Para Pochmann, é válida comparação entre os dois projetos que
surgiram no País após a ditadura: o neoliberalismo do PSDB e o
desenvolvimentismo do PT. Foto: Twitter pessoal
2014 já começou
Rodrigo Martins, em CartaCapital, encaminhada via e-mail por Julio Cesar Macedo Amorim
Em discurso no ato de comemoração dos dez anos do PT à frente do
governo, na noite de quarta-feira 20, o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva mandou um recado à oposição ao declarar que os adversários
“podem juntar quem quiser” que não vão derrotar Dilma Rousseff nas
eleições de 2014.
De acordo com Lula, os rivais políticos do PT estão fragilizados,
“sem valores e sem propostas”. “Não temos medo de comparação, inclusive
debate sobre a corrupção. Todo mundo sabe que têm duas formas de a
sujeira aparecer: uma é mostrar, a outra é esconder. E eu duvido que
tenha um governo na história deste país que criou mais transparência e
mais instrumentos de combate à corrupção do que o nosso”.
As críticas se dirigiam ao senador mineiro Aécio Neves, virtual
candidato do PSDB à Presidência, e também ao ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, ambos ciosos das comparações feitas pelo PT com o
governo anterior, do PSDB. Aécio chegou a elaborar um documento
intitulado “os 13 fracassos do PT”, no qual cita, entre outras críticas,
a suposta “maquiagem fiscal”da política econômica do governo.
Durante a festa, o PT distribuiu 1,5 mil cartilhas com os avanços
obtidos por seus governos, reforçando os contrastes com a gestão tucana.
Os dados exaltam o êxito inegável de Lula e Dilma. A inflação cresceu
num ritmo bem menor, o PIB per capita avançou quatro vezes
mais, as reservas externas passaram de 37,8 bilhões para 373,1 bilhões
de dólares e a produtividade aumentou 13%, diante da estagnação
verificada nos anos FHC.
Apesar de o Brasil continuar entre os 12 países com pior distribuição
de renda no mundo, a desigualdade recuou 11,4% nos últimos 10 anos.
Enquanto o desemprego cresceu perto de 58% nos oito anos de governo
tucano, na gestão petista diminuiu 38,9%. E o fenômeno foi acompanhado
de uma valorização real do salário mínimo de 70%, ante um crescimento
pouco menor que 30% na gestão do PSDB.
Um dia antes de os números serem oficialmente divulgados, FHC reagiu
às críticas pela internet. “A gente deve comemorar a vitória do Brasil, e
não ficar o tempo todo olhando para trás. Isso é coisa de criança,
parece picuinha”, afirmou, em vídeo de 48 segundos.
De acordo com o economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação
Perseu Abramo, a comparação é válida por expor dois projetos distintos
que surgiram no País após a ditadura, e com experiências concretas de
governo: o neoliberalismo do PSDB e o desenvolvimentismo do PT. “Se
antes o Estado era visto como o principal responsável pelos problemas da
Nação, ele passa a ser visto como parte da solução”, afirmou, em
entrevista a CartaCapital.
Na avaliação do economista, o Brasil enfrentou três décadas de
regressão econômica e social, uma trajetória só interrompida com a
eleição de Lula.
“Nós, brasileiros, sabemos bem qual é a maior década da nossa
história recente. É precisamente a década que começamos a trabalhar
agora, a década da esperança e do otimismo”, resumiu a presidenta Dilma
Rousseff durante a festa.
Para marcar os dez anos de governo, o PT planeja ainda realizar uma
série de 13 seminários, em diferentes capitais brasileiras, para fazer
um balanço de suas gestões. O primeiro encontro será em Fortaleza, em 28
de fevereiro, com o tema “Políticas de bem-estar, direitos e desafios
da inclusão social”. O debate deve reunir a ministra Tereza Campello, do
Desenvolvimento Social, e o vice-presidente do PSB, Roberto Amaral.
Ao término de cada um dos seminários, os organizadores pretendem
criar um documento com o diagnóstico dos palestrantes. Depois, os textos
serão compilados em livro. As narrativas não devem, porém, ficar
circunscritas ao registro histórico. “No próximo ano, haverá o congresso
nacional do PT e certamente esses debates devem orientar na formulação
de novas diretrizes do partido”, explica Pochmann, que discorre a seguir
sobre os avanços e desafios do PT à frente do governo.
CartaCapital: O PT celebra dez anos no poder e preparou uma
cartilha em que compara sua gestão com a experiência do PSDB. Por que
explorar esse contraste, em vez de elencar só os avanços e os dasafios
futuros?
Marcio Pochmann: Após a redemocratização, houve dois
grandes projetos em disputa e com experiências concretas de governo. Um
deles é o neoliberal, iniciado no final do governo Sarney que se
fortalece com Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique
Cardoso. A partir de 2003, com Lula, emerge outro projeto, o
desenvolvimentismo. Se antes o Estado era visto como o principal
responsável pelos problemas da Nação, ele passa a ser visto como parte
da solução. Há um discurso que simplifica demais o debate eleitoral,
apresentado como uma mera disputa entre personalidades. O que há de fato
é uma disputa entre diferentes projetos de nação.
CC: O que representaram esses 10 anos de governo petista?
