David Harvey |
De: Outras Palavras
Um grande teórico das metrópoles contemporâneas contesta
hipóteses conformistas e vê nestes centros, colonizados pelo capital,
laboratórios de outra sociedade
Entrevista a John Brissenden e Ed Lewis, do New Left Project | Tradução: Daniela Frabasile e Laís Bellini
Acaba de sair (por enquanto, em inglês), um livro indispensável
para quem quer debater crise do capitalismo, degradação social e
ambiental das cidades e busca de alternativas. Numa obra curta (206
páginas), intitulada “Cidades Rebeldes”, o geógrafo, urbanista e
antropólogo David Harvey sustenta pelo menos três ideias polêmicas e
indispensáveis, num tempo de crise financeira, ataque aos direitos
sociais, risco de desastre ambiental e… rebeliões contra o sistema. Elas
estão expostas em detalhes em entrevista que Harvey concedeu a John
Brissenden e Ed Lewis, do excelente site britânico New Left Project.
A primeira provocação do geógrafo – que é também um dos grandes estudiosos contemporâneos de “O Capital”, de Karl Marx (veja a área especialmente dedicada ao tema, em seu site)
– diz respeito ao papel das grandes metrópoles. Harvey discorda de dois
tipos de pessimismo. Estes grandes centros para onde fluem as multidões
de todo o mundo no século 21, diz ele, são bem mais que templos da
desigualdade, da vida automatizada e cinzenta, da devastação da
natureza.
É a elas que afluem – e lá que se articulam — as multidões às
quais o capital já não oferece alternativas. Esta gente estabelece novas
formas de sociabilidade, identidade e valores. É nas metrópoles que
aparecem a coesão reivindicante das periferias; novos movimentos como Occupy; as
fábricas recuperadas por trabalhadores em países como a Argentina; as
famílias que fogem ao padrão nuclear-heterossexual-monogâmico. Nestas
cidades, portanto, concentram-se tanto as energias do capital quanto as
melhores possibilidades de superá-lo. Elas não são túmulos, mas arenas.
Aí se dá o choque principal entre dois projetos para a humanidade.
A segunda hipótese de Harvey diz respeito à própria
(re)construção de um projeto pós-capitalista. O autor de Cidades
Rebeldes está empenhado em identificar e compreender formas de
organização social distintas das previstas por um marxismo mais
tradicional. Ele reconhece: ao menos no Ocidente, enxergar na a classe
operária fabril o grande sujeito da transformação social equivale quase a
um delírio. É preciso buscar sentidos rebeldes nas lutas por direitos
sociais empreendidas por um leque muito mais amplo de grupos e
movimentos. Não cabe nostalgia em relação às batalhas dos séculos
passados: é hora de tecer redes entres os que buscam de muitas maneiras,
nas cidades, construir formas de vida além dos limites do capital.
Mas esta abertura ao novo não significa, diz Harvey (e aqui está
sua terceira provocação fundamental), aderir a modismos. O autor saúda o
surgimento de uma cultura da horizontalidade e da desierarquização, nas
lutas sociais. Mas sugere: para enfrentar um sistema altamente
articulado, será preciso construir, também, visões de mundo e projetos
de transformação que não podem ser formulados no chão de uma assembleia
local de indignados. Harvey teme que o horizontalismo – grosso modo, a
noção de que tudo deve vir das bases e ser debatido em assembleias –
acabe se transformando num fetiche. Seria, ele adverte, refazer pelo
avesso a obsessão dos antigos Partidos Comunistas pela autoridade e
centralização. A entrevista completa vem a seguir (A.M.).
John: Você diria que há um argumento central em “As Cidades Rebeldes: Do direito à cidade à Revolução Urbana”, ou o livro reúne diversos temas?
David Harvey: Um pouco dos dois. Se há um argumento
central, ele está nos capítulos 2 (“As raízes urbanas das crises
capitalistas”) e 5 (“Reivindicando a cidade para a luta
anticapitalista”). O capítulo 2 é essencialmente sobre as relações entre
capital e urbanização; o 5, sobre a oposição entre o capital e a
urbanização. O conflito de classes está basicamente nos capítulos 2 e 5.
John: Você fala sobre as rendas do monopólio e as
contradições intrínsecas a esse processo. Poderia explicar essas
contradições e o significado delas para sua análise?
