quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A memória como direito e tarefa civilizatória


No debate "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso), em Porto Alegre, Boaventura Sousa Santos defendeu que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". E Leonardo Boff definiu a memória como uma prática subversiva que aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas.

Porto Alegre - "Se não tiver vaias e aplausos no Fórum Social Mundial, não será Fórum Social Mundial". Com a frase, a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, acabou acenando a bandeira branca à multidão que lotou o auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no início da noite de sexta-feira (27), no evento "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). Maria do Rosário foi a terceira a tomar a palavra, depois que o auditório lotado consagrou, com palmas, o cientista político Emir Sader e o teólogo Leonardo Boff. Depois dela, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos veio em seu socorro, lembrando que o governo brasileiro era cheio de contradições internas e que o público que a vaiava deveria fortalecê-la para que cumprisse os compromissos assumidos em seu discurso, de luta pelos direitos humanos. "Eu confio 100% no que ela disse", afirmou Boaventura.
O conflito com a plateia, que até então a aplaudia, começou quando a ministra citou os povos indígenas dentro das políticas de direitos humanos do governo. "Belo Monte, Belo Monte", gritaram alguns presentes. Antes dessa menção, quando começava a descorrer sobre as populações vulneráveis que precisavam da atenção do Estado para garantia de direitos, algumas pessoas lembraram: "Haiti". Na segunda provocação, a ministra reagiu.
"Não me provoca Haiti ou Belo Monte. Irei daqui a dois dias ao Haiti para reiterar que não faremos com os haitianos o que outros países fazem com
brasileiros imigrantes. O que ofende a sensibilidade humana é quando os imigrantes são tratados como escória, e não como parte da humanidade", disse a ministra. Afirmou, ainda, que estava sob responsabilidade de sua pasta a transição da missão de caráter militar que o Brasil hoje mantém naquele país em missão humanitária. Nesse momento, ganhou mais aplausos que vaias.
O placar virou no momento seguinte, quando ela falou de Belo Monte. "Belo Monte tem que ser pensado a a partir do entendimento global de uma agenda de desenvolvimento para o país", disse, incluindo nesse pacote as reformas urbana e agrária. E, enfim, lembrou os episódios da reintegração de posse do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos. "Pinheirinho é a marca da intolerância", afirmou, assinalando, enfim, um compromisso com a plateia:
"Diante de vocês, eu digo que unós faremos tudo para que cada projeto da agenda de desenvolvimento seja constituído com autonomia tecnológica, soberania e respeito aos povos originários", concluiu, para ouvintes ainda divididos.
Pinheirinho também esteve presente nas intervenções de outros convidados, como uma herança trágica e cultural de um passado autoritário, do qual a memória foi subtraída. "Pinheirinho é o passado, o presente e n ão queremos que seja o futuro", afirmou Sader. "Nós todos somos Pinheirinho", reiterou o presidente da União Nacional dos Estudantes, Daniel Iliescu.
O sociólogo Boaventura de Sousa Santos afirmou que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". Diferenciou o direito à memória do direito à história. "O direito à história é o direito às histórias silenciadas pelo saber e pelo poder oficial. São aquelas histórias que aprendemos nas escolas e que vigoram como sendo a verdade dos tempos. A isso chamo de sociologia dos ausentes", disse. É o silêncio em relação aos oprimidos, discriminados e ao sofrimento humano.
"O direito à memória é outra coisa. É o direito a vivências e experiências pessoais que constituíram a subjetividade [de indivíduos], e que eles têm que lembrar e serem respeitados por isso", explicou. Segundo Boaventura, a verdade histórica existe para essas pessoas, mas a subjetividade dessa memória permite apenas o seu conhecimento, jamais sua transmissão. "A verdade para eles está inscrita nos seus corpos, no seu sofrimento. Essa memória é intransmissiva porque as dimensões do sofrimento nunca se pode transmitir, mas pode ser reconhecida." O silenciamento, neste caso, também "torna impronunciável a revolta".
Propondo-se a ampliar o tema do direito à memória para o plano mundial, Boaventura inscreveu a escravatura como o episódio até hoje submerso pelo esquecimento. "Esta é uma história muito complexa, porque não é apenas dos financiadores europeus, mas a história dos africanos que escravizaram suas populações para vendê-las aos europeus". O peso dessa ausência de memória, segundo ele, até hoje resulta em revoluções, na África e na Ásia, e o colonialismo, todavia, é uma história que só começa a ser contada.
O colonialismo degradou colonizados e colonizadores, afirmou Santos. "Vejam a desgraça na Europa, que ficou cinco séculos a dizer às pessoas as virtudes da democracia e do desenvolvimento, e agora, numa crise econômica e financeira, não tem uma solução para os seus problemas e não sustenta a democracia". A Europa, que impôs o colonialismo ao mundo, agora está colonizada, mas por outros reis, disse Boaventura. Segundo ele, os primeiros ministros da Grécia e da Itália e presidente do Banco Central Europeu são, todos eles, ex-funcionários da Goldman Sachs.
Leonardo Boff afirmou que "a memória é subversiva porque aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas". E é uma "tarefa civilizatória". "Famílias tem direito não apenas à memória resgatada, mas dos restos que sobraram de sua dignidade, ossos e corpos. Para que nunca mais se esqueça e nunca mais aconteça", concluiu o teólogo.

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