Por Luiz Cláudio Cunha
Especial para o Sul21
Especial para o Sul21
A política regalou em 2012 mais um superlativo à coleção de máximas
de Rio Grande: a mais bela derrota das eleições municipais de 7 de
outubro.
O surpreendente revés de Fábio Branco, prefeito candidato à reeleição
pelo PMDB, traduz significados mais extraordinários e inspiradores do
que a inesperada vitória de seu concorrente, Alexandre Lindenmeyer, do
PT. Quando as urnas foram abertas, apenas 3.215 eleitores da cidade
haviam votado em branco entre os 116.644 votos válidos. Mas, somando a
votação do vitorioso aos dos outros três candidatos nanicos não eleitos,
a conta final mostra que 57% do eleitorado decidiu não votar em Branco,
o Fábio.
Somados aos 5,67% de votos não válidos (brancos e nulos), mais de
62,5% dos eleitores de Rio Grande rejeitaram o voto em Branco. É sempre
bom lembrar que, na base dessa sanção popular, pode estar um filho
ilustre e uma figura superlativa da cidade, que sobrevoa como um
fantasma a história do país e a biografia do prefeito: o general Golbery
do Couto e Silva (1911-1987).
Prefeito Fabio Branco e major lançam homenagem a Golbery | Foto: Fernanda Miki/Prefeitura de Rio Grande |
Um ano antes da eleição, o prefeito ousou usar eleitoralmente a
imagem do general que foi figura chave na queda do presidente João
Goulart e na conspiração do golpe de 1964, sem considerar a afronta que
cometia à memória dos brasileiros — aí incluídos os seus conterrâneos da
cidade e do Estado.
Era agosto de 2011, o mesmo mês em que o Rio Grande do Sul lembrava
com orgulho o cinquentenário da resistência do povo gaúcho na Campanha
da Legalidade de 1961, que garantiu a posse de Jango contra o manifesto
golpista escrito pelo coronel Golbery e lido pelos ministros militares.
Insensível à história dos gaúchos, Branco atravessou descuidado aqueles
dias de festa do povo gaúcho para plantar em praça pública um busto em
homenagem ao general Golbery que, entre outras façanhas, gerou o SNI,
criatura do regime onisciente que ele tardiamente deserdou como
“monstro”.
O exagero na terra dos superlativos sepultou precocemente as
pretensões eleitorais do prefeito, que tinha a obrigação de honrar a
memória de sua gente e de respeitar a história de sua própria cidade.
Por alguma razão, Branco desdenhou o que era e ignorou onde estava.
A cidade gaúcha de 200 mil habitantes, a 317 km de Porto Alegre, já
tem o segundo porto mais movimentado de cargas do país (atrás de Santos)
e é o centro mais rico da empobrecida Metade Sul do Estado. Sua
refinaria e o dinamismo do porto, onde escoa boa parte da produção
agropecuário da região, dão a Rio Grande o 4º maior PIB estadual, atrás
apenas da capital, de Canoas e de Caxias do Sul.
Economia em alta: em março, em Rio Grande, ocorreu a 1ª Feira do Polo Naval do RS, com produtos focados na área | Foto: Claudio Fachel/Palácio Piratini |
A situação ainda deve melhorar com a
implantação do Polo Naval, que inclui o investimento de R$ 14 bilhões na
construção de diques, estaleiros, navios e plataformas marítimas para
exploração de petróleo. Trinta empresas estão instaladas na área, sete
em construção e outras 22 em projeto, gerando cerca de 40 mil empregos
diretos e indiretos até 2017 nos setores de fertilizantes, logística,
alimentos, madeira, química e metalurgia.
Só a Petrobrás emprega ali seis mil
operários para construir três grandes plataformas — uma delas, a P-55,
considerada pela empresa como a maior plataforma semissubmersível já
construída no país. Um novo cais de 4.580 metros vai ancorar ali o maior
estaleiro naval do continente, capaz de construir quatro plataformas
simultaneamente. Tudo isso fará a população dobrar para 450 mil
habitantes em 2020 e deve quadruplicar o orçamento anual do município,
batendo em R$ 800 milhões.