David Harvey: Argumenta-se que capitalismo tem a ver
com competição, algo muito repetido e valorizado. Mas basta falar com
um capitalista para descobrir que ele prefere o monopólio, se houver
essa possibilidade. O que existe na verdade, por parte do capital, é uma
incessante tentativa de evitar situações competitivas por meio de algum
truque monopolista.
Por exemplo, o fato de dar nome e marcas produtos é uma tentativa de
colocar neles um selo do monopólio, É por isso temos o swoosh do Nike [a
seta estilizada que caracteriza a marca], ou ícones parecidos, que
tornam certos produtos diferentes de qualquer outra coisa. Esta
tendência ao monopólio é permanente. Ao escrever A Arte da Renda,
eu quis chamar atenção sobre como os capitalistas gostam de chamar algo
de original, autêntico, único. Eles adoram o “marketing da arte”. Há,
portanto, um fluxo enorme de capital em direção a qualquer coisa que se
possa facilmente monopolizar.
John: Mas uma vez que esse processo começa…
David Harvey: Bem, num certo aquilo que não era uma
mercadoria de marca transforma-se em algo menos exclusivo, uma
commodity. Esta tensão sempre existe. Veja, por exemplo, a modernização
dos portos urbanos. O primeiro processo foi muito bom, todos diziam “que
interessante”. Agora, quando você a muitas cidades do mundo e lhe
perguntam: “viu o porto?”, você responde: “Vi um, vi todos”. E Barcelona
não parece mais tão única quanto antes, porque seu porto [modernizado]
se parece com qualquer outro. Rotterdam, Cardiff e, claro, Londres, têm
um. Não é mais uma coisa única, se tornou apenas um tipo de taxa urbana
comum.
John: Você argumenta um espaço se abre, nessa tensão…
David Harvey: Sim, acho, por exemplo, que a
qualidade de vida em uma cidade frequentemente é algo definido por seus
habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser. Para que isso se torne
único, o capital depende da inventividade de uma população para fazer
algo, para fazer algo diferente. O capital tende a ser homogenizante. As
pessoas frequentemente fazem o diferencial, produzem atrações únicas,
existe um tipo de relação aí. Isso significa que os movimentos populares
podem ter espaço para florescer, para tentar definir alguma coisa que é
radicalmente diferente.
John: Você pode apontar exemplos de onde isso está acontecendo?
David Harvey: Sim. Em Hamburgo, existe uma área, o
bairro St. Pauli, que era cheio de squats [ocupações de prédios
abandonados, em geral feitas por jovens e imigrantes]. Eles criaram um
ambiente único, muito diverso. Múltiplas etnias, classes, uma vida
urbana muito intensa. O setor imobiliário, muito presente em Hamburgo,
havia transformado a cidade em algo muito homogêneo. De repente,
perceberam que existe esse bairro incrível, e agora estão tentando
apropriar-se dele, comprando casas e alugando-as por um preço
diferenciado, porque “não é interessante viver nesse bairro vibrante?”.
Esse tipo de coisa você vê nas cidades a toda hora: as pessoas criam um
bairro único, ele se torna burguês e entediante.
John: Sabemos que, no interior do capitalismo urbanista, há
forças de compensação muito poderosas. Como podemos reverter sua lógica?
David Harvey: Um exemplo: o movimento Occupy
desencadeou, em Nova York, uma resposta policial muito feroz e realmente
exagerada. Basta você tentar participar de uma marcha, ou manifestação
semelhante, para que haja 5 mil policiais em seu redor – e são bem
agressivos.
Tentei entender por que. Quando os Giants venceram o Superbowl
[campeonato nacional de futebol americano], as pessoas tomaram as ruas,
interromperam a atividade normal de maneira ainda mais clara e a polícia
não fez nada. “Ah, eles estão apenas comemorando”. Mas o Occupy cria,
por seu significado político, uma resposta violenta. E se você pergunta
por quê, sinto que Wall Street enerva-se muito com a possibilidade de
esse movimento virar moda. Se isso ocorrer, haverá uma clara demanda
para responsabilizar pessoas por muito do que aconteceu à economia. E o
pessoal de Wall Street sabe o que fez, sabe que tem responsabilidade e
que pode acabar preso. Penso que dizem ao prefeito e a todas as demais
autoridades: “acabe com esse movimento antes que vá longe demais”.
