartorial, controlando um ofício livre e inofensivo, dando ilusão de poder a tecnocratas improdutivos, burocratizando o ofício, perturbando e ofendendo profissionais dignos, inibindo a evolução acadêmica, sem qualquer ganho social. A sociedade, caso conceda esta reserva de mercado, abrirá mão de parte importante da liberdade e fomentará litígios desnecessários nas ciências patrimoniais, hoje, aliás, muito mais complexas do que o imaginam os arautos do oficialismo historiográfico. A ABC e a SBPC, em carta de 10 de julho deste ano, em que pedem a imediata suspensão da tramitação do projeto de lei 4.699/2012, argumentam, corretamente, que “existem diversas áreas de pesquisa e ensino cujo nome inclui “História” e que, no Brasil e no exterior, são atividades que podem ser desenvolvidas por profissionais de outras áreas que não tenham diploma em História.” Isto inclui todas as histórias temáticas, que não são ensinadas nem como assunto nem como metodologia de pesquisa nos cursos de História no Brasil, e, especialmente, a área de História da Arte, em franco desenvolvimento e titular de tradição acadêmica própria e importante. A ANPUH (Associação Nacional de História), em documento dirigido à Sesu/MEC, postulou que as áreas de “História da Arte e História, Teoria e Crítica da Arte devam convergir para a denominação História – Bacharelado e História – Licenciatura”, mas estes assuntos, todavia, não compõem os currículos de ensino universitário de História no Brasil; eis indício preocupante dos fins a que pode se prestar esta regulamentação, provocando conflitos ilegítimos com outras áreas acadêmicas e com ameaças ao sentido de liberdade necessário à vida social e ao progresso da humanidade.
A questão central é sobre a natureza e a potência do conhecimento histórico. Há um método que se aprende apenas tirando diploma? A posse deste método assegura grau superior e exclusivo para o exame do passado? Esta exclusividade resulta em bem social? Pode o desenvolvimento da investigação histórica ser tolhido de toda a parcela da sociedade não diplomada, e confiada a uma guilda de fornecedores do conhecimento?
Os gregos inventaram a História e logo suas pretensões de cientificidade e de utilidade. Heródoto (484 a.C.? – 425 a.C.) usou o termo historíe (história) para designar as enquetes que fez junto aos povos que visitou, sobre mito, memória, fatos e costumes. Uma geração após, Tucídides (460 a.C.? – 395 a.C.) descreveu metodologia rigorosa para a obtenção do conhecimento sobre os eventos recentes e as causas da guerra; reagindo a Heródoto, Tucídides não adotou a palavra “história”, mas foi neste gênero de pesquisa e narrativa que se situou; o historiador quis legar à humanidade um “tesouro para sempre” (ktêma eis aei): o conhecimento das razões que levam à guerra e, logo, referências para que a prudência política evite este flagelo. A humanidade, porém, seguiu guerreando, pois, como anotou G.W.F. Hegel (1770 – 1831) no prefácio à Filosofia do Direito (1820), “a coruja de Minerva começa a voar apenas quando cai o crepúsculo”, e a História segue tão inútil quanto o voo tardio da coruja. Sofisticada, apurada, pretensiosa e inútil.
A escrita da História aprimorou-se na erudição de autores como Giambattista Vico (1668 – 1744) e Edward Gibbon (1737 – 1794), e no rigorismo cientificista do século 19. Leitor de Hegel, Karl Marx (1818 – 1883) quis converter a História em ciência prospectiva e identificou nas tensões das relações de produção a real causa da dialética; esta ciência até hoje ilumina a compreensão histórica, mas sua principal utilidade foi justificar dezenas de milhões de assassinatos, obra dos regimes totalitários socialistas que, nutridos por “ciência” histórica, aceitavam quaisquer meios pelo fim maior de redimir o proletariado rumo ao comunismo e, sobretudo, preservar o poder. Pouco antes, um tirano austríaco quase destruiu a Europa, nutrido por várias ciências, entre as quais a História, alma do nacionalismo suprematista. Quando a História vira autoridade, com o nome usurpado de ciência, a opinião torna-se verdade, cegueira e violência. Não pode um indivíduo, partido ou corporação deter o monopólio da verdade, da memória ou da narrativa histórica, sob risco de perder-se a liberdade e a ciência da complexidade do mundo.
No século 20, com os aportes da Antropologia, da Arqueologia, das Ciências Econômicas, da Ciência Política, da Filosofia, da História da Arte, da Linguística, da Psicologia, da Semiótica, da Sociologia, e de outras disciplinas, a História transformou-se e por fim superou a pretensão de hegemonia de um certo tipo de explicação histórica, materialista. Hoje, o historiador tem ao seu dispor um bom repertório de teorias e vocabulários; não há o menor consenso metodológico, e é bom que assim seja. Talvez o núcleo metodológico da disciplina siga sendo aquele herdado de Tucídides e aperfeiçoado em 1898 por Langlois e Seignobos: a crítica documental rigorosa e a determinação das fontes e fatos, princípios compartilhados com o Jornalismo e outras ciências, pouco ensinados nos cursos de História atuais. A História é uma expressão das Ciências Humanas, em diálogo com áreas correlatas e aberta à sociedade, que deve ser capaz de historiar, como cada um de nós deve ter memória; a pretensão de monopólio é um insulto à sua natureza interdisciplinar, bem como ao convívio harmônico com as demais disciplinas e a sociedade.
Chegamos, pois, ao ponto: a quem e para que serve a pretensão de monopólio corporativo que pauta esta regulamentação profissional? Além da finalidade medíocre e insustentável de garantir reserva de mercado, vai-se produzir outra casta cartorial, controlando um ofício livre e inofensivo, dando ilusão de poder a tecnocratas improdutivos, burocratizando o ofício, perturbando e ofendendo profissionais dignos, inibindo a evolução acadêmica, sem qualquer ganho social. A sociedade, caso conceda esta reserva de mercado, abrirá mão de parte importante da liberdade e fomentará litígios desnecessários nas ciências patrimoniais, hoje, aliás, muito mais complexas do que o imaginam os arautos do oficialismo historiográfico. A ABC e a SBPC, em carta de 10 de julho deste ano, em que pedem a imediata suspensão da tramitação do projeto de lei 4.699/2012, argumentam, corretamente, que “existem diversas áreas de pesquisa e ensino cujo nome inclui “História” e que, no Brasil e no exterior, são atividades que podem ser desenvolvidas por profissionais de outras áreas que não tenham diploma em História.” Isto inclui todas as histórias temáticas, que não são ensinadas nem como assunto nem como metodologia de pesquisa nos cursos de História no Brasil, e, especialmente, a área de História da Arte, em franco desenvolvimento e titular de tradição acadêmica própria e importante. A ANPUH (Associação Nacional de História), em documento dirigido à Sesu/MEC, postulou que as áreas de “História da Arte e História, Teoria e Crítica da Arte devam convergir para a denominação História – Bacharelado e História – Licenciatura”, mas estes assuntos, todavia, não compõem os currículos de ensino universitário de História no Brasil; eis indício preocupante dos fins a que pode se prestar esta regulamentação, provocando conflitos ilegítimos com outras áreas acadêmicas e com ameaças ao sentido de liberdade necessário à vida social e ao progresso da humanidade.
Publicado em ZH
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