Nilo Batista. “Mudaria o Supremo, ou mudei eu?” |
Mauricio Dias, em Carta Capital
O dedo-duro de Valério
Num
jogo tipicamente político e grosseiramente ilegal, a Procuradoria-Geral
da República vazou trechos do que seria o teor da delação premiada do
publicitário Marcos Valério, feita para tentar se beneficiar, em
setembro de 2012.
O alvo de Valério foi o ex-presidente Lula, que a oposição espera
que, pressionado, em algum momento empunhe um revólver e atire contra o
próprio peito.
Em outra época, em outro momento, delação premiada expressava
graficamente um dedo-duro apontado em alguma direção. Era a deduragem.
A delação premiada, como lembra o penalista Nilo Batista, chegou às
legislações brasileiras, nos anos 1980, não por acaso ao mesmo tempo em
que foi adotada nos Estados Unidos.
“A delação premiada é um dos sinais do
‘vigilantismo’ e da ‘invasividade’ que caracterizam os sistemas penais
moldados após a crise do capitalismo industrial. Ou seja, a vigência dos
sistemas penais do neoliberalismo”, traduz Batista.
Segundo Nilo Batista, essa inovação foi recebida “com reservas” pelos
melhores professores brasileiros, tais como Jacinto Coutinho, Geraldo
Prado, Aury Lopes, Fauzi Hassan Choukr e Walter Barbosa Bittar. Mas
reação semelhante ocorreu ao longo do mundo. Batista cita Hassemer, na
Alemanha, e Ferrajoli, na Itália.
“A primeira e mais essencial crítica tem a ver com a inversão do
estatuto ético da traição. Entre nós, essa crítica não prosperou fora
dos meios acadêmicos”, diz Nilo Batista, perplexo com o fato de que a
lei valorize positivamente o alcaguete.
A surpresa não é tanta. A cultura brasileira fez recentemente de um
torturador o herói nacional. Assim o Capitão Nascimento foi aplaudido
sem constrangimentos.
Isso arranca a ironia do sentimento do penalista:
“Esperemos com resignação pela lei que trocará o nome da cidade mineira
de Tiradentes para Joaquim Silvério dos Reis. Um delator bem premiado”.
Mas a questão moral é apenas um efeito colateral secundário da situação. Se fosse apenas isso, não seria tão preocupante.
“A história nos ensina que a imoralidade de uma lei às vezes não se
revela claramente aos contemporâneos de sua promulgação. Pior que isso é
a baixa qualidade da prova que sustenta a chamada delação premiada”,
anota Batista.
O nome que os clássicos tratadistas da prova davam às delações
premiadas, providas desde a Antiguidade pelos traidores e alcaguetes,
era corréus. O primeiro elemento de descrédito do corréu, no seu
isolamento, é quando a denúncia vem desacompanhada de qualquer base
probatória.
Batista explica que, nesse caso, “repete-se o problema lógico da
testemunha única: a imputação provém da testemunha única e a prova da
imputação também”.
Ou seja, a imputação seria provada por ela mesma. Chama-se a isso de “petição de princípio”.
“Esse descrédito se potencializa quando o chamado corréu tem o
objetivo colateral de minimizar sua responsabilidade. Seja atribuindo
atos próprios ao delatado (“Quem atirou foi ele, eu só estava perto”),
seja reduzindo sua liberdade de atuação (“O pedido dele era uma ordem
para mim”), seja obtendo qualquer vantagem como na delação premiada”,
diz Batista.
Os corréus, ou delatores, não podem servir como fundamento exclusivo
da condenação. Batista cita inúmeras decisões do STF nesse sentido. Mas,
ao ler os jornais de hoje, ele busca inspiração em Machado de Assis e
balbucia um “pequeno verso”: “Mudaria o Supremo ou mudei eu?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por sua opinião