Isole-o, faça com que pareça muito violento. Então você acaba com esse
tipo de resposta política.
David Harvey: Eu estive fora ano passado inteiro,
realmente não acompanhei o Occupy em seu período mais ativo nos Estados
Unidos. Mas algo que fizeram foi chamar muita atenção para a questão da
desigualdade social, para os bônus enormes pagos aos altos executivos.
Estes conceitos estão se espalhando. Antes do Occupy,nada disso era
discutido. Agora o Partido Democrata nos Estados Unidos, e até Obama,
estão dispostos a tratar a desigualdade social como um problema. Os
acionistas das grandes empresas estão começando a votar contra os
grandes pacotes de bônus. Acho que tudo isso foi consequência da agenda
criada pelo movimento. Mas, como sempre acontece, os poderes políticos
cooptam parte do discurso contra o sistema e tentam diluí-lo. Vivemos
agora uma fase de certa cooptação, em que os acionistas estão assumindo
parte da retórica e Obama, outra parte
Ed: Sobre isso, estamos interessados em suas discussões sobre
estratégia. Como ponto de partida, é claro que a concepção tradicional
que a esquerda tinha, da classe operária industrial como sujeito
revolucionário e agente de mudança, não se encaixa mais no Ocidente.
Você pode contar como reconcebeu o sujeito revolucionário, quem pode
constituí-lo hoje e como está relacionado às cidades e à identidade
urbana?
David Harvey: Para tratar deste tema, faço uma
pergunta: quem está produzindo e reproduzindo a vida urbana? Se você
olhar para o tipo de produção que prevalece hoje, definirá o
proletariado de maneira totalmente distinta da que se contentava em
associá-lo ao trabalhador fabril.
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, Como organizá-los?
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, Como organizá-los?
Há algumas experiências interessantes a respeito, em Nova York e Los
Angeles. Politicamente, não é possível falar num sindicato nos termos
tradicionais, é preciso criar organizações diferentes.
Ou tomemos o caso dos empregados
domésticos. É extremamente difícil organizá-los, particularmente quando
são, como em muitos países do Norte, ilegais. Porém, são uma força de
trabalho bastante significativa, em muitas cidades. Parte do que estou
dizendo é que todas estas formas de trabalho desenvolvem-se nas cidades e
são vitais para a reprodução da vida urbana. Por isso, deveríamos nos
preocupar em organizar politicamente estes trabalhadores, para influir
na qualidade e natureza da vida nas cidades. Em alguns casos, a
organização é muito difícil; em outros, pode ser muito vigorosa, mas
assume frequentemente formas muito distintas das tradicionais.
Ed: Você acha que a esquerda está mergulhada neste tema, em compreender os desafios e oportunidades com que nos deparamos?
David Harvey: Penso que, historicamente, a esquerda
sempre estabeleceu algum tipo de separação entre o que você poderia
chamar de organizações de trabalhadores, ou baseadas em classes, e
movimentos sociais. Uma de minhas batalhas nos últimos 30 ou 40 anos tem
sido dizer que é preciso enxergar estes movimentos como movimentos de
classe. Penso que houve uma relutância a aceitar isso, em muitos setores
da esquerda.
Veja que esta relutância diminuiu,
inclusive em razão da rapidez com que o trabalho fabril desapareceu.
Quando cheguei em Baltimore, em 1969, havia algo como 35 mil operários
na fábrica de aço. Quinze anos depois, eram 10 mil e na virada do
século, apenas 2 mil. Se você quisesse organizar algo politicamente em
1970, você abria um diálogo com o sindicato dos metalúrgicos, porque
eles tinham musculatura. Hoje, são irrelevantes. Mas se o sindicato já
não conta, como organizar os trabalhadores? Diante desta questão, penso
que a esquerda passou a compreender e valorizar melhor os movimentos
sociais.
Ed: Em relação às dificuldades na organização dos grupos de
que estamos falando, você investigou uma grande variedade de movimentos,
em momentos diferentes. Existem lições particulares que devam ser
generalizadas?
