Luiz Cláudio Cunha Exclusivo para Sul21
O historiador e ativista politico uruguaio Universindo Rodríguez Díaz, 60 anos, sequestrado em Porto Alegre pela ‘Operação Condor’ em novembro de 1978, sobreviveu a duas ditaduras e a duras torturas no Brasil e no Uruguai e agora enfrenta sua mais dura luta pela vida.
Na terça-feira, dia 3, Universindo foi internado às pressas num hospital de Montevidéu, onde vive, com fortes dores nas costas. Os exames iniciais revelaram que ele padece de um estágio avançado de mieloma múltiplo, um câncer agressivo e incurável que se desenvolve na medula, gerando um crescimento desordenado dos glóbulos brancos, derrubando o sistema imunológico, submetendo o paciente a dores fortes nos ossos e comprometendo gravemente os rins. Os médicos iniciaram uma diálise de emergência, tentando estabilizar o doente para iniciar a quimio e a radioterapia.
No sábado, o estado de Universindo agravou-se, com complicações respiratórias e neurológicas. O coração fraquejou, diante do aumento de viscosidade sanguínea que afeta todo o sistema circulatório. Ele foi transferido para a UTI, onde respira com a ajuda de aparelhos. O mieloma múltiplo é uma doença traiçoeira, assintomática, que exige um diagnóstico prévio para dar tempo ao tratamento de praxe, que começa com a quimioterapia e os corticoides e termina, em caso extremo, com transplante da medula óssea. Nos casos detectados nos estágios iniciais, a sobrevida chega a cinco anos e não passa de dois anos para os pacientes mais avançados. A aparição fulminante da doença em Universindo não permitiu, ainda, nem a adoção das etapas iniciais da oncologia.
É uma doença rara, que ataca apenas cinco em cada 100 mil habitantes. É uma doença de idosos e menos de 10% dos pacientes não alcançaram ainda os 50 anos de vida. O organismo debilitado de Universindo entrou precocemente nesse grupo de risco, entre outras razões, porque traz no corpo as marcas de sua dura luta para sobreviver à violência dos ‘anos de chumbo’ da década de 1970 no sangrento Cone Sul do continente.
Foi sequestrado aos 27 anos em 1978 em Porto Alegre junto com Lílian Celiberti (29 anos) e seus dois filhos, Camilo (8 anos) e Francesca (3). Os sequestradores cumpriam uma missão binacional da clandestina ‘Operação Condor’, com militares uruguaios atuando ilegalmente no Rio Grande do Sul com a cobertura e cumplicidade do DOPS, a polícia política do regime, comandada na capital gaúcha pelo delegado Pedro Seelig, o nome mais importante da repressão no sul do país, conhecido como o “Fleury dos pampas” — referência ao seu amigo Sérgio Fleury, delegado do DOPS paulista, envolvido com o ‘Esquadrão da Morte’ e as torturas aos presos políticos em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Detido pessoalmente por Seelig e sua equipe no apartamento da rua Botafogo, no bairro Menino Deus, no início da tarde de domingo, 12 de novembro, Universindo começou a apanhar ali mesmo, na sala. Ligaram a TV portátil com o som bem alto para abafar o som seco das pancadas que ele recebia, sentado em uma cadeira, algemado por trás. Levou muitos socos no estômago e pancadas na cabeça desferidas por um homem forte, negro, de mão pesada. O agressor e a vítima não sabiam, mas tinham pelo menos algo em comum: a paixão pelo Internacional. Universindo havia se tornado torcedor colorado logo que chegou a Porto Alegre, meses antes, e o batedor era o ex-centro-avante do Inter “Didi Pedalada”, agora vestindo a camiseta do time barra-pesada de Seelig, outro ilustre colorado, que frequentava os vestiários do Beira-Rio e se gabava de sua amizade com o craque do time, o meia Paulo Roberto Falcão.
As afinidades clubísticas não aliviaram as penas de Universindo. Levado encapuzado para a sede do DOPS, no segundo andar do ‘Palácio da Polícia’, sede da Secretaria da Segurança na avenida Ipiranga, o uruguaio cruzou os portões do inferno. Sem o capuz, ainda com algemas, foi golpeado por vários homens, sob o comando de Seelig. Um dos que mais batia era um compatriota, o capitão do Exército uruguaio Glauco Yannone, que dois anos antes, ainda primeiro-tenente, frequentou o curso de inteligência e tortura da notória Escola das Américas — o centro militar americano no Canal do Panamá por onde, em três décadas, passou um exército de 60 mil oficiais dos Exércitos latino-americanos que ali aprenderam as técnicas de insurreição que os levaram ao poder, pela força e pelo terror de Estado, derrubando sucessivamente os governos civis e democráticos do continente nos febris anos 60 e 70 do século passado. Desse contingente, 8.659 eram militares brasileiros e 2.806, uruguaios.