Rio Grande, com tudo isso, não poderia ficar de fora da bíblia dos superlativos, o livro dos recordes, o Guinness Book,
que lhe conferiu a duvidosa glória de ter a mais extensa praia do
mundo: Cassino, uma ventosa franja de areia e mar aberto, frio, feio e
cinzento que se prolonga por 254 tediosos quilômetros em linha reta até
Chuí, o extremo sul do Brasil. Há quem goste.
O nome vem dos tempos feéricos em que o jogo era permitido no Brasil e
dava emprego a 40 mil pessoas nos salões de jogos de 70 cassinos
espalhados pelo país. Um dos salões estava no antigo hotel Stella Maris,
o local mais frequentado do balneário mais antigo do litoral
brasileiro, inaugurado em Rio Grande em 1890 e que deu o nome à praia do
Cassino, distante apenas 18 km do porto. A decadência do balneário
começou em 1946, quando o presidente Eurico Gaspar Dutra assinou o
decreto que proibiu as roletas e o jogo.
O marechal mandava no país, mas quem mandava nele era Carmela Teles
Leite Dutra, sua mulher. ‘Dona Santinha’, como gostava de ser chamada,
era uma rotunda e pia senhora católica, que segundo a lenda mudou a
história em 1946, impondo ao marido presidente as leis que tornaram
ilegais no país os cassinos e o Partido Comunista Brasileiro, dois
pecados mortais que sua fé extremosa não admitia.
Dona Santinha, a patroa, e o presidente Dutra. | Foto: Revista Life |
Exatamente meio século depois, surgiu no pano verde do poder em Rio
Grande um sobrenome ainda mais superlativo do que o santo apelido da
monacal patroa de Dutra: os Branco, a dinastia política mais duradoura
da história recente do Rio Grande do Sul. Nos últimos 16 anos, desde
1996, havia sempre um Branco na prefeitura da cidade, a partir da
democracia restaurada pela Constituinte de 1988. Nas duas décadas
anteriores de ditadura, sob a mão dura do poder verde-oliva do AI-5, o
povo foi banido das urnas pelas cartas marcadas dos militares, que
transformaram Rio Grande em ‘área de segurança nacional’. Prefeito
naqueles tempos, graças ao pretexto do porto superlativo, só era nomeado
pelos quartéis.
O primeiro Branco da dinastia riograndina surgiu em 1996, quando 33
mil votos levaram Wilson Mattos Branco à prefeitura. Perdeu a reeleição
em 2000, vítima de um AVC no final do mandato. Foi substituído às
pressas pelo assessor e sobrinho, um jovem de 29 anos chamado Fábio
Branco, eleito com 51 mil votos e o braço amigo de um poderoso padrinho
político, o deputado federal Eliseu Padilha. Em 2004, o bastão da
família foi repassado para Janir Branco, filho de Wilson e primo de
Fábio, eleito prefeito com 83 mil votos. Na eleição seguinte, 2008,
Fábio voltou à prefeitura, a bordo de 60 mil votos. Se tivesse sido
reeleito, agora em 2012, Fábio completaria duas décadas de Branco na
prefeitura da cidade — o tempo de poder que PSDB e PT, em épocas
distintas, sonharam viver no Palácio do Planalto.
Alexandre Lindenmeyer: uma vitória descoberta na véspera | Foto: Flickr |
O longevo projeto dos Branco foi interrompido pela inesperada vitória
do advogado Alexandre Lindenmeyer, ex-vereador e atual deputado
estadual pelo PT. Foi uma revanche pessoal, já que Alexandre tinha
perdido a prefeitura justamente para Fábio em 2000. A derrota parecia
que iria se repetir agora, já que Fábio Branco, além de liderar um
guarda-chuva de 15 legendas na sua coligação, vencia em todas as
pesquisas com boa folga. Três dias antes da eleição de 7 de outubro, o
semanário Folha Gaúcha dava oito pontos de vantagem ao candidato do PMDB contra o do PT: Branco tinha 45,8% da preferência e Lindenmeyer, 37,9%.
