Por Sergio Leo
"Existe só no Brasil e não é jabuticaba? Não presta". Poucos ditados
concentram tão bem, em mensagem tão convincente, uma ideia tão
equivocada.
Oscar Niemeyer é uma jabuticaba arquitetônica. O Bolsa Família é
jabuticabalmente admirado e copiado pelas instituições internacionais
que lidam com pobreza. A agilidade do sistema financeiro brasileiro,
jabuticanabolizada pela sobrevivência à hiperinflação, não tem igual no
mundo. O Plano Real, baseado em experiências internacionais e aclimatado
para o solo brasileiro, foi uma jabuticabeira providencial, que rende
frutos até hoje.
O ditado da jabuticaba é uma versão pouco frutuosa do que o
economista Albert Hirschman, baseado em sua experiência como consultor
internacional, especialmente na América Latina, chamava de
"fracassomania": a incapacidade de ver os méritos nas adaptações e
soluções locais, o pessimismo em relação às políticas - inclusive os
aperfeiçoamentos incrementais e heterodoxos do capitalismo. Fernando
Henrique Cardoso, amigo e admirador de Hirschman (como, aliás, José
Serra), foi um dos que popularizam o termo fracassomania (que,
curiosamente, Hirschman aplicou também a certos aspectos da teoria
cardosiana da dependência).
Complexo de vira-lata não é um problema do Brasil
Hirschman desenvolveu sua tese a partir de outra expressão, em
francês, também sacada da experiência em países em desenvolvimento: "la
rage de vouloir conclure", a raiva de querer concluir: na ânsia de
soluções e na pressa de terminar obras, governos, economistas,
especialistas, inclinam-se pela aplicação dogmática de fórmulas já
prontas e testadas em algum outro lugar, de preferência em países
comprovadamente bem-sucedidos - sem notar que a receita de sucesso de um
pode ser o caminho para o fracasso de outro, sujeito a condições
diferentes.
A insistência em apontar as dificuldades e não reconhecer os avanços,
ainda que incipientes ou insuficientes, está na raiz da fracassomania,
como se queixava Fernando Henrique - que, porém, usou o termo
equivocadamente ao defender, contra os críticos, a política de dólar
desvalorizado dos anos 90. Ao rejeitar políticas originais e inovadoras
como fatalmente ineficazes e destinadas ao fracasso, a ortodoxia, à
direita e à esquerda, parece ignorar que situações inéditas podem exigir
ações também singulares.
Não cabem metáforas de jabuticaba para analisar soluções e problemas
que frutificaram por aqui. A emergência dos tais 40 milhões de novos
integrantes da classe média, por exemplo, impulsionada por aumentos
reais no salário mínimo e extensão da rede de proteção social, que foram
possíveis devido a condições favoráveis no país e no mercado externo,
trouxe ao Brasil novos padrões de consumo e poupança, ainda não
inteiramente compreendidos. Essa jabuticaba merece mais que as
preguiçosas avaliações sobre o esgotamento iminente do crescimento
baseado no consumo.
Também faltam "jabuticabólogos" para orientar a excepcional situação
do Brasil no cenário de comércio internacional, como grande produtor e
exportador de commodities agrícolas e minerais, e portador, ao mesmo
tempo, de um vigoroso mercado interno e uma complexa e diversificada
estrutura industrial.
A ideia de partir para a liberalização da economia com a derrubada de
barreiras a importados não encontra solo fértil em um país tão sensível
aos lobbies industriais; mas a aplicação sem nuances de exigências de
conteúdo nacional e de novas barreiras aos importados também entra em
choque com um mundo de produção internacionalizada e pressão global por
acordos de livre comércio, especialmente nas economias dinâmicas da
Ásia.
Fazem falta no debate público vozes originais e tropicalizadas, como a
do economista Antônio Barros de Castro, um dos primeiros a apontar a
necessidade de uma estratégia mais sofisticada para lidar com o
fortalecimento da China e com bilhetes premiados do Brasil, como as
reservas do pré-sal, para as quais ele defendia uma política de
exploração controlada, sem a urgência dos interessados em rentabilidade
imediata.
A tese da fracassomania, que rejeita a singularidade da jabuticaba,
se liga a outro clichê nacional equivocado: o complexo de vira-lata,
diagnosticado pelo escritor Nelson Rodrigues para descrever a baixa
auto-estima do brasileiro quando confrontado com o resto do mundo.
Apesar do pedigree literário, essa é outra metáfora infeliz; Nelson
Rodrigues estava correto ao criticar o narcisismo "às avessas" do
brasileiro que "cospe em sua própria imagem"; mas errou ao eleger o
malandro vira-lata como termo de comparação.
No imaginário popular, o mais conhecido vira-lata é um personagem de
desenho animado, a quem Walt Disney deu independência e autoconfiança
invejáveis. Disso entendem os Estados Unidos, que sempre louvaram suas
jabuticabas, a ponto de transformar em ponto de honra a
"excepcionalidade americana".
O vira-lata, mestiço e sem dono, não conhece limites, adapta-se às
circunstâncias, sobrevive mesmo em condições precárias e reage às
ameaças com sabedoria. Não merece ser comparado aos que,
fracassomaníacos, desconfiam da própria capacidade de evitar os becos
sem saída.
Quem se submete às vontades alheias, tem campo de ação regulado e
costuma trocar a criatividade por truques ensinados pelo dono, são os
cães de raça - todos, aliás, descendentes de vira-latas, resultado de
gerações de cruzamentos para eliminar o inesperado e consolidar certas
características especializadas.
Os cães de raça sempre serão úteis. Confiáveis, executam bem as
ordens que recebem. Mas são os vira-latas que, na balbúrdia da rua,
podem descobrir os melhores caminhos, com a autoconfiança que lhes
garante a sobrevivência. Desde, é claro, que se livrem da coleira.
Nelson Rodrigues estava errado. O problema do Brasil não é o complexo de vira-lata. São os vira-latas complexados.
Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras
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