MP: Possivelmente, os historiadores vão olhar para
esse período como o decênio que mudou o Brasil. Antes de Lula, vivemos
três décadas de regressão econômica e social. Em 1980, o Brasil era a
oitava maior economia do mundo, mas mantinha um em cada dois brasileiros
na pobreza. Em 2000, a economia brasileira caiu para a 13ª. Posição no
ranking mundial, e a proporção de pobres praticamente manteve-se
inalterada. A concentração de renda também aumentou. Em 1980, cerca de
50% da renda nacional era composta de salários.
Em 2000, os rendimentos dos trabalhadores correspondiam a 39%.
Inviabilizou-se a criação de mercado interno. O número de desempregados
quintuplicou, atingindo 11 milhões de trabalhadores. O que salvou o
Brasil dessa trajetória foi a política, a capacidade de se construir uma
maioria em torno de um projeto diferente de nação.
CC: O que mudou com a eleição de Lula?
MP: O processo de distribuição de renda passou a ter
um papel fundamental. No período neoliberal, o crescimento era visto
como uma coisa espontânea, natural das forças do mercado. Se não tiver
inflação ou intervenção do Estado, naturalmente o mercado cresceria e
criaria oportunidades. Se isso não ocorre como o planejado, o Estado é o
problema. A partir de 2003, a lógica era outra. Ao combater o
desemprego, elevar o salário mínimo, facilitar o crédito e distribuir
renda, o Brasil passou a ter um mercado interno de fato, com a inclusão
de 40 milhões de cidadãos.
CC: Essas iniciativas não existiam antes?
MP: Segundo a perspectiva neoliberal, era impossível
construir um País para todos os cidadãos. Uma nação para três quintos
da população já estava de bom tamanho. Veja, por exemplo, o tamanho dos
nossos aeroportos. São pequenos demais para a dimensão do nosso país,
mas eram adequados para aquela pequena parcela da sociedade que podia
viajar de avião. Se o Brasil não tivesse ampliado o seu mercado interno,
talvez os aeroportos não estivessem sobrecarregados hoje. Quando se
começa a crescer, os gargalos aparecem. E cabe ao Estado superá-los.
CC: De que forma?
MP: Há estímulos, como a redução dos juros e as
novas formas de concessões, para ver se conseguimos destravar a economia
e aumentar a capacidade produtiva. Mantém-se um inegável processo de
transferência de renda no governo Dilma, mas com uma natureza um pouco
diferente. Ela se dá com a redução das taxas de juro. Certamente, os
bancos e os rentistas vão lucrar menos. Mas a população terá mais poder
de compra. Reduzir o preço de energia elétrica não interessa às empresas
do setor, mas dá um alívio para a indústria. Antigamente, qual era a
receita? Privatizar as empresas públicas para pagar os ativos
financeiros, os juros da dívida.
CC: Os tucanos sustentam que vários programas de distribuição de renda foram iniciados em sua gestão, e não com o PT.
MP: FHC também tinha o Bolsa Escola e se preocupou
com a valorização do salário mínimo. Mas as medidas tiveram alcance
limitado. Ao final do governo, o Bolsa Escola atendia cerca de 5 milhões
de famílias. Hoje, o Bolsa Família gira em torno de 14 milhões. Em oito
anos do governo do PSDB, o salário mínimo teve um aumento real de 29%.
Nos dez anos de Lula e Dilma, cresceu 70%. Uma coisa é você pagar um
salário maior em um cenário de forte desemprego. Outra é pagar salário
maior quando há 18 milhões de trabalhadores a mais com carteira
assinada.
CC: Hoje, qual é o maior desafio do Brasil?
MP: O Estado tem dificuldade para mover os
investimentos de forma eficiente. O maior desfio é a reforma do Estado.
Getúlio Vargas lançou as bases da administração direta nos anos 1930.
Duas décadas depois, sua estrutura já estava sucateada. Daí as angústias
de Juscelino Kubitschek ao lançar o projeto de construção do capital e
impulsionar o desenvolvimento do País, na tentativa de avançar “50 anos
em cinco”. Ele criou então as formas de administração indireta, com a
regulamentação das empresas estatais, autarquias, sociedades de economia
mista. Mas, após a redemocratização, não tivemos outro avanço.
CC: Continuamos com a mesma estrutura de 60 anos atrás?
MP: O que houve nas décadas de 1980 e 1990 foi a
dilapidação do Estado brasileiro, com as privatizações de empresas
públicas e a transferência de responsabilidades para organizações e
ONGs.
CC: O que há de errado no Estado?
MP: Há várias fissuras. Tome os exemplos do setor
cultural e bancário. Suas políticas são voltadas para os mais ricos.
Onde estão equipamentos culturais públicos, os museus, os teatros, as
bibliotecas? Nas periferias? Não, estão no centro das grandes capitais.
Os bancos públicos estão na Avenida Paulista e nos bairros abastados.
Mas é possível ter uma estrutura diferente. É o caso da política
assistencial. Não são os ricos que ganham Bolsa Família, que dependem da
Previdência Social. Só que não há um padrão de atuação do Estado. Ele
distribui recursos com políticas assistenciais, mas o pobre continua
pagando mais impostos que o rico, proporcionalmente.
CC: O que fazer?
MP: Não dá mais para continuar com um Estado
organizado como no século XIX, no qual cada setor pensa no seu problema
específico. A educação cuida dos problemas da ignorância, a saúde se
volta para as doenças. O que é uma questão matricial organizada por
problemas? Identificam-se os desafios e como cada ministério e
departamento pode contribuir. Uma ação efetiva, sistêmica,
intersetorial. Se o Estado é grande indutor da economia, ele precisa se
organizar melhor para o País crescer.
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