Na véspera da eleição, acendeu o sinal amarelo: o jornal Agora publicou
pesquisa do Instituto Studio indicando uma virada no eleitorado.
Lindenmeyer ultrapassava Branco, com 38,1% contra 36%. Um número elevado
de eleitores, 17%, mostrava indecisão na boca da urna, enquanto Branco
aparecia com a maior taxa de rejeição, 20,2%.
Devia ser, em parte, alguma vindita do eleitor contra o desdém de
Branco à opinião do cidadão comum e à historia como um todo. Negligência
que atingiu seu ápice com a desastrada homenagem a Golbery, aliás uma
ideia alheia que o jovem prefeito comprou sem reservas. Quem teve a
iniciativa foi outro riograndino ilustre, igualmente polêmico: Ronald
Levinsohn, dono no Rio de Janeiro do complexo Univercidade, com 35 mil
alunos, e hoje próspero fazendeiro no Oeste da Bahia, onde já teve 400
mil hectares. Ficou tristemente famoso em 1983, envolvido num dos mais
rumorosos escândalos financeiros do regime militar: a quebra do Grupo
Delfin, a maior empresa de poupança privada do país, que tinha três
milhões de depositantes espalhados em 83 agências país afora. Sofreu
intervenção do Banco Central apesar do braço camarada do amigo e general
Walter Pires, então ministro do Exército do Governo Figueiredo.
Levinsohn tinha outro amigo general: Golbery do Couto e Silva,
nascido em Rio Grande como ele. Em 2009, dois anos antes do centenário
de nascimento do general, Levinsohn ligou para um vereador do PMDB na
cidade, Renato Albuquerque, e disparou:
— Renato, tu não acha que tá na hora de fazer uma homenagem para uma pessoa tão importante como o Golbery?
O vereador achou, e o prefeito embarcou na onda. Entre outras
benfeitorias, lembraram que Golbery, chefe da Casa Civil de dois
presidentes da ditadura (Geisel e Figueiredo), viabilizou os recursos
para captar água do canal São Gonçalo, ajudou a federalizar a
universidade local e transferiu o 5º Distrito Naval de Florianópolis
para Rio Grande.
O chefe de gabinete do prefeito, Edes Cunha, com passagem pela ARENA,
a legenda da ditadura, justificou a homenagem: “Golbery entendia a
importância estratégica de Rio Grande para o Cone Sul. Dizia que a
cidade era a vesícula dos mares”.
A homenagem a Golbery era, também, um soco no fígado da história
nacional. O benfeitor de Rio Grande, na verdade, era um malfeitor da
democracia no Brasil, contra a qual conspirou desde os anos 1950. Depois
de lutar contra o nazifascismo em 1944, na FEB enviada ao front
italiano, o coronel Golbery virou o fio e começou sua carreira de
conspirador. Carrega na sua folha funcional o raro privilégio de ter
derrubado João Goulart duas vezes.
Em 1954, quando Jango era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas,
Golbery redigiu o manifesto de 82 coronéis e tenentes-coronéis que
protestavam contra o aumento de 100% do salário mínimo. A conspiração
levou à queda de Jango. Dez anos depois, em 1964, quando Jango era
presidente, Golbery ajudou a montar a conspiração civil-militar que
preparou o golpe durante os três anos anteriores, sob a camuflagem do
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES, que ele coordenava
mobilizando 320 dos maiores empresários do país, de famílias
tradicionais a poderosas corporações estrangeiras, articulados com os
grandes grupos de mídia.
Golbery perdeu em agosto de 1961, aos 50 anos de idade, quando a
resistência do povo gaúcho na Legalidade, sob a liderança do governador
Leonel Brizola e o peso do III Exército, prevaleceu sobre o ultimato dos
ministros militares, que se opunham à posse do vice João Goulart na
vaga aberta pela renúncia inesperada do ébrio Jânio Quadros.
O autor do manifesto golpista dos ministros militares era o ubíquo
Golbery. O Rio Grande do Sul ainda festejava o cinquentenário dessa
épica vitória democrática quando o desastrado prefeito Fábio Branco
embarcou na homenagem intempestiva ao general que afrontou a vontade do
povo gaúcho e desrespeitou a Constituição.