David Harvey: A maioria dos grupos desse tipo
aparece como de organizações por direitos sociais. Sob esse
guarda-chuva, eles podem criar formas organizativas menos restritas que
as dos sindicatos convencionais. Agora, uma das coisas que vi em
Baltimore foi que um movimento de sindicatos convencionais pode ser
hostil a essas novas organizações. O movimento sindical convencional
dividia-se: algumas vezes eles apoiavam; mas era mais comum considerarem
essas formas de organização como uma ameaça a si próprios.
Penso que hoje, o movimento sindical convencional está preparado para
enxergar essas organizações como cruciais para apoiar suas lutas.
Começa a surgir um tipo de coalizão. Na marcha do Primeiro de Maio
realizada em Nova York, há pouco, pessoas tradicionalmente ligadas ao
movimento sindical juntaram-se aos movimentos sociais.
Sou muito a favor de uma forma diferente de organização sindical, de
preferência local, e não por setor. Acredito que os sindicatos
convencionais devem prestar mais atenção aos conselhos de comércio
locais e aos conselhos municipais. Os sindicatos tendem se preocupar
apenas com o bem estar de seus membros, e uma organização geográfica
precisa pensar no proletariado em geral, na cidade. Desse ponto de
vista, uma forma de organização diferente pode abranger uma cidade
inteira, e unir pessoas envolvidas em sindicatos diferentes, com todas
as suas diferenças, em um tipo de sindicato da cidade, ou uma
organização política da cidade.
Ed: No capítulo 5 do novo livro, você relaciona algumas de
suas hipóteses sobre organização urbana às dificuldades enfrentadas
pelas formas tradicionais de organização da esquerda. Não apenas no que
diz respeito a diferente composição do proletariado, mas também nas
relações com organizações autônomas, como cooperativas; ou na
dificuldade para atuar na esfera estatal. Você parece sugerir que as
cidades são locais de organização especialmente poderosos, e se fosse
possível organizar uma cidade inteira, então possivelmente estaríamos
muito empoderados. Por que você acha que as cidades são tão importantes?
As cidades radicalmente isoladas não sofreriam da mesma vulnerabilidade
das cooperativas?
David Harvey: Gosto de pensar nas cidades porque são
uma escala maior que uma simples fábrica. Se você observar as fábricas
recuperadas na Argentina, tomadas pelos trabalhadores em 2001-2002, verá
que uma das dificuldades que surgiriam desse movimento e das
associações de trabalhadores envolvidas é que, em certo ponto, como
estão imersas num sistema capitalista, vêem-se envolvidas na competição
e, em consequência, em práticas de auto-exploração.
Marx tem uma série de passagens interessantes, onde diz que o
primeiro passo em direção a uma transformação revolucionária é a tomada
dos meios de produção pelos trabalhadores; mas se ficarmos apenas nesse
nível, não será suficiente. Se você começar a pensar em organizar uma
cidade inteira (e isso está começando a acontecer um pouco na
Argentina), as fábricas precisarão de matérias primas — se você está
produzindo camisas, precisa de tecido. Mas de onde vem o pano? Bem, você
começa a criar uma rede; monta uma rede de cooperativas produzindo
coisas diferentes, interligadas.
Você pode imaginar que podem surgir, em uma área metropolitana,
economias interligadas dessa forma, o que nos levaria além das
possibilidades de tomar apenas uma fábrica específica. Outro fato
interessante sobre as fábricas na Argentina é que quando foram tomadas,
não permaneceram simplesmente como fábricas. Tornaram-se centros
comunitários, integraram realmente os bairros próximos, tinham programas
educacionais e culturais. Quando os donos voltaram, uns cinco anos
depois, e disseram “queremos nossa fábrica de volta ou levaremos as
máquinas”, a população saiu de suas casas para impedi-los. Assim, é
muito mais fácil de defender as fábricas tomadas.
Claro que se você tentar criar uma cidade totalmente comunista no
meio do capitalismo, provavelmente irá sofrer uma repressão real e
violenta. Estará numa situação como a da Síria, em uma cidade como Homs
onde há um movimento de oposição muito forte. De certa forma, é uma
cidade rebelde, cercada pelo exército e esmagada, com pessoas mortas e
outras submetidas.
