sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Céticos não devem tratar os crentes como idiotas

Autor: Gregory W. Lester
Tradução: Marcus Vinicius Alves


Tendo em vista que as crenças se desenvolvem para aumentar nossa habilidade de sobrevivência, elas são biologicamente projetadas para ser fortemente resistentes às mudanças. Para mudar crenças, céticos precisam apontar os problemas de significados e as implicações de “sobrevivência” do cérebro em adição à discussão das evidências.

Sendo o princípio básico tanto do pensamento cético quanto da investigação científica de que crenças podem estar erradas, é normalmente confuso e irritante para cientistas e céticos que as crenças das pessoas não mudem, mesmo quando em confronto de evidências que as neguem. Como, nos perguntamos, as pessoas são capazes de sustentar crenças que contradizem os dados?
Essa perplexidade pode produzir uma tendência infeliz por parte dos pensadores céticos de depreciar e menosprezar pessoas cujas crenças não mudem em resposta às evidências. Elas podem ser vistas como inferiores, estúpidas, ou loucas. Essa atitude é engendrada pela falha dos céticos de entender o propósito biológico das crenças e a necessidade neurológica de que elas sejam resilientes e insistentemente resistentes às mudanças. A verdade é que por sua forma de pensar rigorosa, muitos céticos não possuem um entendimento claro ou racional do que são as crenças e porque até as mais absurdas delas não desaparecem com facilidade. Entender o propósito biológico das crenças pode ajudar os céticos a serem bem mais efetivos em confrontar crenças irracionais e em comunicar conclusões científicas.

Biologia e Sobrevivêcia

O propósito primário do nosso cérebro é nos manter vivos. Certamente ele faz mais que isso, mas sobrevivência sempre é seu propósito fundamental e sempre vem primeiro. Se nos machucarmos a ponto de que nossos corpos só tenham energia suficiente para manter a consciência ou os nossos corações batendo, mas não os dois, o cérebro não terá problemas em optar por nos colocar em coma (sobrevivência antes de consciência), ao invés de um estado de alerta fadado à morte (consciência antes de sobrevivência).
Por toda atividade do cérebro servir ao propósito fundamental de sobrevivência, o único caminho de entender com acurácia qualquer função cerebral é examinar seu valor como ferramenta de sobrevivência. Mesmo a dificuldade de tratar com sucesso transtornos comportamentais como a obesidade e o vício só pode ser entendida ao examinar suas relações com a sobrevivência. Qualquer redução na ingestão calórica ou na disponibilidade de uma substância a que um indivíduo é viciado sempre é percebida pelo cérebro como uma ameaça à sobrevivência. Como resultado, o cérebro poderosamente sugere o comer em excesso ou o abuso da substância, produzindo as familiares mentiras, fugas, negações, racionalizações, e justificativas comumente exibidas por indivíduos sofrendo com esses distúrbios.

Sentidos e Crenças

Umas das principais ferramentas do nosso cérebro para garantir a sobrevivência são os nossos sentidos. Obviamente, nós precisamos ser aptos a perceber com precisão o perigo, a fim de tomar medidas destinadas a nos manter seguros. Para sobreviver, precisamos ser capazes de ver o leão vindo em nossa direção quando saímos de nossas cavernas ou ouvir o intruso invadindo nossa casa no meio da noite. 

Apenas os sentidos, no entanto, são inadequados como efetivos detectores de perigo, pois eles são muito limitados, tanto em alcance quanto em escopo. Podemos ter contato sensorial direto com apenas uma pequena parte do mundo a cada momento. O cérebro considera este um problema significativo, porque mesmo a vida comum do dia a dia exige que estejamos constantemente em movimento dentro e fora do alcance da nossa percepção do mundo como ele é agora. Entrar em um território que nós não vimos ou ouvimos previamente nos coloca na posição perigosa de nao possuir qualquer aviso prévio de potenciais perigos. Se eu entrar em uma construção desconhecida em uma parte perigosa da cidade, minhas chances de sobrevivência diminuem porque não tenho como saber se o telhado está prestes a entrar em colapso ou alguém armado me espera no próximo corredor.
Introduzindo as crenças. “Crença” é o nome que damos à ferramenta de sobrevivência do cérebro, desenvolvida para aumentar e melhorar a função dos nossos sentidos de identificação de perigo. Crenças estendem o alcance dos nossos sentidos para que possamos detectar melhor o perigo e, assim, aumentar nossas chances de sobrevivência à medida que avançamos para dentro e fora de territórios desconhecidos. Crenças, em essência, são como "detectores de perigo de longo alcance" do nosso cérebro.