No dia 21 de agosto, centenário de nascimento do general, Branco
presidiu cerimônia na praça Tamandaré, no centro da cidade, lançando a
pedra fundamental de uma placa em homenagem a Golbery. O mimo foi doado
pelo amigo e conterrâneo Levinsohn. A lei proposta pelo cordato vereador
Renato Albuquerque tinha sido aprovada, sem alarde, pela minoria da
Câmara de Vereadores, no ocaso de 2009. Só seis vereadores, menos da
metade dos 13 integrantes da Câmara, votaram a favor, com dois votos
contra.
Cinco estavam ausentes, entre eles o vereador Lindenmeyer, agora
eleito prefeito. A lei nº 6.835 foi assinada na surdina dez dias depois
pelo prefeito Fábio Branco, no dia 31 de dezembro, quando a cidade e o
país, desatentos, só tinham ouvidos para o espocar das rolhas de
champanha e os fogos de artifício da madrugada do réveillon.
Cobrado pela contradição histórica eternizada na praça entre o
general de duas faces, simultaneamente benfeitor municipal e malfeitor
nacional, o prefeito erigiu um dos mais majestosos monumentos à
boçalidade política, dando uma resposta que ficará como marco pétreo à
leviandade de todas as épocas:
— Eu não quero fazer juízo sobre a ditadura de 1964. Eu nem era
nascido… — respondeu o jovem de 40 anos. Parido no ano da graça de 1971,
quando o país padecia sob o tacão de ferro e sangue do general Emílio
Garrastazú Médici, seu conterrâneo gaúcho de Bagé, o prefeito Branco
afrontava também a memória do próprio partido, o PMDB, herdeiro do MDB
velho de guerra e do PTB de Jango e Brizola, as legendas e líderes mais
perseguidos pelo regime confabulado por Golbery e seus comparsas durante
os 21 anos de arbítrio.
A heresia de Branco, confissão de um crime de lesa-memória, passou em
branco pelas lideranças políticas do partido, do Estado e do país. Só
não sobreviveu ao julgamento implacável do povo de Rio Grande. Nenhum
deputado, nenhum senador do Congresso Nacional, fechado três vezes pelos
atos de força do regime do malfeitor Golbery, se sentiu ofendido pela
explícita leviandade do prefeito bobinho de Rio Grande. Nenhum líder
histórico do velho MDB ou do novo PMDB, todos nascidos e crescidos bem
antes das malfeitorias antidemocráticas de Golbery, contestou a frase
boboca do prefeito Branco, que também não deve ter nenhum juízo sobre o
nazismo e a escravidão, detalhes escabrosos da história ocorridos muito
antes de seu nascimento.
É mais prudente ficar com a opinião de um jovem e corajoso
historiador de Rio Grande, Chico Cougo, de tenros 25 anos, nascido em
1987, 16 anos depois do prefeito sem juízo, quando o país vivia sob a
democracia adolescente da Nova República de José Sarney.
“A urna pune”, escreveu Cougo em seu blog (www.memoriasdochico.com),
com o senso histórico que o Branco prefeito de Rio Grande ainda não
conseguiu apreender em sua cachola. Foi ele que escancarou na Internet a
incrível e desmiolada travessura do prefeito de sua terra, garantindo a
ele lugar cativo na crônica política do país. Cougo observou outra
coisa muito importante: Renato Albuquerque, o vereador que comprou a
evanescente ideia de Levinsohn transformada em lei inconsequente por
Branco, não conseguiu se reeleger. Teve míseros 1.152 votos — 717 votos
menos do que as 1.869 assinaturas colhidas num manifesto na Internet
protestando contra o monumento na praça a Golbery.
O surpreendente resultado das urnas não mostra apenas que Rio Grande não votou em Branco.
A eleição guarda uma lição ainda mais superlativa.
A boçalidade em política não passa em branco pela memória do eleitor.
Luiz Cláudio Cunha, jornalista, nunca vota em branco.
Cunha.luizclaudio@gmail.com
Cunha.luizclaudio@gmail.com
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