Penso que há perigo real em ir muito longe e muito rápido. Quão longe
uma cidade pode ir, em relação a sua organização? Há exemplos disso:
Porto Alegre construiu sua forma orçamento participativo, e agora há
orçamento participativo em muitas cidades do mundo. Não é uma medida
revolucionária, apenas uma medida transformadora que aprofunda a
democracia urbana.
Esse movimento tornou-se significativo. Algumas inovações ocorrem no
campo ambiental. Outra cidade brasileira muito interessante é Curitiba,
que trabalhou questões ambientais e tornou-se conhecida por organizar
seu sistema de transporte coletivo de uma forma ecológica e
sofisticada. As inovações que vieram de lá também estão sendo
implantadas em outras cidades. Você pode imaginar uma situação como essa
nos termos do que chamo de “teoria dos cupins”[Harvey refere-se aos
casos em que é possível corroer por dentro uma estrutura capitalista,
sem alarde, até que ela entre em colapso], para transformação social.
Esta cidade agora tem uma estrutura institucional diferente, e você
começa a ver tais mudanças como algo que se espalha pela rede urbana.
Ed: No entanto, você também é crítico da teoria dos cupins…
David Harvey: É preciso sempre ter cuidado. Quando
sou crítico, não estou desprezando. Sustento que algumas estratégias são
boas, que as pessoas poderiam adotá-las, mas por outro lado temos que
considerar as limitações da realidade. Em que momento você passa de uma
“estratégia dos cupins”para outra? Uma das coisas em que realmente me
empenhei, no capítulo 5, foi tentar mostrar que há uma variedade de
estratégias, para uma variedade de situações e propósitos. Não devemos,
portanto, nos restringir dizendo: “esta é a única estratégia que vai
funcionar”. Podemos adotar diversas, todas as que forem possíveis. Em
alguns casos, não há outra opção além de se envolver em estratégia de
cupins; e é possível, ainda assim, fazer um bom trabalho.
John: Você fala no livro sobre a cidade chinesa de Chongqing,
onde Bo Xilai, líder do Partido Comunista, liderou processos muito
interessantes, até ser afastado. Seria um exemplo dos riscos de ir
“longe demais, rápido demais”?
David Harvey: Bem, eu não sou especialista em China,
e me pergunto se ele era tão brutal e tão corrupto está sendo pintado;
ou se o retratam dessa maneira porque não gostam do modelo que estava
desenvolvendo. Era maoísta na retórica; estava muito preocupado com a
redistribuição da riqueza. Estava muito claro que sua tentativa de se
tornar poderoso no Comitê Central baseava-se no desenvolvimento deste
modelo urbano particular, radicalmente distinto do que se vê em Xangai,
Shenzhen e lugares assim. Nesse aspecto, eu o achava muito
interessante.
Agora, tanto quanto sei, o Comitê Central tem adotado, como políticas
nacionais, algumas das práticas que Bo lançou em Chongqing. Isso é
típico: como sabemos, há na China uma necessidade de incentivar o
mercado interno e alguma preocupação sobre redistribuição da riqueza.
Eles observaram um processo local bem-sucedido e talvez tenham decidido
enfrentar estes problemas por meio de aumento salários ou construção de
habitações, como Bo estava fazendo. Pode ser o modelo chinês de
urbanização, que tem sido, na minha opinião, bastante desastroso —
ambiental e mesmo economicamente — mude nos próximos anos, nas mesmas
linhas que o dirigente afastado estabeleceu. Mas ressalto que são apenas
especulações.
Ed: Quero voltar para o que você afirmou sobre abraçar uma
pluralidade de estratégias, e uma diversidade de formas organizacionais.
Você tem participado de um debate permanente, e às vezes ácido, opondo
“horizontalistas” a “centralistas”, ou “verticalistas”. Pode falar mais
sobre isso, e como se relaciona a sua análise sobre capitalismo e
cidade?
David Harvey: Acho que há hoje um grande apego pela
horizontalidade. Tento dizer a meus alunos que gosto de passar grande
parte da minha vida no horizontal, mas também gosto de ficar de pé de
vez em quando e andar por aí! Porque acho que esta oposição não é útil.
Sou a favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo
no livro de uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que
foi terrível nas concepções de centralismo democrático dos partidos
leninistas e comunistas.