Funcionalmente, nossos cérebros tratam as crenças como "mapas" de partes do mundo com as quais nós não temos contato sensorial imediato. Enquanto estou sentado em minha sala não posso ver meu carro. Embora eu o tenha estacionado em minha garagem há pouco tempo, utilizando apenas dados sensoriais imediatos eu não sei se ele ainda está lá. Como resultado, neste momento as informações sensoriais são de pouca utilidade para mim em relação ao meu carro.
Para encontrar o meu carro com algum grau de eficiência o meu cérebro deve ignorar as informações sensoriais atuais (que, se usadas em um sentido estritamente literal, não só não me ajudam a localizar o meu carro, como em verdade indicam que ele não existe mais) e por sua vez recorrer ao seu mapa interno da localização do meu carro. Esta é a minha crença de que o meu carro ainda está em minha garagem, onde o deixei. Ao utilizar a minha crença em vez de dados sensoriais, meu cérebro pode "saber" algo sobre o mundo com o qual não tenho contato sensorial imediato. Essa capacidade "estende" o conhecimento e o contato do meu cérebro com o mundo.

A característica da crença de extensão do contato com o mundo além do alcance dos nossos sentidos imediatos melhora substancialmente nossa capacidade de sobrevivência. Um homem das cavernas tem uma probabilidade muito maior de permanecer vivo se ele é capaz de sustentar a crença de que existem perigos na selva, mesmo quando seus dados sensoriais indiquem que não há nenhuma ameaça imediata. Um policial estará substancialmente mais seguro se ele ou ela puder continuar a acreditar que alguém parado por uma infração de trânsito pode ser um psicopata armado, com um impulso de matar, mesmo que apresente uma aparência notavelmente inofensiva.

Além dos Sentidos

Tendo em vista que as crenças não precisam de dados sensoriais imediatos para ser capazes de prover o cérebro com valiosas informações para a sobrevivência, elas possuem a função de sobrevivência adicional de fornecer informações sobre aspectos da vida que não lidam diretamente com entidades sensoriais. Esta é a área das abstrações e princípios que envolvem coisas como "razões", "causas" e "significados." Eu não posso ouvir ou ver a "causa" chamada "zona de baixa pressão" que faz com que uma tempestade atrapalhe os meus planos do dia, então a minha capacidade de acreditar que a baixa pressão é a causa me ajuda. Se eu fosse depender estritamente de meus sentidos para determinar a causa da tempestade, eu não poderia dizer o porquê dela ter ocorrido. Pelo que eu sei, ela pode ter sido arrastada por duendes voadores invisíveis que preciso acertar com a minha espingarda, se eu quiser clarear o céu. Portanto, a confiança do meu cérebro em minha "crença" na causa chamada de "baixa pressão", ao invés de dados sensoriais (ou, como no caso do meu carro, a ausência deles) auxilia na minha sobrevivência: Eu evito ser preso com diversos indivíduos perigosos por sair atirando para o céu em uma caça irrefreável a duendes voadores.


A Resiliência das Crenças

Sendo os sentidos e crenças duas ferramentas para a sobrevivência que evoluíram para aumentar uma à outra, nosso cérebro os considera separados, mas igualmente importantes fornecedores de informações para a sobrevivência. A perda de qualquer um dos dois nos coloca em perigo. Sem os nossos sentidos não poderíamos saber sobre o mundo dentro da nossa esfera de percepção. Sem as nossas crenças não poderíamos saber sobre o mundo exterior aos nossos sentidos ou sobre significados, razões, ou causas.
Isto significa que as crenças são projetadas para operar independentemente dos dados sensoriais. Em verdade, todo o valor de sobrevivência das crenças é baseado em sua capacidade de persistir em face de evidências contraditórias. Não é esperado que crenças mudem facilmente ou simplesmente ao ser confrontadas a evidências que as desmintam. Se o fizessem, seriam praticamente inúteis como ferramentas para a sobrevivência. Nosso homem das cavernas não iria durar muito se a sua crença em potenciais perigos na selva evaporasse cada vez que sua informação sensorial afirmasse que não há nenhuma ameaça imediata. Um policial incapaz de acreditar na possibilidade de um assassino à espreita por detrás de uma aparência inofensiva poderia facilmente terminar ferido ou morto.