Universindo foi mais uma das cobaias que experimentaram este sinistro know-how da violência da ditadura. Tiraram suas algemas no DOPS e ataram as mãos aos tornozelos. Passaram uma barra de ferro entre os punhos amarrados e a dobra do joelho e o penduraram, a 50 cm do chão. De cabeça para baixo, Universindo parecia um frango assado, provando no corpo o suplício de uma genuína invenção brasileira: o pau-de-arara, uma prática disseminada daqui para todos os centros de tortura da região. A simples posição invertida provoca a dormência que se infiltra pelas artérias e veias dos pés e mãos, carentes do sangue que se acumula na cabeça rente ao chão. A dor, lembra Universindo ainda hoje, é insuportável, indecifrável, intangível.
As bestas que comandavam a sessão de pancada acoplaram eletrodos no braço, no pulso, na perna, na orelha, no dedo. Era uma dezena de conexões diretas com a dor, amplificada pelo balde de água que jogavam sobre a vítima para potencializar o choque elétrico. Assim, pendurado e golpeado, Universindo ficou do meio da tarde até quase meia-noite daquele domingo. Banhado em sangue, na madrugada, ele conseguiu ir ao banheiro, onde urinou sangue. Era o sinal vermelho do efeito das descargas elétricas e do pau-de-arara, que faz o organismo liberar mioglobina, uma proteína muscular que leva oxigênio à circulação. Um mecanismo de defesa que sobrecarrega os rins, detonando uma insuficiência renal aguda. Na literatura médica, isso é conhecido como rabdomiólise, o nome científico de uma síndrome causada por danos na musculatura do esqueleto provocados pelo vazamento da mioglobina no sangue.
Quando escapou ainda vivo da sala de torturas do DOPS brasileiro, Universindo ainda precisou passar pelo inferno das prisões militares no Uruguai. Foi torturado no forte de Santa Teresa, Chuy, num quartel do outro lado da fronteira, no extremo sul brasileiro, e depois na sede da Compañia de Contra-Informaciones, o DOI-CODI uruguaio, na rua Colorado, em Montevidéu. O som do rádio foi aumentado, prenúncio de novos sofrimentos na oficina mecânica do lugar, improvisada como centro de tortura. Dias depois, Universindo e Lílian Celiberti deixaram aquele antro para ingressar, literalmente no El Infierno, a temida sede do 13º Batalhão de Infantaria, na esquina da avenida de Las Instrucciones com a bulevar Battle y Ordóñez, aonde o casal foi jogado na noite de 6 de dezembro — exatos 24 dias após o sequestro de Universindo e Lílian naquele maldito domingo de Porto Alegre.
As torturas no El Infierno duraram até o início de junho de 1979. Durante boa parte do tempo, Universindo, entre uma sessão e outra de pancadas, foi mantido sempre acorrentado, em posição fetal, o que lhe provocou sequelas permanentes nos joelhos. Ainda hoje ele manca, quando caminha até o seu trabalho na Biblioteca Nacional, onde o ex-estudante do curso de Medicina (abortado pela ditadura uruguaia que o levou ao exílio em 1975) cumpre com prazer o seu ofício de historiador e chefe do Departamento de Investigação Histórica.
Numa sala de tortura da ditadura, a rabdomiólise vem acompanhada de convulsões, edemas, espasmos, calafrios, cãibras, febre, insuficiência renal e respiratória. Numa sala de UTI de um hospital da democracia, agora, estes são os sintomas que, coincidência ou não, exaurem as forças de Universindo. O câncer na medula fragiliza sua defesa e torna mais difícil o combate à doença.
Luiz Cláudio Cunha é jornalista e testemunha do sequestro de Universindo e Lilian em Porto Alegre em 1978, junto com o fotógrafo JB Scalco | Foto: Ricardo Chaves |
Três décadas depois do inferno que viveu, como tantos em tantos lugares ocultos e clandestinos do Cone Sul, Universindo paga hoje na carne o tributo do sofrimento que as ditaduras impõem a todos nós. Mas o sorriso largo, a fala mansa e a serenidade do tempo provam que nada consegue abater o espírito e a integridade de gente guerreira como Universindo Rodríguez Días.
Saúde e força, compañero!
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