Há resistência social no país e isolamento internacional dos
golpistas. Aos poucos, desvenda-se trama que levou à quebra da
legalidade
Por Antonio Martins
Nas primeiras horas de domingo, o presidente eleito pelos paraguaios,
Fernando Lugo, abandonou a postura de resignação que mantinha desde
sexta-feira, quando deposto, e tomou uma atitude que pode mudar o futuro
imediato do país. Lugo dirigiu-se à rua Alberdi, no centro de Assunção,
onde centenas de manifestantes haviam ocupado a TV Pública, em protesto
contra ameaças de censura. Dirigiu-se a eles e à imprensa internacional
sem meias palavras: “Sem dúvidas, foi um golpe. Um golpe parlamentar
contra a cidadania e a democracia, e isso precisa ser denunciado aos
quatro ventos”.
Precedida de intensa movimentação social e diplomática, a fala desfez
a aparência de “normalidade” com que contavam os golpistas e seus
apoiadores locais e externos – Estados Unidos e Vaticano, em especial.
Está gerando uma reação em cadeia de resistências sociais e diplomáticas
cujos lances mais recentes são a exclusão do “presidente” golpista do
Mercosul e da Unasul (domingo à tarde) e a formação de um governo
paralelo liderado por Lugo (esta manhã, em Assunção). Caso se mantenha,
este processo pode reverter o golpe de Estado e colocar em novo patamar o
que alguns chamam de “nova independência” sul-americana. Os fatos
decisivos estão se produzindo neste início de semana: aos poucos,
torna-se possível desvendá-los e romper a cortina de silêncio que os
jornais comerciais brasileiros insistem em manter sobre o episódio.
A resistência avança explorando o calcanhar-de-aquiles dos golpistas:
“como careciam de causas racionais que justificassem uma medida tão
extrema, optaram por praticá-la com máxima pressa, explica, no jornal paraguaio Última Hora
o analista político Alfredo Boccia. Ele prossegue: “O libelo acusatório
causa vergonha alheia, de tão ridículo: não cuidaram das mínimas
formalidades legais e atropelaram o respeito aos prazos de defesa”.
Lugo estava no Brasil, participando da Rio+20, quando a Câmara dos
Deputados abriu, na quinta-feira, o “processo” que levaria a sua
“cassação”. Washington Uranga, colunista do Página 12 argentino, conta:
os opositores aproveitaram-se da ausência para concretizar finalmente
uma ameaça que fizeram “em 23 ocasiões anteriores, pelos mais diversos
motivos”. E mais: “a maioria destas manobras foi facilitada pelo próprio
vice-presidente Federico Franco. (…) Sabendo que contava com os votos
próprios [do Partido Liberal] mais os do Partido Colorado, em várias
ocasiões o vice foi até a sede do governo para ameaçar Lugo e tentar
extorqui-lo com a ameaça de juízo político, apenas para obter benefícios
econômicos para si mesmo…”
Vinte e quatro horas depois, o Legislativo, que sempre bloqueou todas
as iniciativas apresentadas por Lugo (da reforma agrária à nomeação de
embaixadores), decretava seu impeachment por ampla maioria (39 x 4). A flagrante ilegalidade da aventura foi destacada pelo chanceler argentino Héctor Timerman, em entrevista ao Página 12: “Praticaram
uma execução sumária. Darem duas horas de defesa a um presidente
democraticamente eleito – um tempo menor que o se concede a quem recorre
de uma multa por avançar um sinal vermelho”.
Mas quem dava respaldo aos aventureiros?
“É muito provável que o pequeno Paraguai se dispusesse a confrontar as
regras do Mercosul e da Unasul, entrando em conflito com seus dois
vizinhos, se não contasse com o estímulo e proteção do governo
norteamericano”, sugere o economista Flávio Lyra, num texto que Outras Palavras publica hoje. Na mesma entrevista ao Página 12, um
relato do chanceler argentino confirma esta impressão. Timerman estava
em Assunção nas horas que antecederam o golpe. Havia voado para lá com
uma delegação de colegas da Unasul, alarmados pela perspectiva de
deposição do presidente eleito. Reporta, em detalhes, as
insistentes tentativas de diálogo dirigidas pelos diplomatas à oposição
paraguaia – e a soberba com que foram rechaçadas. Eis um dos trechos:
“Às 11h45 [de sexta-feira], faltavam 15 minutos para o começo do
julgamento. Disse-lhes: ‘Senhores, virão épocas muito duras para o
Paraguai, porque nós teremos de aplicar a cláusula democrática’. Não
pareceu comovê-los em nada”.
No final da tarde de sexta, Lugo
estava deposto. Quase sincronicamente, em Washington, o porta-voz do
Departamento de Estado para a América Latina, Darla Jordan, emitia nota
que se calava diante do ataque à democracia, mas pedia “calma e
responsabilidade” aos paraguaios… Ao contrário do que se informou no
sábado, porém, a Casa Branca ainda não reconheceu
oficialmente o novo “governo” paraguaio. Já o Vaticano e os bispos –
que exercem forte influência, num país católico e conservador – foram
menos sutis. Na quinta-feira, uma comitiva episcopal tentou, sem
sucesso, convencer Lugo a renunciar. No domingo, o núncio apostólico
Eliseo Ariotti, representante oficial do Papa no Paraguai, afirmou, a
respeito da deposição do presidente: “alegra-me muito que o povo simples
e todas as autoridades tenham pensado no bem do país”. Como se o
grotesco da declaração fosse pouco, anunciou que celebraria uma missa na
catedral “pela paz”. Na cerimônia, ofereceu pessoalmente a comunhão ao
golpista (foto).
