Barba longa, estandarte e túnica branca: ele era paulista, mas foi
nas ruas do Rio de Janeiro que José Datrino virou figura conhecida. Até
os anos 1960 era gente comum, trabalhador, casado e pai de cinco filhos.
Mas a história do Gran Circus Norte Americano o impulsionaria a virar profeta, pregador e por que não dizer, artista.
Em dezembro de 1961, o Gran Circus chegava na cidade de
Niterói, prometendo apresentações memoráveis. Era uma sensação:
crianças ou adultos, todo mundo queria ver o circo. Mas antes de
completar seus dez espetáculos suas lonas de nylon coloridas
arderam em chamas, num incêndio criminoso. Contabilizaram mais de 500
mortos, já que muitos feridos não resistiram no hospital. A notícia
ganhou as páginas de todos os jornais brasileiros, e o episódio ficou
conhecido como a maior tragédia circense do mundo.
Alguns dias depois do ocorrido, José Datrino teve uma visão,
abandonou tudo o que tinha e se encaminhou para o local do incêndio.
Começaria aí a dedicar a vida à pregar bondade, respeito e
agradecimento: nascia o Profeta Gentileza.
Sobre as cinzas do circo fez um jardim de flores e hortaliças, e
permaneceu trabalhando no que ficou conhecido como “Paraíso Gentileza”
por quatro anos. Durante esse tempo, Gentileza levou consolo aos
familiares dos mortos e a quem por ali passava, cultuando e disseminando
palavras como Gentileza e Agradecido, em contraposição à Favor e Obrigado.
A partir da década de 1970 era visto pelas ruas e grandes avenidas,
nas barcas que ligam o Rio de Janeiro à cidade de Niterói, nas praças,
nos ônibus e trens, pregando suas mensagens. Ele era inconfundível:
virou lenda viva urbana. Alguns dizem que o profeta era um anjo na
Terra, já outros que pregava gentileza, mas era desbocado e agressivo
com os transeuntes.
Apesar de muito conhecido em terras cariocas, Gentileza também
peregrinou o país. Arrastava multidões, arrancava reações variadas do
público e virava notícia de jornal.
Muita gente o achava louco. Aliás, se chamado de maluco, respondia
prontamente: “Sou maluco pra te amar e louco pra te salvar”. “Pinel” ou
não, o fato é que o Profeta Gentileza deixou um verdadeiro “livro
urbano”: os murais do Viaduto do Caju. Com caligrafia
peculiar, começaram a ser pintados na década de 1980, em 56 “pilastras -
páginas”. Dos viadutos cinzas em concreto, surgiram sua arte, sua obra,
sua marca: seus inscritos verde-amarelos. Os murais retratam sua visão
de mundo, suas críticas à sociedade e ao capitalismo (segundo ele,
“capeta-lismo”) e sua proposta de ser: gentil.
“Concluída a obra, o alcance da sua
inscrição territorial sobre a cidade, torna-se impressionante. Como
slides diurnos, seus escritos passam a constituir a maior manifestação
de arte mural pública de caráter espontâneo no Rio de Janeiro. Sua nova
atitude - de escriba da cidade - reaviva sua figura lendária e
mitológica.” (Leonardo Guelman em “Brasil Tempo de Gentileza”)
Gentileza morreu em 1996, e depois disso seus murais foram
intensamente modificados: pichados, cobertos parcialmente de tinta,
desbotados. A cantora e compositora Marisa Monte gravou uma música em
homenagem à Gentileza, onde fala da decadência das pinturas do profeta:
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
(Marisa Monte)
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
(Marisa Monte)
Havia
então um apelo pela recuperação de suas obras. E não só de artistas
como Marisa Monte, mas Gentileza também virou objeto de estudos
universitários. Sob orientação de Leonardo Guelman, sua história e
percurso foram resgatados, e os murais estudados e restaurados, com
ajuda da prefeitura do Rio de Janeiro, que por sua vez o tombou como
Patrimônio Cultural. Nasceu aí o Projeto Rio com Gentileza.
Este movimento deu grande projeção às mensagens de Gentileza na
mídia. “Gentileza gera Gentileza”, frase-chave do profeta, começou a
estampar produtos, virou febre, moda. Pobre profeta, não teria
gostado... para sua intervenção na cidade ser reavivada e sua mensagem
amplamente disseminada, virou ele próprio um produto, em mais uma
contradição do tal “Capeta-lismo”.
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