Dessa forma, para o nosso cérebro, não há absolutamente nenhuma necessidade de que evidências e crenças concordem entre si. Cada um dos dois evoluiu para aumentar e complementar um ao outro ao entrar em contato com diferentes aspectos do mundo. Eles são projetados para serem capazes de discordar. É por isso que cientistas podem acreditar em Deus e pessoas que geralmente são bastante razoáveis ​​e racionais podem acreditar em coisas para as quais não há dados confiáveis​​, tais como discos voadores, telepatia e psicocinese.
Quando os dados e as crenças entram em conflito, o cérebro não dá automaticamente a preferência para aos dados. É por isso que as crenças – mesmo crenças ruins, crenças irracionais, crenças tolas, ou crenças loucas – muitas vezes não desaparecem quando confrontadas com evidências contraditórias. O cérebro não se importa se a crença é corroborada ou não pelos dados. Ele apenas se importa com o quanto a crença é útil para a sobrevivência. Ponto final. Assim, enquanto a parte científica e racional do nosso cérebro pode pensar que os dados deveriam se sobressair às crenças contraditórias, em um nível mais fundamental de importância o nosso cérebro não possui tal viés. É extremamente reticente em abandonar suas crenças. Como um velho soldado com sua velha arma que não acredita de verdade que a guerra acabou, o cérebro acaba se recusando a se render mesmo que os dados digam que deveria.

Crenças “Inconsequentes”

Mesmo crenças que não pareçam claramente ou diretamente ligadas à sobrevivência (como a habilidade de nosso homem das cavernas em acreditar em perigos potenciais) ainda estão intimamente ligadas à sobrevivência. Isto se dá porque as crenças não ocorrem individualmente ou em um vácuo. Eles estão relacionados um à outra em um sistema de forte integração que cria a visão fundamental do cérebro da natureza do mundo. É deste sistema que o cérebro depende a fim de experimentar a consistência, o controle, a coesão e a segurança no mundo. Ele deve manter o sistema intacto para poder sentir que a sobrevivência está sendo alcançada com sucesso.
Isto significa que mesmo crenças aparentemente pequenas e inconsequentes podem ser tão pertinentes para a totalidade da experiência de sobrevivência do cérebro quanto as crenças que são “obviamente” ligadas à sobrevivência. Assim, tentar mudar qualquer crença, não importa o quão pequena ou boba ela possa parecer, pode produzir efeitos em cascata por todo o sistema e, consequentemente, ameaçar a experiência de sobrevivência do cérebro. É por isso que as pessoas estão comumente dispostas a defender suas crenças, mesmo que aparentemente pequenas ou superficiais. Um criacionista não tolera acreditar na precisão dos dados que indicam a realidade da evolução não pela exatidão ou inexatidão dos dados em si, mas porque mudar até mesmo uma crença relacionada a assuntos da Bíblia e da natureza da criação rachará todo um sistema de crenças, uma visão fundamental de mundo e, em última análise, a experiência de sobrevivência do seu cérebro.


