por raquelrolnik
No início desta semana, o Governo Federal – em um processo
decisório exigido pelo TCU e que envolveu vários órgãos – se posicionou
em relação ao caso da Comunidade do Horto, no Jardim Botânico do Rio de
Janeiro, ameaçada de remoção. A decisão foi pela remoção de cerca de 520
famílias, algumas delas moradoras do local há décadas.
Um processo, que caminhava para o reconhecimento do direito de posse e
de moradia das famílias e para projetos que conciliassem essas
dimensões, terminou revertendo a situação. Entretanto, apesar do
anúncio, a questão está longe de ser equacionada, já que, em uma
situação como da Comunidade do Horto, existem direitos que devem ser
contemplados previamente ao se anunciar remoções.
Compartilho a seguir um excelente comentário do professor Edésio
Fernandes sobre o caso, publicado no Facebook no final do ano passado. A
versão abaixo está reduzida, mas o texto completo está disponível aqui.
O caso do Jardim Botânico
Acho que esse caso do Jardim Botânico é muito importante e merece ser
tratado de maneira sensível, articulada e crítica. Não há respostas
fáceis e absolutas. Acho que qualquer solução sustentável requer uma
decisão de governo que vá além dessa (falsa) dicotomia entre “ambiental”
e “o social” que a mídia tem explorado (especialmente O Globo), decisão
que aponte mesmo no sentido de uma política de estado para tratar de
casos comparáveis hoje existentes ou que venham a aparecer.
Mais do que uma questão jurídica, ou mesmo política, essa discussão
está se tornando uma discussão essencialmente ideológica. Para começar,
de uma perspectiva jurídica não há uma situação única, homogênea, que se
possa chamar de “ocupação do Jardim Botânico”. Trata-se de um processo
histórico de ocupação cujas distintas etapas não podem ser tratadas
juridicamente – e politicamente – da mesma maneira, sem maiores
qualificações. A mídia certamente ignora essas distinções que exigem
tratamento diferenciado e respostas distintas.
Essa situação no Jardim Botânico há muito existente somente virou um
problema quando os moradores demandaram da Secretaria do Patrimônio da
União (SPU) o reconhecimento do direito fundiário conferido pela
Constituição Federal de 1988/Estatuto da Cidade – MP 2220/2001 – isto é,
a concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM), que é um
direito real restrito que não transfere a propriedade plena do bem
público. Até então, por décadas, essas pessoas e esses assentamentos
viveram em um estado de limbo jurídico cheio de ambiguidades e
contradições.
Acho que esse tipo de situação é típica do Brasil: enquanto as
pessoas estão dispostas a viver em condições de ambiguidade, sem serem
claramente reconhecidas como sujeitos de direito, mas dependendo de
favores e benesses, tudo bem. Na hora em que se dá nome às coisas para
acabar com essas ambiguidades, e na hora em que direitos sociais são
demandados, aí os pactos precários se quebram e a resistência de outros
grupos sociais se manifesta de maneira cada vez mais assustadora.
Nesse contexto, não é de hoje que o argumento ambiental tem sido
usado para opor o reconhecimento de direitos sociais, especialmente
fundiários e de moradia. Argumentos de outras ordens também são usados
quando são convenientes – o argumento do tombamento do Jardim Botânico
(sem nem entrar na questão da demarcação imprecisa) é um exemplo. Há uma
serie de novas obras sendo feitas pela administração dentro mesmo do
parque e poucos falam disso. O próprio presidente da Fundação Jardim
Botânico diz com frequência que necessita remover as famílias para, no
local, erguer equipamentos – cadê o tombamento nessas horas?
Acho inegável que existe uma enorme dificuldade – que na minha visão é
essencialmente um problema de classe social – contra o reconhecimento
dos direitos fundiários e de moradia dos pobres – especialmente quando
se trata das áreas centrais das cidades. Se a CUEM for na periferia ou
lá na remota Amazônia, aí os grupos sociais resistentes não se
mobilizam; mas, como se trata de CUEM bem lá na cara deles, no coração
da cidade e do mercado imobiliário… aí a história é outra.