Repito: a questão é para mim, identificar que tipo de organização
será capaz de enfrentar e resolver cada tipo de problema. Acho que a
horizontalidade pode ajudar a resolver alguns problemas, em certas
escalas, mas não funciona em outras situações. Vivemos num mundo onde há
um sistemas muito estruturados, a de maneira que você também precisa de
estruturas de comando e controle para lidar com eles. Por exemplo, uma
estação de energia nuclear é um sistema fortemente estruturado. Quando
algo dá errado, você precisa reagir imediatamente, caso contrário tudo
acontece muito rápido e explode. A universidade não é um sistema
fortemente hierarquizado. Se algo der errado nela; se alguém não
aparecer para uma palestra, por exemplo, isso importa pouco: a
instituição sobrevive perfeitamente bem. Mas em sistemas fortemente
hierarquizados, você precisa tomar decisões com rapidez.
Por isso, pergunto aos horizontalistas radicais: você quer organizar o
controle de tráfego aéreo por meio de princípios horizontalistsa? Quer
ter assembleias o tempo todo, na torre de controle de tráfego aéreo?
Será que funciona? Como você se sentiria se estivesse no meio de um voo
cruzando o Atlântico, e de repente dissessem: “bem, os controladores de
tráfego aéreo estão em assembleia, e eles vão nos informar amanhã o que
decidiram”? Há muitas atividades que precisam, como essa, de formas bem
diferentes de organização. Acho ótimos que as pessoas estejam debatendo
horizontalidade, mas é ruim que digam algo como: “ou é horizontal, ou
não é nada”.
Ed: Estas ideias vêm de um semi-anarquismo, de uma profunda
suspeita diante de qualquer forma de autoridade. Você está dizendo,
basicamente, que ser um radical, um anti-capitalista, ainda é
necessário reconhecer que às vezes a autoridade tem o seu papel?
David Harvey: Sim, claro: acho que a autoridade tem
seu papel. O problema importantíssimo que se coloca é: como você
controla uma autoridade? Quais são os mecanismos de revisão de mandatos e
de controle? Porque uma estrutura hierárquica pode, de fato, tornar-se
autoritária. Mas há uma grande diferença entre autoritarismo e
autoridade. Eu acho que em certas situações, você precisa de alguém para
exercer autoridade.
O exemplo ilustre de que muitas pessoas lembrariam são os zapatistas.
Mas eles, militarmente, não são horizontais. Sobrevivem até hoje
precisamente porque, se você tentar mexer com os militares, eles têm um
comando muito bom e estruturas de controle com os quais podem resistir.
Se você não tiver isso, será muito vulnerável. Uma das críticas que
sempre foram feitas à Comuna de Paris é que, devido a uma espécie de
anarquismo filosófico, não havia nenhuma autoridade central para
defender a cidade inteira.
As pessoas defendiam seu distrito, mas não toda a cidade. Por isso as
forças da reação puderam atacar: não havia nenhuma estrutura de comando
e controle para resistir militarmente à invasão.
John: Você fala, no novo livro, sobre Murray Bookchin, e sua abordagem sobre uma saída para este problema de escala.
David Harvey: Sou um geógrafo, e o pensamento
anticapitalista na Geografia sempre foi predominantemente anarquista. Os
anarquistas têm uma longa tradição de estar muito mais interessados em
questões ambientais e urbanas que os marxistas. Eles exerceram, ao longo
do tempo, muita influência sobre as práticas de planejamento. Figuras
como Lewis Mumford,
que vêm dessa tradição, exerceram muita influência — inclusive sobre
mim, obviamente. E Bookchin é seu herdeiro. Estou interessado em seus
ensaios sobre municipalismo libertário: fala sobre formas horizontais de
organização descentralizada mas, em seguida, fala também sobre a
confederação das assembleias regionais. Foca sobre as necessidades das
bio-religiões, em vez de se limitar a comunidades particulares.
Ou seja, ele está disposto a pensar em uma estrutura hierárquica de
algum tipo, tenta falar sobre como os poderes foram atribuídos e como
devem ser. Recorre a um pequeno truque teórico de Saint-Simon:
diz que pode haver gerenciamento das coisas, não de pessoas. Que
deve-se gerir, por exemplo, o abastecimento de água ou o saneamento uma
região — mas não o que as pessoas fazem. É muito diferente da política
real, mas a ideia, e o pensamento de Bookchin em geral — me parece muito
interessante.
