sexta-feira, 15 de abril de 2011

Charles Chaplin: comediante, humanista e homem do povo

Charles Chaplin, foi um dos maiores gênios artísticos da humanidade. Um humanista radical e um cético. Não tenho muito que comentar sobre ele, pois há certas figuras sobre as quais se torna repetitivo comentar. Como curiosidade, destacoo fato de seu nome (Charles Spencer) ter sido dado, pelo que sei, em homenagem a Charles Spencer Darwin, outro gênio da humanidade
Escrevo apenas par me associar à memória aos 122 anos de seu nascimento, dia 16 de abril.
Sobre ele, Carlos Drummond de Andrade escreveu um lindo poema, como, aliás, era seu costume.

Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin

Carlos Drummond de Andrade

Era preciso que um poeta brasileiro,

não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,

girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver

como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,

de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior

onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos

e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,
era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,

preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,

viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse

para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam

e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece

com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus

de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem

nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,

e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor

como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,

e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,

e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,

só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,

eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,

nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti

como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,

que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,

são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,

visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,

os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,

os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,

falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,

os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,

cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.




II




A noite banha tua roupa.

Mal a disfarças no colete mosqueado,

no gelado peitilho de baile,

de um impossível baile sem orquídeas.


És condenado ao negro. Tuas calças

confundem-se com a treva. Teus sapatos

inchados, no escuro do beco,

são cogumelos noturnos. A quase cartola,

sol negro, cobre tudo isto, sem raios.


Assim, noturno cidadão de uma república

enlutada, surges a nossos olhos

pessimistas, que te inspecionam e meditam:


Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,

o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde

a um mundo muito velho.


E a lua pousa

em teu rosto. Branco, de morte caiado,

que sepulcros evoca mas que hastes

submarinas e álgidas e espelhos

e lírios que o tirano decepou, e faces

amortalhadas em farinha. O bigode

negro cresce em ti como um aviso

e logo se interrompe. É negro, curto,

espesso. O rosto branco, de lunar matéria,

face cortada em lençol, risco na parede,

caderno de infância, apenas imagem

entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,

sozinha, experiente, calada vem a boca

sorrir, aurora, para todos.


E já não sentimos a noite,

e a morte nos evita, e diminuímos

como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos

ao país secreto onde dormem os meninos.

Já não é o escritório e mil fichas,

nem a garagem, a universidade, o alarme,

é realmente a rua abolida, lojas repletas,

e vamos contigo arrebentar vidraças,

e vamos jogar o guarda no chão,

e na pessoa humana vamos redescobrir

aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças

de uma justiça não oficial.






III




Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome

dos que não foram chamados à ceia celeste

ou industrial. Há ossos, há pudins

de gelatina e cereja e chocolate e nuvens

nas dobras do teu casaco. Estão guardados

para uma criança ou um cão. Pois bem conheces

a importância da comida, o gosto da carne,

o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,

e sabes a arte sutil de transformar em macarrão

o humilde cordão de teus sapatos.


Mais uma vez jantaste: a vida é boa.

Cabe um cigarro: e o tiras

da lata de sardinhas.




Não há muitos jantares no mundo, já sabias,

e os mais belos frangos

são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.

Há sempre o vidro, e não se quebra,

há o aço, o amianto, a lei,

há milícias inteiras protegendo o frango,

e há uma fome que vem do Canadá, um vento,

uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha

baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida

que mal decifras

o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,

os valos da lei, as léguas. Então te transformas

tu mesmo no grande frango assado que flutua

sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro

e chama, comida geral, que tarda.








IV






O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.

No festim solitário teus dons se aguçam.

És espiritual e dançarino e fluido,

mas ninguém virá aqui saber como amas

com fervor de diamante e delicadeza de alva,

como, por tua mão a cabana se faz lua.

Mundo de neve e sal, de gramofones roucos

urrando longe o gozo de que não participas.

Mundo fechado, que aprisiona as amadas

e todo o desejo, na noite, de comunicação.

Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,

ninguém te quis, todos possuem,

tudo buscaste dar, não te tomaram.




Então encaminhas no gelo e rondas o grito.

Mas não tens gula de festa, nem orgulho

nem ferida nem raiva nem malícia.

És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa

correndo, os copos voam,

os corpos saltam rápido, as amadas

te procuram na noite... e não te vêem,

tu pequeno, tu simples, tu qualquer.


Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,

andar aos mil num corpo só, franzino,

e ter braços enormes sobre as casas,

ter um pé em Guerrero e outro no Texas,

falar assim a chinês a maranhense,

a russo, a negro: ser um só, de todos,

sem palavra, sem filtro,

sem opala:

há uma cidade em ti, que não sabemos.








V




Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.

Não, não te ama. Um rico, em álcool,

é teu amigo e lúcido repele

tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos

o que há de água, de sopro e de inocência

no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos

que cultuamos, falsos: flores pardas,

anjos desleais, cofres redondos, arquejos

poéticos acadêmicos; convenções

do branco, azul e roxo; maquinismos,

telegramas em série, e fábricas e fábricas

e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.

Ficaste apenas um operário

comandado pela voz colérica do megafone.

És parafuso, gesto, esgar.

Recolho teus pedaços: ainda vibram,

lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade

estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.

E nós, que a cada passo nos cobrimos

e nos despimos e nos mascaramos,

mal retemos em ti o mesmo homem,

aprendiz

bombeiro

caixeiro

doceiro

emigrante

forçado

maquinista

noivo

patinador

soldado

músico

peregrino

artista de circo

marquês

marinheiro

carregador de piano

apenas sempre entretanto tu mesmo,

o que não está de acordo e é meigo,

o incapaz de propriedade, o pé

errante, a estrada

fugindo, o amigo

que desejaríamos reter

na chuva, no espelho, na memória

e todavia perdemos








VI




Já não penso em ti. Penso no ofício

a que te entregas. Estranho relojoeiro

cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,

o tempo anda. És vidraceiro.

Varres a rua. Não importa

que o desejo de partir te roa; e a esquina

faça de ti outro homem; e a lógica

te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,

mas benigno,

e dele surgem artes não burguesas,

produtos de ar e lágrimas, indumentos

que nos dão asa ou pétalas, e trens

e navios sem aço, onde os amigos

fazendo roda viajam pelo tempo,

livros se animam, quadros se conversam,

e tudo libertado se resolve

numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

O ofício é o ofício

que assim te põe no meio de nós todos,

vagabundo entre dois horários; mão sabida

no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,

o pé insiste em levar-te pelo mundo,

a mão pega a ferramenta: é uma navalha,

e ao compasso de Brahms fazes a barba

neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido

onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.

Meditavas na sombra das chaves,

das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,

juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,

anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta

de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho

formando-se. E as palavras subindo.

Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.

Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.

Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,

crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,

ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode

caminham numa estrada de pó e de esperança.






































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