Implicações para os céticos

Pensadores céticos devem entender que por causa do valor de sobrevivência das crenças, evidências que as confrontem raramente, talvez nunca, vão ser suficientes para mudá-las, mesmo com pessoas “normalmente tão inteligentes”. Para efetivamente mudar as crenças, céticos devem atentar para o seu valor de sobrevivência, não apenas em seu valor de precisão dos dados. Isso envolve uma infinidade de elementos.
Primeiro, os céticos não devem esperar que crenças mudem simplesmente devido aos dados ou supor que as pessoas são estúpidas porque suas crenças não mudam. É preciso evitar se tornar por demais crítico ou depreciativo em resposta à resistência das crenças. As pessoas não são necessariamente idiotas só porque suas crenças não cedem a novas informações. Os dados sempre são necessários, mas raramente são suficientes.
Em segundo lugar, os céticos devem aprender a sempre discutir não apenas o tópico específico abordado pelos dados, mas também as implicações que a mudança das crenças relacionadas terá para a visão fundamental de mundo e sistema de crenças dos indivíduos afetados. Infelizmente, abordar os sistemas de crenças é uma tarefa muito mais árdua e complicada do que simplesmente apresentar evidências contraditórias. Céticos devem discutir o significado dos seus dados em face da necessidade do cérebro para preservar seu sistema de crenças a fim de manter uma ideia de totalidade, consistência e controle. Os céticos devem se dispor a discutir problemas filosóficos fundamentais e a ansiedade existencial que fervilha quando quaisquer crenças são desafiadas. A tarefa é, em cada detalhe, tão filosófica e psicológica quanto científica e baseada em evidências.

Terceiro, e talvez mais importante, céticos devem sempre apreciar o quão difícil é para as pessoas terem suas crenças confrontadas. É, literalmente, uma ameaça ao senso de sobrevivência do seu cérebro. É completamente normal que as pessoas fiquem na defensiva em tais situações. O cérebro se sente como que lutando por sua vida. É lamentável que isso possa acarretar em comportamentos provocativos, hostís e até cruéis, mas é compreensível também.
A lição para os céticos é entender que as pessoas geralmente não possuem a intenção de serem más, grosseiras, teimosas ou estúpidas quando elas são desafiadas. É uma luta pela sobrevivência. A única maneira eficaz de lidar com este tipo de defesa é a de desarmar o conflito ao invés de inflamá-lo. Tornar-se sarcástico ou menosprezar o outro simplesmente dá às defesas da outra pessoa um ponto de apoio para impelir um “toma lá, dá cá” que justifica os seus sentimentos de estar sendo ameaçado ("É claro que lutamos contra os céticos, olha como eles são babacas e hostís!"), ao invés de se focar na verdade.
Os céticos só vão ganhar a guerra pelas crenças racionais ao continuar, mesmo quando confrontados com respostas defensivas dos outros, a usar comportamentos que são infalivelmente dignos e cuidadosos, demonstrando respeito e sabedoria. Para que os dados falem alto, os céticos devem sempre se abster de gritar.
Finalmente, deve ser reconfortante para todos os céticos lembrar que a parte verdadeiramente mais fantástica de tudo isto não é que tão poucas crenças mudem ou que as pessoas podem ser tão irracionais, mas que as crenças de qualquer um podem se modificar. A habilidade dos céticos para alterar suas próprias crenças em resposta às evidências é um verdadeiro dom; uma habilidade única, poderosa e preciosa. É genuinamente uma "função cerebral superior" na medida em que vai de encontro a algumas das mais naturais e biologicamente fundamentais necessidades. Os céticos devem entender o poder e, verdadeiramente, o risco que esta habilidade os concede. Eles têm em sua posse uma habilidade que pode ser assustadora, capaz de mudar vidas, e capaz de induzir dor. Ao direcionar esta habilidade a outrem ela deve ser usada com cuidado e sabedoria. Desafiar crenças deve sempre ser feito com zelo e compaixão.

Céticos devem se lembrar de sempre manter os olhos no objetivo. Eles devem ver à longo prazo. Eles devem se esforçar em tentar vencer a guerra pelas crenças racionais, não se envolver em uma luta até a morte por qualquer batalha em particular com uma pessoa em particular ou uma crença em particular. Não só as evidências e métodos dos céticos devem ser idôneos, diretos e imparciais, como também sua atitude e conduta.
Lester, G. W. (2000). Why Bad Beliefs Don't Die. Skeptical Inquirer., 24 (6)

Gregory W. Lester, Ph.D. é psicólogo e professor da University of St. Thomas em Houston, Texas, e atua em Houston e em Denver, Colorado.

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