Responsável por sentença que visa à localização de corpos no Araguaia indica que camponeses foram ameaçados após falarem sobre operação de "sumiço" nos restos mortais
São Paulo – Mateiros e ex-militares que prestaram informações ao Grupo de Trabalho Araguaia, que investiga o desaparecimento de guerrilheiros na década de 1970, passaram a sofrer ameaças. A juíza titular da 1a Vara da Justiça Federal, Solange Salgado, afirma que ainda reina o medo na hora de falar sobre um episódio ocorrido há 40 anos.
A reportagem da Agência A Pública, de jornalismo investigativo, esteve em Marabá (PA), e conversou com várias pessoas que confirmaram a existência das “Operações Limpeza”, que visavam a desenterrar e a transportar os corpos de guerrilheiros para outros locais. Além disso, cinco entrevistados afirmaram ter visto atuando na repressão o ex-diretor do Dops de São Paulo Romeu Tuma, falecido em outubro do ano passado.
As jornalistas Marina Amaral e Tatiana Merlino lembram, em uma série de reportagens, que apenas 12 ossadas foram recuperadas até hoje, apesar de se ter ciência do desaparecimento de ao menos 62 combatentes. Isso mesmo com a sentença proferida em 2003 por Solange Salgado determinando que se fizesse um trabalho rigoroso de busca para que os restos mortais fossem restituídos à família.
Confira abaixo um trecho da entrevista concedida pela juíza. O esforço de reportagem na íntegra merece ser apreciado na página da Pública.
A Pública - O Brasil não passou por aqueles três pilares da chamada justiça de transição das ditaduras para a democracia: memória, verdade e justiça. O passo seguinte ao cumprimento da sentença, com a entrega dos corpos às famílias, seria entrar com processos penais?
Solange Salgado - A recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos deixa isso bem claro. E eu creio que o Brasil tem que dar cumprimento. E lá não há direito positivo interno, nem interpretação jurisprudencial que vede o governo de responsabilizar os seus agentes que cometeram atrocidades no passado. Traduzindo: nem Lei de Anistia, nem decisão do Supremo pode ser um empecilho para se localizar os restos mortais, nem precisamos de localização de restos mortais para iniciar a responsabilização dos agentes do Estado que cometeram excessos naquela época.
A Pública - Quando assumiu o processo, achou que ia chegar a esse ponto?
Solange Salgado - Não, de forma alguma. Esse processo é um avanço para a democracia. Em 2003 foi a sentença, eu vim para essa vara nessa época, mas ele (o processo) já estava no tribunal, porque havia tido uma sentença anterior. Depois, quando o processo desceu, a sentença tinha sido anulada. Aí que surgiu essa minha sentença.
A Pública - Qual era a primeira sentença?
Solange Salgado - Foi no sentido da impossibilidade jurídica do pedido por que, na realidade, o nosso ordenamento jurídico positivo não prevê expressamente direito de localização de corpos. Mas isso nem precisava, na minha visão, estar escrito. Isso é direito natural, todo familiar tem direito de receber o corpo e enterrá-lo. Nossa sentença foi toda nessa linha, do direito natural. Superada essa parte do pedido ser juridicamente possível, nós reconhecemos esse direito.
A Pública - A senhora falou da importância dessa sentença para o aprofundamento da democracia. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Solange Salgado - Um fato que às vezes passa despercebido é que aquele terrorismo de Estado exercido na época da ditadura militar pelo próprio Estado – o que é uma incongruência máxima –, persiste até hoje. Houve a mudança, acabou o governo militar, nós estamos num governo democrático, mas o desaparecimento forçado de pessoas é um crime continuado. Enquanto esses corpos não aparecerem, esse crime está sendo cometido. Não temos como avançar no processo democrático enquanto o Estado ainda estiver cometendo terrorismo. O cumprimento da sentença é primordial para se avançar no processo democrático em que o Brasil está engatinhando. Não temos como passar à frente sem encerrar esse passado triste, doloroso. E não estamos enfrentando esse passado ainda da forma como deveríamos.
A Pública - No processo constam várias oitivas de policiais militares que não costumam ser relacionados às mortes dos guerrilheiros. Por quê?
Solange Salgado - Esses militares – que hoje estão em sua maioria em Goiás – estiveram em atuação na época da guerrilha e fazem parte de uma relação que foi requistada por nós ao Ministério da Defesa. O que queremos saber desses militares é justamente a localização de corpos. Sabemos que tem essa história que os corpos foram mutilados; queremos saber se parte dos corpos foi enterrada separadamente, se eles têm conhecimento… Mas o foco é sempre esse, de localização de corpos ou parte de corpos.
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