Essa questão classista – e preconceituosa – tem se refletido com
frequência também nas decisões judiciais. São vários os casos em que os
juízes que ordenam a demolição de barracos de favelas não determinam a
demolição de mansões dos que invadiram terras públicas com o argumento
de que “não se pode ignorar o investimento financeiro feito nessas
construções”. Bem, investimento por investimento, em termos relativos, o
investimento nos barracos é, de muitas maneiras, superior… Mesmo no
caso do Jardim Botânico, há poucos meses no espaço de uma semana duas
sentenças judiciais “resolveram” os conflitos da seguinte maneira:
determinando a remoção dos barracos em um assentamento informal por
razões ambientais, e determinando que os moradores de dois condomínios
de luxo na Gávea (em total violação do Código Florestal) fossem apenas
multados e tomassem medidas de mitigação do dano ambiental…
Nada disso quer dizer que um erro justifica outro, que devemos
ignorar o tombamento, as medidas ambientais, ou os direitos sociais
fundiários e de moradia dependendo do interesse. Mas, isso significa sim
que temos todos que fazer esse esforço – sensível, articulado e crítico
– de ver para além das ideologias o que a ordem jurídica efetivamente
diz sobre a situação.
Lei por lei, se há uma série de leis ambientais, há também diversas
outras que tratam de patrimônio da União e um número crescente de leis
que tratam da regularização fundiária. Todas são leis federais. Nenhuma
dessas leis existe de maneira isolada e não pode ser aplicada sem que as
demais sejam consideradas. O princípio básico constitucional é o mesmo
nas quatro áreas (meio ambiente/patrimônio cultural/patrimônio da
União/regularização fundiária): função social da propriedade, que não é
apenas função social da propriedade privada, mas também da propriedade
pública.
Valores ambientais não são intrinsecamente superiores a valores de
moradia, e vice-versa, ambos têm a mesma raiz constitucional. O Código
Florestal não vale mais do que o Estatuto da Cidade ou do que o DL 25/37
(tombamento) – e vice-versa. Uma vez aceito esse princípio, há uma
série de desdobramentos.
No que diz respeito a esse – falso, repito – conflito entre
regularização fundiária/direito de moradia e meio ambiente, a lei
brasileira é clara, ou pelo menos mais clara do que nunca. Até a CF 88 e
especialmente o EC/MP 2220, como se tratava de uma matéria da ação
discricionária do poder público, as políticas públicas e sentenças
judiciais que determinavam a remoção de ocupantes por qualquer razão
(inclusive ambiental) não tinham qualquer compromisso com a necessidade
de se encontrar uma solução para a questão – e o problema – de moradia
dos pobres. “Remova-se”, e ficava por isso mesmo.
O que mudou foi que, na medida em que a lei passou a reconhecer o
direto subjetivo dos ocupantes à moradia (e mesmo à terra, naqueles
casos em que coube esse direito), a ação do poder público não pode mais
desconsiderar esses direitos e as políticas públicas têm que levá-los em
conta. Assim, se em uma mesma situação valores de “preservação
ambiental” e “moradia de interesse social” estiverem envolvidos, todos
os esforços têm que ser feitos para encontrar um equilíbrio entre esses
dois valores.
Na impossibilidade dessa convivência, se o valor moradia tiver mesmo
que prevalecer, trata-se de buscar também as medidas que compensem e
mitiguem os danos ambientais promovidos. Mas se o valor ambiental tiver
mesmo que prevalecer, isso não significa que as pessoas não tenham
direitos de moradia ou mesmo direitos fundiários – os direitos continuam
existindo, para serem exercidos em outros lugares através de processos
negociados.
Remoção então não é princípio geral da política pública, pelo
contrário, a permanência no local é o princípio geral; mas, a ordem
jurídica aceita a remoção em caráter excepcional, desde que soluções
aceitáveis sejam negociadas. A questão certamente é definir os critérios
e processos decisórios para que isso possa ser feito.
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