A primeira atitude de Lugo, após a
deposição, foi conformar-se. Débil no Parlamento desde o início de seu
governo, o presidente também viveu, ao longo do mandato, uma série de
desencontros com os movimentos sociais. Houve erros de parte a parte,
consideram Emir Sader (em Carta Maior) e Santiago O’Donnel (em Página 12):
o presidente não cumpriu a maior parte de seu programa; os movimentos
não compreenderam que, sem apoiá-lo, ele não teria força para executar
as reformas propostas.
Por paradoxo, talvez o golpe tenha
produzido uma aproximação necessária. A partir da noite de sábado, a TV
Pública, criada por Lugo em 2011, converteu-se num centro da resistência
popular. Centenas de manifestantes acorreram à rua Alberdi, assim que
surgiram sinais de que o governo ilegítimo pretendia censurá-la. O Página 12 narra:
naquela mesma noite, grupos de jovens construíram duas barricadas nas
ruas de acesso. O cineasta Marcelo Martinessi, diretor nomeado pelo
presidente eleito, alegrou-se: “as pessoas estão tomando este projeto
como seu”. Um microfone foi estendido aos manifestantes: a resistência
já tinha um canal para ir ao ar.
Na manhã de domingo, Lugo
compareceria ao local, para sua fala emblemática. Horas depois, os
ativistas já eram milhares. Foram eles que rapidamente restabeleceram, à
tarde, o fornecimento de energia e recolocaram a emissora no ar, depois
de um corte executado pela agência nacional de eletricidade.
Os fatos vêm se acelerando desde então. Formou-se
uma Frente pela Defesa da Democracia no Paraguai. Mais tarde, ainda no
domingo, Lugo deu novo passo e anunciou a formação de um governo
paralelo, composto por seus ministros e com primeira reunião marcada
para esta manhã. A edição desta manhã de Pagina 12 estampa uma entrevista
em que confirma “já começamos a resistência pacífica. (…) Já surgem
manifestações de cidadãs e cidadãos. (…) O repúdio [ao golpe] crescerá”.
O jornal confirma: estão programadas para hoje manifestações diante dos
edifícios públicos e interrupção do trânsito em avenidas estradas.
Ao contrário do que ocorreu em tantos
precedentes históricos, os governos da América do Sul parecem dispostos
a reagir ao golpe. O envio de uma delegação de chanceleres a Assunção
pode ser mais que um gesto simbólico. Ainda no sábado, convocou-se uma
reunião de emergência do Mercosul, em Córdoba (Argentina), a partir da
próxima quinta-feira. No domingo, anunciou-se
que Fernando Lugo – e não o governo instituído por golpe – será
recebido como representante do Paraguai. Num primeiro sinal de
vacilação, Federico Franco, o presidente instituído pelo golpe, anunciou
que pediria ao homem que depôs para “atenuar as tensões desencadeadas
na América Latina”. Foi, evidentemente, rechaçado por Lugo.
Desde sexta-feira, os países da
América do Sul estão retirando seus embaixadores de Assunção, em
protesto contra o golpe de Estado. Há dois anos, na resistência ao golpe
de Estado praticado em Honduras, o Brasil jogou papel destacado. Desta
vez, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, parece ter assumido
este papel. Foi ela quem tomou a iniciativa, ainda na sexta-feira, de
retirar seu embaixador de Assunção, “até o restabelecimento da ordem
democrática”. Nos dias seguintes, o gesto seria seguido por Bolívia,
Brasil, Equador, Uruguai e Venezuela. Nas últimas horas, aderiram ao
movimento Colômbia e México, o que parece indicar uma tendência
isolamento dos Estados Unidos. A própria Organização dos Estados
Americanos, em outras épocas dominada por Washington está agora questionando a legitimidade da deposição de Lugo.
* * *
Ninguém é capaz de
dizer, a esta altura, qual será o desfecho dos acontecimentos. Mas é
evidente que uma sequência tão impressionante de fatos novos, cheia de
surpresas, num país vizinho ao Brasil, seria um tema jornalístico de
relevância máxima. A mídia brasileira, porém, trata-o de forma
modorrenta e burocrática. Na maior parte das publicações, o Paraguai
esteve nas manchetes apenas quando Lugo foi afastado. Ao contrário da
imprensa argentina, nenhuma publicação ousou usar a palavra golpe.
No momento em que este texto é concluído, a manchete da Folha de S.Paulo,
em sua edição online, destaca as declarações do “chanceler” (do governo
golpista paraguaio, que se queixa de ter sido afastado “sem defesa” da
reunião do Mercosul… Por sugestiva coincidência,O Globo e Estado de S.Paulo,
embora menos discretos, ocultam a série de reviravoltas em Assunção
para destacar o mesmo personagem… Já o UOL, também do grupo Folha,
enviou por algum motivo o repórter Guilherme Balza à capital paraguaia –
mas tem relegado a segundo plano as ótimas matérias produzidas por ele (como este vídeo)…
O rápido surgimento de
um movimento de resistência no Paraguai – e em especial o fato
emblemático de ele ter por centro a TV Pública – revelam: talvez, também
no Paraguai, a sociedade já seja capaz de superar as velhas formas de
controle da informação e seus laços com os antigos donos do poder…
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