Participei, há duas semanas, de uma reunião em Nova York, com David
Graeber. Murray Bookchin compareceu ao debate. Sua filha estava na
platéia, e nós conversamos sobre reunir, num pequeno livro, uma seleção
de escritos de Murray sobre o tema. Acho que é um momento muito bom para
reintroduzir a tradição anarquista, que pode contribuir para o debate
sobra algumas questões mais amplas. Por exemplo, como você realiza
tantas assembleias municipais e não coloca em questão o fato de algumas
pessoas, com muitos recursos, converterem-se em ultra-ricos — enquanto
muitos, sem recursos, reduzem-se a ultra-pobres?
Ed: Sua visão parece que, no fim das contas, será necessário
um Estado. Parece que você acha que Bookchin talvez aceite isso, mas não
pode admitir.
David Harvey: Sim. Você sabe: o que se parece com um
Estado, é visto como um Estado, e se expressa como um Estado… é um
Estado! Há algo que se pode chamar de Estado capitalista, que poderíamos
querer esmagar. Mas há, também, uma forma de organização diz respeito
às relações entre diferentes assembleias e grupos. E no plano mundial,
você também tem que pensar sobre certas questões como o aquecimento
global. Precisam ser abordadas e compreendidas em plano global.
Significa que certas ideias sobre o que fazer têm de ser resultado de
uma preocupação mundial.
John: Isso nos leva de volta a um ponto que abordamos antes,
sobre as organizações com base geográfica. Existe uma oposição entre o
urbano e o não-urbano?
David Harvey: Muitas pessoas me fazem essa pergunta.
Elas dizem “a cidade não existe realmente hoje. Você está falando sobre
o direito a algo que não existe na mais?” Ou: “você está falando sobre a
cidade, por que não sobre o campo. Por que você não fala sobre as áreas
rurais?”. Minha resposta é que, de fato, nos últimos cinquenta anos,
nós nos tornamos um mundo totalmente urbano, e o que pode ter sido
verdade há algum tempo — a existência de uma vida urbana e uma vida
camponesa auto-sustentável, independente — desapareceu em grande parte. O
que você vê é um contínuo entre o campo e a cidade. Na América Latina,
por exemplo, se você está na área rural, as pessoas assistem aos mesmos
canais na televisão, dirigem os mesmos carros. Isso é o que chamo de
desenvolvimento geográfico desigual no interior do processo de
urbanização.
E desse ponto de vista, você diz que as diferenças no interior das
cidades são tão significativas quanto as diferenças entre a cidade e
subúrbio, e o subúrbio e as zonas não-urbanas. Há tantas diferenciações
no interior do próprio processo de urbanização, que a diferença entre
áreas ricas e favela é dramática — na realidade, mais dramática que a
que existe entre o que acontece na cidade e fora dela.
Há formas de organização que refletem isso. O movimento dos
trabalhadores sem-terra no Brasil tem conexões urbanas muito amplas e as
leva muito em conta. Ele não se vê fora do mundo autônomo, mas como
parte de um processo geral de urbanização. É como quero ver este
processo. Há, em alguns lugares, tentativas de organizar uma cadeia de
produção de alimentos para as cidades, que começa nos campos e passa por
várias etapas. Vendendo a produção diretamente aos supermercados, por
exemplo — o que me parece uma ideia muito interessante. Em El Alto
[subúrbio popular de La Paz, Bolívia], um dos meus exemplos preferidos, a
conectividade entre as pessoas que vivem na cidade e as que estão fora
dela é muito, muito forte. Foi ampliada, nos últimos dez ou quinze anos,
por causa do agro-negócio e a forma com que o campo tem se transformado
em uma paisagem capitalista.
Ed: Então um urbanismo revolucionário uma forma universal de revolução política?
David Harvey: Eu diria que sim. A única razão pela
qual me atenho à palavra “cidade” é que ela tem um significado icônico e
é foco de sonhos e utopias. Ao mencioná-la, você está invocando o
imaginário de uma cidade linda, uma cidade na colina, etc. Continuo com o
termo “cidade”, mas entendo perfeitamente que, em um sentido estrito,
diferenciado de todo o resto, ela essencialmente desapareceu.
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